11 Fevereiro 2022
“O fenômeno do ressurgimento da extrema direita pelo mundo afora e aqui no Brasil, nos últimos 8 anos, precisou criar estigmas contra os quais lutasse e arregimentasse seus fanáticos. 'Comunista' é na prática tudo que se opõe a um projeto dominador fascista e totalitarista que usa a defesa da pauta de costumes, da família e de Deus como poleiro seguro em galinheiros fedorentos”, escreve Manuel Joaquim R. dos Santos, presbítero da Arquidiocese de Londrina – PR.
Em mais de 30 anos de Ministério, oportuna e inoportunamente (2 Tim 4), tenho pregado o Evangelho. Pura e simplesmente, o Evangelho. Com responsabilidade. Com estudo teológico e exegético, como deve competir a qualquer pregador que se preze! Tenho tirado “coisas novas e velhas” (Mt 13,52), suado e exalado o odor dos ensinamentos de Cristo. Já passei por situações constrangedoras e difíceis ao defender os valores do cristianismo. Mas como agora, nunca!
Não me são estranhos os ensinamentos dos Santos Padres Apostólicos (Crisóstomo, Ambrósio, Agostinho, Irineu, os da Capadócia...). Com eles aprendi, como desde cedo a minha Igreja não é intimista e não se preocupa apenas com a salvação das almas! Assim, como padre, tenho pregado e vivido. Mas também sou de um tempo privilegiado. Desde Leão XIII, com a encíclica Rerum Novarum (1891), passando por inúmeros textos ao longo do século XX, mas principalmente com Mater et Magistra, de João XXIII (1961), para sublinhar os setenta anos dessa primeira Encíclica Social, e reafirmar que a vida do homem concreto, na sua labuta e sustento, são preocupações da Igreja e estão no bojo de sua Missão!
Paulo VI, na Populorum Progresso (1967), dizia o seguinte: nas grandes encíclicas Rerum Novarum, de Leão XIII, Quadragesimo Anno, de Pio XI, Mater et Magistra e Pacem in Terris, de João XXIII – não falando das mensagens de Pio XII ao mundo – os nossos predecessores não deixaram de cumprir o dever que lhes incumbia de projetar nas questões sociais do seu tempo a luz do Evangelho!
Porém, não para por aí o ensinamento da “nossa Igreja”! João Paulo II retoma a terminologia “Doutrina Social da Igreja”, utilizada por Pio XII, e a apresenta como teologia e teologia moral (Sollicitudo Rei Socialis, n. 41). A centralidade do ser humano é um traço marcante de seu magistério, indicado em sua encíclica programática Redemptor Hominis, na qual afirma que “todos os caminhos da Igreja levam ao homem”.
A primeira encíclica social de João Paulo II é exatamente comemorativa dos 90 anos da Rerum Novarum e se chama Laborem Exercens. Dirige-se a uma problemática central da questão social que é o trabalho. O trabalho é uma dimensão fundamental da existência do homem na Terra (LE 4), conforme o mandamento bíblico (Gn 1, 27-28). São fundamentais os princípios éticos da Laborem Exercens:
1.O homem é sujeito e fim de todo processo econômico;
2.A importância do trabalho em sua dimensão subjetiva;
3.O trabalho tem prioridade sobre o capital;
4.Existe uma vinculação íntima entre trabalho e capital;
5.Qualquer sistema de propriedade deve servir ao destino universal dos bens.
É na Laborem Exercens, de João Paulo II, que encontramos uma das melhores ideias da Doutrina Social: “o princípio do uso comum dos bens criados para todos é o primeiro princípio de toda a ordem ético-social, é um direito natural, primordial e prioritário”!
São do mesmo papa as palavras na Encíclica Solicitudo Rei Socialis (1987): “Ao mesmo tempo, também entrou em crise a própria concepção «económica» ou «economicista», ligada à palavra desenvolvimento. Hoje, de facto, compreende-se melhor que a mera acumulação de bens e de serviços, mesmo em benefício da maioria, não basta para realizar a felicidade humana”!
Ou então nos parágrafos seguintes: “há aqueles — os poucos que possuem muito — que não conseguem verdadeiramente «ser», porque, devido a uma inversão da hierarquia dos valores, estão impedidos pelo culto do «ter»; e há aqueles — os muitos que possuem pouco ou nada — que não conseguem realizar a sua vocação humana fundamental porque estão privados dos bens indispensáveis”.
“O mal não consiste em «ter» enquanto tal, mas no fato de se possuir sem respeitar a qualidade e a ordenada hierarquia dos bens que se possuem. Qualidade e hierarquia que promanam da subordinação dos bens e das suas disponibilidades ao «ser» do homem e à sua verdadeira vocação”, eis um dos pilares da Doutrina Social do papa da Polônia.
Na sua Encíclica, Fratelli tutti, publicada em 2020, o Papa Francisco abordou, entre outros temas, uma das questões mais centrais da doutrina social católica: a destinação universal dos bens. O tal comunismo começa aqui!
Durante mais de um século, sempre existiram os críticos ao pensamento social da Igreja e os que o aplaudiram, como um resgate do que afinal está nos evangelhos e tão bem foi elaborado pelos Santos padres. Em raras ocasiões – se as teve – a Igreja foi acusada de comunista! Contudo, o mesmo papa, autor da explicitação do destino universal dos bens, passou para a história como um dos principais responsáveis pela queda do que o mundo conhecia como “comunismo” na Europa oriental!
“A fé católica ensina que os bens da criação têm um destino comum, e apenas a essa luz é que é possível entender as diversas questões que emergem na vida em sociedade, entre elas o direito à propriedade privada. Como em tudo na doutrina social da Igreja, o quadro antropológico, isto é, a concepção de ser humano em que se entende a questão da propriedade não é nem o individualismo nem o coletivismo: é a noção de pessoa, isto é, a de sujeito único e irrepetível, aberto às relações, que só se realiza na vida de comunhão” (Filipe Koller). E é de fato aqui que encontramos o sui generis da Igreja.
Não existe posicionamento ideológico por parte dela. Existe apenas uma centralidade da pessoa humana, à qual tudo se deve ordenar. Se ela parece lançar mão de teorias e instrumentos desenvolvidos por correntes de esquerda ou de direita, na verdade há uma antecipação cronológica e conceitual que tem seu ponto de referência na antropologia Bíblica.
A Igreja católica não aceita a tese de que “o mercado deve estar livre para produzir riqueza”! O Estado tem a obrigação moral de reger e impor leis ao mercado para que a economia sirva o bem comum. O mercado “livre e solto” já demonstrou que não tem a pessoa humana como maior ponto de interesse e referência e que, em última análise, pode se voltar contra ela na sua dignidade e valores inerentes.
“Existem exigências humanas importantes que escapam à lógica do mercado; há bens que, devido à sua natureza, não se podem nem se devem vender e comprar”, diz João Paulo II. O desafio de se construir uma sociedade que reflita o desejo de Deus e os valores do Evangelho levam a Igreja a ficar atenta e a defender a justiça social como elemento imprescindível nessa construção.
João Paulo II, na Centesimus annus, não titubeia: A posse dos meios de produção, tanto no campo industrial como no agrícola, é justa e legítima, se serve para um trabalho útil; pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho. Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e constitui um abuso diante de Deus e dos homens” (n. 43). Parece que João Paulo II, agora santo, era comunista!
Não tenhamos nenhuma dúvida. O fenômeno do ressurgimento da extrema direita pelo mundo afora e aqui no Brasil, nos últimos 8 anos, precisou criar estigmas contra os quais lutasse e arregimentasse seus fanáticos. “Comunista” é na prática, tudo que se opõe a um projeto dominador fascista e totalitarista que usa a defesa da pauta de costumes, da família e de Deus como poleiro seguro em galinheiros fedorentos.
Não é um fenômeno inédito, mas sempre vem como reação à decadência do processo democrático envolvendo corrupção nas instituições ou o não atendimento das necessidades básicas dos cidadãos, como trabalho, educação e principalmente segurança! E nós sabemos como a democracia, o “melhor de todos os imperfeitos sistemas de governo” (Churchill), tem deixado a desejar nos últimos 40 anos.
O Estado do Welfare State viu-se engolido nas últimas décadas por um neoliberalismo desenfreado, principalmente a partir de Reagan e Thatcher, que pôs o sistema democrático em risco e abriu espaço para aventuras já conhecidas na primeira metade do século passado!
Em Portugal, o Chega (partido de extrema direita) se configurará provavelmente como a terceira força política nas eleições de 2022. Ali, como noutros países (Polônia, Áustria, Hungria), a única razão para esse crescimento é a decepção dos portugueses com a classe política e a verborreia perversa dos extremistas de que o “país precisa de seriedade e ordem, livre da corrupção dos políticos tradicionais”! Aqui no Brasil conhecemos bem esse discurso desde 2016...
Sou, portanto, comunista. Por defender e anunciar os valores do evangelho e por não aceitar que o mundo entre de novo numa loucura de fascismo e totalitarismo ou a diminuição total do Estado em prol da liberação geral do mercado, “como fonte de riqueza”!
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Além do comunismo, existe Doutrina Social da Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU