29 Março 2022
O inútil massacre representado pela invasão da Rússia na Ucrânia terá sérias repercussões sobre o poder do presidente russo Vladimir Putin. Mas também sobre o seu fiel escudeiro, o patriarca de Moscou, Kirill. A ponto de induzir alguns a levantarem a hipótese de uma possível sucessão.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada em Settimana News, 25-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Poderia ser a vez do primaz Onofre, bispo metropolita da Ucrânia e da Igreja pró-russa local. Ele foi o único que se distanciou claramente das decisões do czar e denunciou a guerra, seguido pelo seu sínodo (representando uma centena de bispos de 52 dioceses ucranianas). Enquanto isso, todo o episcopado russo se calou.
A hipótese de tal sucessão na sede de Moscou é altamente improvável, mas o simples fato de ter sido veiculado na mídia é um indício significativo. Divulgada nos comentários do site russo (dissidente) Meduza, foi retomado por outros, incluindo Parlons d’Orthodoxie, que normalmente é pró-Rússia.
O teólogo ortodoxo francês Jean-François Colosimo não hesita em pedir a destituição do patriarca: “Está no direito do trono de Constantinopla, a quem compete o exercício da primazia (...) de reunir os responsáveis das Igrejas locais, fortemente prejudicadas por Kirill, para depô-lo com um ato colegial. Ou seja, destituí-lo, praticando uma excomunhão que ele mesmo provocou”.
Embora qualificando a hipótese como “improvável”, o autor do artigo do Meduza, Andrey Pertsev, reúne as palavras de Chapnin, ex-colaborador do patriarca de Moscou: “Ele seria o candidato número um. O povo russo precisa de uma personalidade capaz de defender a Igreja diante do Estado. O metropolita Onofre, a esse respeito, é pouco conformado. Ele promove uma Igreja não mundana, claramente ‘outra’ em relação ao poder. Há uma demanda generalizada nesse sentido”.
Ao longo de uma noite, após a invasão, Onofre denunciou fortemente o incidente, garantindo aos outros bispos e aos padres a liberdade de aderirem à rebelião antirrussa das suas comunidades. Já se fala de cerca de 20 dioceses que suspenderam a memória de Kirill na celebração litúrgica.
Mas Onofre também interveio após vários dias de guerra para não demonizar os russos: “A nossa santa Igreja Ortodoxa Ucraniana sempre ensinou, desejou e pregou o amor entre os povos. Acima de tudo, desejamos a paz e a harmonia entre russos e ucranianos. Queremos que esses povos vivam em boa vizinhança, no respeito recíproco, na paciência e no amor. Fomos e ainda somos insultados por isso, tratados com todos os tipos de insultos e expressões obscenas. Mas não levamos isso em consideração. Ainda hoje desejamos que o povo russo e o povo ucraniano vivam juntos, em paz”.
A hipótese de uma sucessão de Kirill é sustentada por uma autonomia plena e mais confiável da sua Igreja em relação a Moscou. Facilmente compartilhada entre os seus, talvez com uma memória litúrgica inicial do patriarca de Constantinopla, Bartolomeu. Uma possível fusão com a Igreja autocéfala já presente na Ucrânia e representada pelo bispo Epifânio não parece ter consensos. Não só porque a Igreja de Onofre ainda é a mais numerosa, mas também devido às tensões que dividiram as duas comunidades nos últimos anos. De todos os modos, a decisão por uma autonomia em relação a Moscou terá que ser aprovada por um concílio dos bispos locais.
As bombas, as inúmeras mortes, a destruição e o rio de refugiados destruíram todo o respeito na Ucrânia pelo patriarca de Moscou, que se fundiu com a posição de Putin.
Alexander Soldatov, ex-diretor do site Credo, do Patriarcado de Moscou, sublinha: “A Igreja Ortodoxa russa muito provavelmente se encontrará isolada no conjunto do mundo cristão em razão da justificação da guerra realizada pelas lideranças da Igreja”. A decisão de não fazer mais a memória litúrgica dele não é apenas das dioceses e das paróquias, mas também de alguns dos mais prestigiosos mosteiros ucranianos.
O grupo de trabalho dos teólogos ortodoxos que atuam na Alemanha sublinhou: “Acreditamos firmemente que causar sofrimento e destruição não pode ser teologicamente justificado e não está no sentido do Evangelho”.
A história de Vladimir Michajlovič Gundjaev (nome civil de Kirill) é menos banal do que se pensa. Filho e neto de padres que conheceram os gulags stalinistas, Kirill tornou-se padre aos 22 anos de idade, depois de apenas três anos no seminário de Leningrado.
Aos 25 anos, era representante do patriarca de Moscou no Conselho Ecumênico de Igrejas. Descobriu o Ocidente e cultivou paixões esportivas (como o esqui) e pelos carros de alta potência. Foi informante dos serviços secretos. De orientação liberal, traduziu ao russo algumas obras de Rahner e de von Balthasar.
Após a dissolução da União Soviética, retornou para lá e, após uma curta estada em Smolensk por dissabores com o diretor da KGB, Pavolov, voltou a Moscou e presidiu o Departamento de Relações Exteriores do patriarcado.
É patriarca de Moscou desde 2009, e a sua elaboração do “mundo russo”, ou seja, a responsabilidade pastoral de Moscou sobre todos os territórios da ex-União Soviética, atende às expectativas imperiais de Putin. Os anos posteriores podem ser diferenciados em três fases.
Na primeira, de cunho liberal, ele consentiu com o desenvolvimento de elementos democráticos, com a abertura ecumênica, com o diálogo teológico com a tradição ocidental. Depois, paralelamente ao desenvolvimento da política putiniana, fechou progressivamente os espaços de liberdade e guiou de modo pouco liberal a sua Igreja, enriquecendo-a com dinheiro, edifícios, importância institucional. Amplamente favorecido por Putin.
Com o cisma da autocefalia ucraniana (Bartolomeu-Epifânio) e a surpreendente resistência da Igreja pró-Rússia, passou a se pensar como o conjunto da Ortodoxia, como uma Igreja universal. Abriu-se a toda a África, ao espaço asiático (China e Japão) e enviou os seus padres à Turquia e à Grécia, mantendo-os ligados aos patriarcas do Oriente com os proventos das peregrinações russas e a proteção política do czar.
Deve-se assinalar uma singular divagação do seu colaborador, Hilarion Alfeyev (seu sucessor à frente do Departamento de Relações Exteriores), que, em um diálogo televisivo, abordou a memória discutida de Gregory Rasputin (1869-1916). Figura perturbadora de starez na corte imperial, muito influente sobre esposa do czar, morto em uma conspiração palaciana.
Na opinião de Hilarion, “muitos dos conselhos que Rasputin deu ao czar estavam corretos. O czar muitas vezes não dava ouvidos a esses conselhos. Talvez, se os tivesse ouvido, o destino da Rússia teria sido diferente”. Ele aludia, em particular, à sua opinião de não entrar na guerra.
Um mês de guerra está mudando radicalmente o clima social do país ucraniano. “Se a história ajudou a forjar uma experiência comum entre os dois países (Rússia e Ucrânia), o presente está dividindo ucranianos e russos para sempre. A fábula do Vladimir Putin de um único povo, com as ações bélicas subsequentes, tornou absurdas as suas afirmações. A memória histórica dos ucranianos está mudando. Aqueles que compartilhavam a ideia de um atravessamento comum das provas do passado agora tendem a perceber as relações em sentido oposto: a resistência ucraniana contra a opressão russa” (V. Kulyk).
Não é por acaso que a guerra atual é apontada como um novo Holodomor (a grande fome dos anos 1930, causada por Stalin para curvar os kulaks, camponeses ucranianos). Está crescendo um ódio profundo contra o povo russo. As muitas famílias que têm membros nos dois fronts não se falam mais. Os laços se romperam.
Na esperada reconstrução futura, a tarefa das fés e das Igrejas será enorme.
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Depois de Kirill? O futuro da Ortodoxia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU