15 Março 2022
"Em vez de insultos, esperamos argumentos. Enquanto isso, continuamos a exercitar o pensamento, que é, aliás, a possibilidade de distinguir - palavras e conceitos. Não vamos reduzir Putin a Hitler, não vamos comparar 2022 com 1938 (1), não vamos confundir o valor genérico do verbo 'resistir' com o significado político da Resistência italiana. Caso contrário, em todas as inúmeras guerras de invasão europeias, teria existido a chamada resistência", escreve Donatella Di Cesare, filósofa italiana e professora de Filosofia Teórica na Universidade de Roma “La Sapienza”, em artigo publicado La Stampa, 14-03-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ela, "Nas últimas décadas, a política abdicou em favor da economia, reduzindo-se cada vez mais à mera administração. Nos últimos dois anos da pandemia, abdicou perigosamente em favor da ciência. Mas nunca imaginamos que, em vez de retomar conscientemente seu papel indispensável, abdicaria em favor da guerra. Isso é gravíssimo. Há política onde há pensamento. Deveríamos talvez aceitar uma política de autoaniquilação?"
Ainda é possível pensar nestes tempos de guerra? Ou deveríamos admitir que, na nova fase bélica, na qual acabamos de entrar, o pensamento não passa de um obstáculo? Porque esta parece ser a tendência. Há um agressor e um agredido - Putin lançou o exército russo contra os ucranianos invadindo ilegalmente seu território. A partir desse cenário trágico, prenúncio de futuros infortúnios, podemos nos limitar à emotividade maniqueísta: a piedade humana pelas vítimas e a estigmatização do tirano.
Os dois gestos mais imediatos, os mais óbvios e instantâneos. Quem tenta ir além, quem se atreve a ultrapassar uma fronteira a cada dia mais militarizada, é repreendido, intimidado, passa por traidor. Ai de contextualizar os acontecimentos, vê-los com um pouco mais de distanciamento em sua complexidade. Acaba-se em alguma lista negra. Ou você solta a indignação ou é atingido pela indignação, ou se adapta ao imediatismo do ódio ou se torna seu alvo. Tudo se reduz ao embate entre o bem e o mal, ao eficaz e simplista esquema binário.
A distância necessária ao pensamento é tomada por equidistância, a reflexão é confundida com cinismo. No entanto, devemos estar bem cientes de que o imediatismo é sinônimo de violência. E a violência chama mais violência em uma espiral sem fim. Pode-se objetar: faz sentido o exercício do pensamento enquanto pessoas inocentes estão morrendo sob bombardeios criminosos? Não é hora de agir e pronto?
O pensamento - dizem alguns - até poderia enturvar as águas. Há um agressor e um agredido. O que mais deveríamos pensar? A resposta instintiva é suficiente. Assim, se por um lado acompanhamos a reportagem, que com imagens fragmentárias de fumaça e fogo, de corpos mutilados e mulheres em fuga, acaba por inflamar a nossa emotividade, pelo outro ouvimos o especialista ou o estrategista que nos tranquiliza com números e tabelas, aquelas das sanções e aquelas dos armamentos europeus. Com que propósito pensar?
Parar para olhar o contexto, para questionar as causas de um conflito complexo, significa tentar vislumbrar soluções. Mas também significa deixar aberto o espaço da ética e da política. Os belicistas que chamam às armas em nome dos príncipes anulam a ética. A questão, no entanto, diz respeito diretamente à política. Lamento que, enquanto os antigos amigos de Putin estão em sua maioria calados, líderes de partidos de esquerda e moderados, que deveriam oferecer uma visão mais ampla, tenham assumido posições extremistas endossando o envio de armas e tecendo louvores a uma Europa beligerante.
Slogans bombásticos, palavras de ordem, jargão militarista. Nas últimas décadas, a política abdicou em favor da economia, reduzindo-se cada vez mais à mera administração. Nos últimos dois anos da pandemia, abdicou perigosamente em favor da ciência. Mas nunca imaginamos que, em vez de retomar conscientemente seu papel indispensável, abdicaria em favor da guerra. Isso é gravíssimo. Há política onde há pensamento. Deveríamos talvez aceitar uma política de autoaniquilação?
A veemência, a fúria, o rancor com que são atacados aqueles que não se alinham à militarização diz muito sobre o cenário presente e futuro. Chegamos ao ponto em que nos deveríamos envergonhar de ser pacifistas: pretende-se passar aqueles que pensam assim como um resíduo do passado, um "neo do contra", alguém que "não tem pudor de exibir sua própria estupidez", ou até mesmo um "terraplanista da política".
Infelizmente é exatamente o contrário: quem acredita na necessidade de interromper a violência, na possibilidade de paz, acredita na política. Portanto, não aceita a simplificação. Um terrível conflito entre dois Estados nacionais no contexto europeu não é um jogo de futebol, não é um duelo, nem pode ser reconduzido à polarização que evita a complexidade. Por exemplo - e eu também disse isso sobre outros conflitos - o mais fraco não está necessariamente do lado da razão. Caso contrário, teríamos que nos render aos paradigmas da mais turva e obtusa vitimologia.
Em vez de insultos, esperamos argumentos. Enquanto isso, continuamos a exercitar o pensamento, que é, aliás, a possibilidade de distinguir - palavras e conceitos. Não vamos reduzir Putin a Hitler, não vamos comparar 2022 com 1938 (1), não vamos confundir o valor genérico do verbo "resistir" com o significado político da Resistência italiana. Caso contrário, em todas as inúmeras guerras de invasão europeias, teria existido a chamada resistência.
Na Ucrânia não há uma guerra civil, não há membros da resistência lutando contra os fascistas. A menos que se queira inscrever um miliciano ucraniano na Brigada Garibaldi. Aqui são os políticos com capacetes que turvam as águas, talvez por medo de não serem seguidos por seus eleitores. E, finalmente, sabemos onde se constrói a paz e onde se quer introduzir a guerra em espírito. A praça de Florença (2), lotada de bandeiras ucranianas, onde é aplaudido Zelensky que invoca a zona de exclusão aérea, ou seja, a guerra, já é uma praça intervencionista.
1. Referência à Conferência de Munique, convocada por Hitler, tendo a presença Chamberlain, primeiro ministro britânico, o primeiro ministro francês e o representante do governo italiano liderado por Mussolini. A Conferência de Munique é o símbolo do fracasso da política de apaziguamento, foi organizada às pressas em setembro de 1938 para debater a crise dos Sudetos na Checoslováquia. Netflix lançou em 2022 o suspense histórico sob o título Munique. No limite da guerra.
2. Referência à manifestação realizada no sábado, 11-03-2022, em Florença dos assim chamados 'equidistantes'.
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Paz, Putin e o Ocidente. Minha opinião divergente. Artigo de Donatella Di Cesare - Instituto Humanitas Unisinos - IHU