07 Abril 2016
Se o Papa Francisco quisesse uma única imagem para ilustrar o Ano da Misericórdia que é o foco atual de seu ministério e, de fato, o tema nuclear de seu pontificado, ele bem poderia escolher uma obra-prima um pouco apreciada do destacado artista italiano conhecido como Caravaggio.
A reportagem é de David Gibson, publicada por Religion News Service, 02-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Realmente, a tela de 400 anos, um retábulo presente em uma igreja de Nápoles intitulado “As Sete Obras da Misericórdia”, pode representar a combinação perfeita do homem – ou melhor: de dois homens – e o momento que viviam: um pintor brilhante com uma reputação indecente que estava esforçando-se na busca por uma redenção, e um pontífice querido que estava lutando para tornar a Igreja mais acolhedora aos desamparados.
“Uma convergência enorme se dá entre os ensinamentos do Papa Francisco e a mensagem de Caravaggio”, escreve Terence Ward em seu novo livro sobre a obra, livro intitulado “The Guardian of Mercy”.
Até mesmo o livro de Ward representa um golpe de providência, posto que o autor começou a escrevê-lo anos atrás depois de entrar numa igreja onde a pintura estava pendurada há séculos, apenas para lhe furtarem o notebook com o primeiro manuscrito.
O atraso significou que a publicação da obra coincidiria com o Ano Jubilar da Misericórdia e com um pontificado revolucionário que pareceria se encaixar tão facilmente com o estilo além-fronteiras de Caravaggio.
A confluência dos desdobramentos não é pouca coisa também, e talvez uma reivindicação póstuma, para um artista que morreu enquanto procurava desesperadamente por misericórdia de um outro papa, um papa de um estilo inteiramente diferente, numa época completamente diversa.
“Entre os adoradores do depravado”
Michelangelo Merisi nasceu em 1571 no norte da Itália e cresceu na pequena cidade de Caravaggio – de onde saiu o seu apelido. Ele ficou órfão aos 11 anos, bem no momento em que iniciava um período de aprendizagem na oficina de um artista. Caravaggio era conhecido como um menino exaltado, de sangue quente, e teve de deixar Milão dirigindo-se a Roma por volta de 1590, supostamente após se meter em confusão e ferir um policial em uma briga de rua.
Porém o talento marcante de Caravaggio sempre pareceu salvá-lo.
Fosse pintando um cesto de frutas, fosse um vidente, Caravaggio usava a escuridão e a luz para transmitir um realismo sobre telas tal que rapidamente se tornaria o centro da grande e rica cena artística romana – um mercado movimentado e prestigiado em que a Igreja Católica e seus príncipes-cardeais estavam entre os clientes principais.
No entanto, se as comissões robustas eram atraentes, foi nas imagens predominantemente religiosas que pagavam para Caravaggio pintar onde ele encontrou a sua verdadeira vocação, bem como a sua maior fama. A sua série sobre a vida de São Mateus, por exemplo, havia feito dele, por volta de 1600, o artista mais polêmico – e mais imitado – na Itália.
(Uma cena deste conjunto de obras, a sua famosa “A Vocação de São Mateus”, foi citada tanto pelo Papa Francisco como pelo seu antecessor imediato, o Papa Emérito Bento XVI, como um motivo de inspiração. “Na pintura admiro Caravaggio: as suas telas falam-me”, disse Francisco).
Algumas das outras obras-primas de Caravaggio inspiradas em temas evangélicos deste período são: “A Captura de Cristo”, “A Conversão de São Paulo” e “Madalena Penitente [ou Arrependida]”, pinturas que se tornaram representações clássicas destes episódios e personagens do Novo Testamento. O seu estilo naturalista e a sua teatralidade também lhe serviram particularmente bem ao retratar cenas detalhadas de martírio e violência, tais como “A Crucificação de São Pedro” e “Judite e Holoferne”.
Ao interpretar estas narrativas religiosas, Caravaggio pareceu encontrar o veículo perfeito para expressar não só o seu talento e sua técnica apurada (ele era famoso, ou infame para muitos de seus iguais, por pintar diretamente sobre as telas sem esboços preliminares), mas também a sua espiritualidade intensa, se não turbulenta mesmo – um pecador que parecia não conseguir ficar longe de problemas.
Artisticamente, isso se somou a uma combinação potente que era, todavia, às vezes um pouco demais para os seus clientes eclesiásticos; por vezes eles consideravam que a sua sensibilidade tendia mais para a sensualidade do que à devoção, o que forçou Caravaggio a refazer alguns pedidos a fim de torná-los mais palatáveis às autoridades religiosas.
No fim, foi o temperamento desmedido de Caravaggio, e não o seu estilo dramático de pintura, o que o levaria à ruína.
Uma descrição contemporânea do pintor recordava que “após duas semanas de trabalho, ele irá vagar por um mês ou dois com uma espada a seu lado e um servo seguindo-o, de um salão para outro, sempre pronto para se envolver em alguma luta ou discussão, de tal maneira que é bem difícil se dar bem com ele”.
A sua reputação era tal que quando matou um jovem em 1606, talvez por acidente, ele teve poucas chances de se defender – em pouco tempo Caravaggio era procurado pelas autoridades civis. Então, partiu para Nápoles, onde inicialmente desfrutou da proteção da influente família Colonna, e no espaço de apenas alguns meses ele pintou umas de suas maiores obras, incluindo “As Sete Obras da Misericórdia”.
Ainda assim ele não se sentia seguro e pôs-se a viajar novamente, dessa vez para Malta, onde continuou a pintar, e a brigar, e em 1608 foi de novo forçado a fugir, primeiro para a Sicília e, depois, de volta a Nápoles, onde ficou gravemente ferido após um atentado contra a sua vida.
Desesperado para encontrar refúgio e perdão, no escaldante verão 1610 Caravaggio partiu para Roma com três pinturas a reboque que havia planejado dar ao poderoso cardeal Scipione Borghese, sobrinho do Papa Paulo V, quem sozinho tinha o poder de perdoar Caravaggio e, finalmente, conceder-lhe uma pausa de suas agruras.
Porém Caravaggio não conseguiu o que queria. As circunstâncias de sua morte não foram esclarecidas, e o corpo do artista jamais foi identificado em definitivo. Em algum momento durante uma escala numa cidade portuária em na Toscana, Caravaggio morreu ou, quiçá, foi morto. Com certeza ele tinha inimigos, e as três pinturas – duas das quais desapareceram e nunca foram encontradas – valiam a pena ser furtadas. Ele tinha apenas 38 anos.
A história não tratou Caravaggio com muita misericórdia, ou: a sua reputação certa vez elevada rapidamente caiu por terra após sua morte, e até mesmo os estetas do século XIX que “redescobriram” a pintura italiana desdenhavam Caravaggio como um canalha que levou a arte sacra para dentro da sarjeta junto dele.
Conforme observa Ward em seu livro, o crítico inglês John Ruskin colocou Caravaggio “entre os adoradores do depravado”, e o contemporâneo de Ruskin, John Addington Symonds, afimou que artista retratava “eventos sagrados e históricos como se estivessem sendo interpretados no gueto por açougueiros e vendedoras de peixes”.
Foi só depois da Segunda Guerra Mundial que começou uma reabilitação de Caravaggio (mesmo se persistem os rumores sobre os seus hábitos pessoais escabrosos), e em anos recentes a sua popularidade alcançou níveis inimagináveis. Ele foi chamado de o pai da pintura moderna e serviu de inspiração para o cinema noir. Como há relativamente poucas telas ainda, qualquer exposição de Caravaggio é um sucesso e toda a capela que abriga um Caravaggio se tornou um destino turístico.
Exceto com “A Sete Obras da Misericórdia”.
“Alimentar os famintos”
A pintura foi encomendada por um grupo de nobres piedosos que se dedicavam a cuidar dos pobres logo após Caravaggio chegar a Nápoles. Eles queriam um retábulo para a igreja de Pio Monte della Misericordia que refletisse a missão deles em realizar as sete obras da misericórdia estabelecidas nas Escrituras: dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; dar abrigo aos peregrinos; assistir aos enfermos; visitar os presos; e enterrar os mortos.
Ansioso pelo dinheiro, Caravaggio finalizou o trabalho em menos de quatro meses e conseguiu representar cada uma das obras da misericórdia em uma única moldura – uma composição surpreendentemente compacta que continua a revelar os seus segredos aos espectadores persistentes.
As imagens são cativantes e os temas às vezes se sobrepõem: um idoso na prisão é amamentado no peito de uma jovem mulher, um santo divide o seu manto com um homem nu e conforta um mendigo ao chão, um hospedeiro recebe um peregrino.
O problema principal foi encontrar a pintura. A fraternidade Pio Monte que encomendou a obra estipulou que ela ficasse na igreja, e mesmo quando a reputação de Caravaggio foi reavivada nas últimas décadas, “As Sete Obras da Misericórdia” esteve em grande parte esquecida porque jamais fez parte da coleção e algum museu ou participou de alguma exposição especial fora de Nápoles.
Além disso, poucos vagariam até o labirinto de ruas napolitanas em direção à igreja como Terence Ward fez um dia no ano de 1998. Surpreso com o que encontrou na pintura, ele ficou cativado pelo cuidado que a igreja teve, permanecendo em guarda numa solidão total: Angelo Esposito, funcionário da companhia de esgoto municipal que, em uma das reorganizações tipicamente disfuncionais da cidade, ficou encarregado de cuidar desta obra-prima.
Depois de anos a contemplar a imagem, Esposito chegou a apreciar e compreender “As Sete Obras da Misericórdia” de um modo que poucos estudiosos conseguiram, e o livro de Ward relata a própria transformação de Esposito em relação com o retábulo, juntamente com o passado e o presente emaranhado da própria cidade de Nápoles, e a vida de Caravaggio. “O poeta da esperança”, como o curador da pintura o chama.
O livro é uma narrativa convincente, e também chega ao núcleo do apelo de Caravaggio – isso para os observadores modernos e, talvez, para Francisco e seus admiradores. Isso porque Caravaggio inspirava-se na vida, na vida das ruas em particular, e os seus santos são camponeses; todos eles são batizados, mas são pessoas sem banho tomado: até mesmo os anjos “se parecem mais com as crianças de rua de Nápoles”, conforme escreve Ward.
Não é de admirar que a sinopse do livro é escrita por alguém semelhante a esta imagem, Pete Hamill, o famoso cronista de rua nova-iorquino, e que, numa festa em torno do livro com a presença de Ward, a biblista Elaine Pagels elogiou o autor e o arista (“É uma história de graças”, disse ela) enquanto William Vendley, presidente da Religions for Peace Internacional, falou sobre como a história o comoveu.
“Ironia é uma palavra suave demais para a forma como a misericórdia pode penetrar em sua antítese”, disse ele. Em San Francisco, o governador da Califórnia Jerry Brown – ex-seminarista – e sua esposa participaram de uma palestra sobre o livro.
“O que Caravaggio faz é trazer os homens e mulheres comuns para dentro de suas pinturas e torná-los sagrados”, declarou Ward no lançamento do livro em Nova York. “O que nos dá esperanças, não?”
“Ele é o artista dos pobres. O nosso artista!”
Será que Francisco irá se juntar a este coro de hosanas?
Como acontece com quase todas as coisas relativas a Caravaggio e “As Sete Obras da Misericórdia”, não há uma resposta simples; o que existe, isto sim, é muito debate.
Em Nápoles, Esposito e a fraternidade Pio Monte, que ainda possui a pintura, parecem esperar que este “papa das surpresas” possa ir visitá-los um dia. “Eles estão apenas esperando o telefonema”, disse Ward.
E por que não? Francisco gosta de Caravaggio, gosta da misericórdia. O papa, porém, anda ocupado e dedicar um dia de viagem para uma pintura, mesmo sendo este o retábulo de Caravaggio, é pedir demais.
Uma sugestão do presidente italiano de levar a pintura a Roma para uma exposição durante o Ano da Misericórdia onde Francisco – e muitos, muitos outros – pudessem vê-la desencadeou um intenso debate. O líder da fraternidade Pio Monte foi a favor, mas outros cidadãos napolitanos protestaram, em voz alta, e a ideia de levar a pintura para fora da cidade pela primeira vez foi anulada.
Algumas alternativas foram sendo propostas, tais como recriar a pintura como uma obra “multissensorial” em Roma, na qual cada obra da misericórdia seria recriada para os espectadores ver, ouvir e tocar. Mas isso não soa tão atrativo quanto contemplar a criação original.
“No final, a arte de Caravaggio não mostra bispos em roupas de seda dando esmolas aos necessitados”, diz Esposito a Ward a certa altura. Ele é o artista dos pobres. O nosso artista! Não há ninguém como ele. Está tudo aí! (…) O que mais você quer?”
Legenda da imagem:
“The Guardian of Mercy: How an Extraordinary Painting by Caravaggio Changed an Ordinary Life Today” De Terence Ward. Editora Skyhorse Publishing, 2016.
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Uma obra-prima de Caravaggio sobre a misericórdia se liga ao Papa Francisco através dos séculos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU