A influente pensadora feminista está enojada “por causa da terrível e violenta invasão da Ucrânia” e argumenta que “as justificativas incoerentes e divagantes de Vladimir Putin para a guerra que ele está travando contra o povo da Ucrânia foram um exercício de patriarcalismo estridente e histérico”. Ela clama categoricamente pela não violência na luta contra a injustiça e afirma que “misóginos e homofóbicos ganham um senso de seu valor acreditando em sua superioridade”. Ela também se declara entusiasmada com o novo governo do presidente eleito do Chile, Gabriel Boric.
A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera, 04-03-2022. A tradução é do Cepat.
Judith Butler é uma das pensadoras mais influentes do mundo e é frequentemente descrita como uma “celebridade acadêmica internacional”. Filósofa e teórica do gênero, seus estudos são centrais, tanto no estudo do feminismo, como na teoria queer e na teoria literária, quanto na filosofia política.
Butler nasceu em 1956 e é professora emérita de Literatura Comparada na Universidade da Califórnia em Berkeley, onde leciona desde 1993. O gênero, segundo Butler, não é essência, nem natureza, nem binário, mas “é constituído performativamente pelas próprias ‘expressões’ que se diz que são seus resultados. Seu livro mais relevante, El género en disputa [O gênero em disputa], é leitura obrigatória sobre o assunto.
Seu trabalho não é apenas teórico: ela tem uma reconhecida liderança na luta pelos direitos da comunidade LGBTQI+, pelos direitos humanos e pelo feminismo. Butler tem participado ativamente de várias organizações de direitos humanos, incluindo o Centro de Direitos Constitucionais de Nova York e o conselho consultivo da Jewish Voice for Peace. Entre muitos reconhecimentos, ela recebeu o Prêmio Andrew Mellon por suas realizações acadêmicas no campo das humanidades; o Prêmio Adorno (2012) por suas contribuições à filosofia feminista e moral, e o Prêmio Brudner da Universidade de Yale pelo conjunto de sua obra sobre estudos lésbicos e gays. Em 2014, recebeu a distinção Chevalier of the Order of Arts and Letters do Ministério da Cultura francês, enquanto em 2015, a distinção “geógrafa honorária” pela American Association of Geographers, além de ser eleita membro correspondente da Academia Britânica. Ela é membro da American Philosophical Society e da American Academy of Arts and Sciences desde 2019. Seu último livro é A força da não violência: um vínculo ético-político (Boitempo, 2021).
Dos Estados Unidos, ela responde às perguntas de La Tercera pelo correio eletrônico.
Qual é a sua visão da guerra desencadeada na Ucrânia?
Estou, é claro, enojada por causa da monstruosa e violenta invasão da Ucrânia, da ameaça de guerra nuclear de Putin e do deslocamento radical de tantas pessoas que estavam vivendo na Ucrânia. Mas vamos contextualizar essa situação: Putin é um autoritário nacionalista em um mundo com vários autoritários nacionalistas, como Bolsonaro, Orban, Trump, Salvini e Erdogan, para citar alguns. Os outros não estão engajados em guerra e usurpação como Putin, mas Erdogan travou uma guerra contra os curdos, recusando-se a respeitar seu território. Todos eles abandonaram as pessoas nas fronteiras, envolveram-se em políticas xenófobas e buscam (ou, no caso de Trump, buscaram) expandir seus poderes. Enquanto observamos o povo da Ucrânia fugir de seu próprio país, talvez seja hora de fazer um balanço de todas as formas de migração forçada, expulsão e desterritorialização que se tornaram a marca registrada do autoritarismo contemporâneo. As divagantes e incoerentes justificativas de Putin para sua guerra violenta contra o povo da Ucrânia foram um exercício de patriarcalismo estridente e histérico. Lembremos que esta guerra também busca estabelecer sua masculinidade, e a masculinidade da nação, e que na Rússia coincide com o ataque ao feminismo e às pessoas LGBTQI em nome dos “valores familiares tradicionais”. O que há de tradicional nesses valores? O poder patriarcal e a violência.
Seu livro ‘A força da não violência’ é muito esclarecedor. Por que é importante abraçar a não violência, especialmente ao combater a injustiça social?
Há uma boa razão: não queremos imitar aqueles que nos violam. Se o fizermos, produziremos um mundo mais violento. Devemos lutar – ativamente, até agressivamente – por um mundo menos violento.
“Acabam de instaurar mais violência no mundo”, você disse ao The New Yorker sobre as pessoas que usam a violência para combater a injustiça social. Você poderia aprofundar isso?
Podemos dizer a nós mesmos que vamos nos envolver na violência para determinados propósitos e não para outros. Mas então pensaremos que nossa intenção continuará a restringir a violência que criamos. No entanto, a violência tem uma forma de fomentar mais violência, superando a intenção de quem a cria. Portanto, não devemos imaginar que a “violência controlada” seja possível, isso é uma contradição, um oxímoro.
No Chile estamos preparando uma nova Constituição, que se assemelha em alguns aspectos ao processo sul-africano. Como não cair na vingança?
O problema, evidentemente, é que a injustiça e a violência devem acabar, e então ser reconhecidas, não uma vez, mas de forma contínua. Precisamos de museus, esforços educacionais e práticas culturais contínuas para manter vivo o reconhecimento da perda e da injustiça. Se pensamos que a “amnésia” é a única maneira de evitar a vingança, estamos equivocados. Porque as mesmas injustiças voltarão se não buscarmos o poder transformador de reconhecer a história pelo que ela é, e isso inclui reconhecer todas as maneiras pelas quais a violência continua sob novos nomes.
A Covid teve um efeito muito prejudicial sobre as mulheres em todo o mundo: violência, perda de empregos, falta de corresponsabilidade que trouxe sérios problemas de saúde mental. Como você acha que devemos enfrentar essa situação a partir de uma perspectiva global?
Sim. Vimos quantas mulheres tiveram que perder seu emprego para assumir trabalhos em tempo integral como cuidadoras dentro da família, e também sabemos que muitas mulheres ficaram trancadas em suas casas, sujeitas a abuso doméstico. Por mais importante que seja pensar na situação das mulheres na pandemia, devemos considerar também a situação das e dos jovens queer e trans que perderam seus espaços de encontro, e a situação de todos aqueles que são pobres, para quem ficou mais e mais difícil ganhar a vida dignamente. Lembremos que “mulheres” é uma categoria complexa, e que quando pensamos na opressão das mulheres, temos que pensar cuidadosamente nas formas que a opressão assume. As questões da alfabetização, educação, saúde e violência são vistas de forma diferente quando falamos de mulheres indígenas, mulheres de cor, mulheres queer e trans. Precisamos quebrar a homogeneidade da categoria de mulheres não apenas para o bem da inclusão, mas também para descrever o funcionamento real do poder e da opressão.
Do seu ponto de vista, de onde vem essa violência contra a mulher? É uma reação aos seus avanços?
A história da violência contra as mulheres nem sempre acompanhou o progresso feminista. De fato, essa violência é anterior ao advento do feminismo e foi uma das razões do seu surgimento. Sim, existem formas de retrocesso que buscam “relocalizar” as mulheres no lar, e isso significa que elas saem da esfera doméstica para o trabalho, para a vida social e como expressão da liberdade corporal. Este último conceito é crucial para refletirmos. Porque quando há homens que acreditam que a “violação conjugal” é seu direito, isso nos diz que pensam na violência como seu privilégio e nos corpos das mulheres como sua propriedade.
Você vê uma janela de possibilidade para uma sociedade mais igualitária após a Covid?
Talvez todos nós tenhamos sonhado que, quando as indústrias fechassem e as pessoas parassem de fazer da “produção econômica” o objetivo de suas vidas, descobririam outros valores, incluindo sua interdependência em escala global. Espero que a interconexão que o vírus trouxe à luz nos ajude a desenvolver solidariedades globais para combater a destruição climática, o extrativismo e o controle patriarcal.
Por conta da Covid, o trabalho de cuidar de crianças e idosos tem sido valorizado. Como você acha que deveria ser reconhecido?
Estou preocupada que, à medida que sairmos da pandemia – se sairmos –, os idosos e os imunocomprometidos não retornarão facilmente aos espaços públicos e encontros públicos. Preocupa-me que surja uma nova forma de desigualdade em que os saudáveis, incluindo aqueles que estão imunologicamente preparados para o vírus, abandonem aqueles que não podem, apesar das vacinas, acumular anticorpos ou células T, ou que não podem combater o vírus por outras razões médicas. Acredito que isso levará à exclusão dos idosos e dos imunocomprometidos, incluindo as crianças, do mundo comum, e que isso será aceito como um novo normal. Essa perspectiva é aterrorizante, porque significa, mais uma vez, que existe uma população descartável, cuja privação de direitos permite que outros sejam livres.
Já se passaram 32 anos desde a publicação do seu influente livro, ‘El género en disputa’. Como os estereótipos de gênero funcionam e afetam as nossas vidas, três décadas depois?
Talvez não haja uma perspectiva global sobre esta questão. Precisamos encontrar maneiras de criar colaborações, apoiar traduções, ver até onde chegaram as mulheres na superação das limitações que restringem sua liberdade e prejudicam suas reivindicações de igualdade. A história não avança ininterruptamente. Temos que esperar reações e retrocessos, e criar nossas estratégias para enfraquecer a oposição.
Você tem fortes ligações com os movimentos feministas latino-americanos. Como os vê hoje?
Tenho grande respeito pelos feminismos latino-americanos e entendo que essa história é complexa, que o feminismo na região não é uma coisa só. Mas a luta contra a violência na América Latina é ao mesmo tempo uma luta contra a violência estatal, o assassinato e a violação autorizados pelo Estado, especialmente sob a ditadura, mas também contra a violência cotidiana, a violência na família e nos locais de trabalho. Vejo que algumas das batalhas internas em que as feministas se envolvem não estão ocorrendo da mesma forma na América Latina. A aliança com as lutas antirracistas, anticapitalistas, queer, trans e indígenas permite que o mundo veja como a solidariedade pode ser dinâmica e poderosa.
Você mesma já sofreu violência, principalmente em uma visita ao Brasil. Por que há tanto medo e ódio contra o feminismo?
Talvez seja o feminismo ou talvez seja a política e os modos de vida LGBTQI+. Podemos ver que há algumas pessoas que querem que a família heteronormativa e os papéis tradicionais de gênero sejam formas de vida necessárias e imutáveis. Se, por outro lado, são variáveis, mutáveis, essas pessoas sentem que sua própria existência está sob ataque e em perigo. Este é um problema “psicossocial” que está relacionado com a sensação que muitas pessoas têm de que o mundo que conhecem está em perigo. Mas a culpa não é do gênero. As mudanças climáticas, o capitalismo e as formas patriarcais de poder nos trouxeram esse perigo.
No Chile, dois deputados solicitaram às universidades públicas uma lista de professores/as que ensinam estudos de gênero. Onde esse tipo de requerimento pode levar?
O ataque aos estudos de gênero está acontecendo em todo o mundo. Na Hungria, Brasil, Índia, Itália e França, por exemplo. Essa é uma reação ao progresso que fizemos para tornar as vidas LGBTQI mais habitáveis, mais reconhecidas, mais afirmadas na política, nas leis e na vida cotidiana. Muitas pessoas temem que aceitar que as vidas de mulheres e pessoas LGBTQI são igualmente valiosas diminuirá seu (próprio) valor. Mas por que a igualdade é tão ameaçadora? Deve ser porque misóginos e homofóbicos extraem um senso de seu valor acreditando em sua superioridade. A sexualidade e o gênero são históricos. Suas formas mudam com o tempo. E, no entanto, a reação sustenta que são leis eternas, até mesmo mandatos divinos, que são incorporados por aqueles que são mais odiosos e estreitos. Quando esse tipo de ódio e desigualdade é defendido pelas igrejas, o cristianismo sofre, porque pode e deve ser uma religião de amor e de afirmação da diferença.
A nova Constituição [chilena] é redigida com paridade de gênero e com a intenção de estabelecer uma democracia paritária. Como você acha que isso deve ser configurado?
Ah, isso não cabe a mim dizer. Há uma história forte e impressionante de feminismo no Chile, e essas ativistas saberão como mudar e criar leis da melhor maneira.
O novo governo do presidente eleito Gabriel Boric escolheu um gabinete com mais mulheres do que homens e com membros das dissidências sexuais. Que impacto isso pode ter em nossa sociedade e no mundo?
Estamos todos entusiasmados para ver a diferença que isso fará. Fiquei muito aliviada por ele ter derrotado a oposição, por ter enxotado o espírito e a prática de Pinochet do Chile.
Voltando ao seu país: você teme que Donald Trump volte a ser presidente?
Não acho que Trump seja eleito novamente, mas segue se esforçando ao máximo para destruir o que resta de democracia na América. Temo a contínua irrupção de milícias fascistas e racistas e a falta de coragem dos “liberais” para defender os ideais democráticos.
O que explica a ascensão do populismo radical de direita em diferentes países?
Teríamos que olhar para diferentes países para fazer um julgamento informado sobre o que explica o surgimento da política de direita. Vejo mais autoritarismo e fascismo do que populismo. Não acho que o “populismo” possa descrever corretamente as formas de racismo contra os indígenas, negros e pardos, imigrantes nos EUA e na Europa, por exemplo. Entendo que o neoliberalismo produziu populações descartáveis, mas não é apenas uma política econômica. É também uma forma de destruir os fundamentos da vida democrática, a possibilidade de trabalharmos juntos para prover e apoiar uns aos outros. Em vez disso, vemos corporações obtendo lucros escandalosos enquanto trabalhadores são abandonados e, em lugares como o Brasil, o número de mortos por Covid aumentando.
O que pode ser feito para proteger a democracia contra qualquer tipo de autoritarismo?
Continuamos precisando de movimentos sociais fortes de esquerda que não releguem mulheres, queers e trans à margem, que saibam relacionar capitalismo e racismo e construam formas de solidariedade radicalmente horizontais. Nossos movimentos sociais devem prefigurar o mundo que queremos construir.