19 Mai 2017
“Poderia até ser cedo demais para tirar conclusões e juízos com base no pensamento social católico. As perguntas, no entanto, se encaixam perfeitamente no campo de interesse da Igreja: cada questão ética relacionada com a digitalização leva inevitavelmente a temas de cultura e de comunicação, ecoando as perguntas sobre a pessoa, a comunidade e os pressupostos morais. Há amplo espaço para novas pesquisas éticas, e ter grupos e comunidades eclesiais que dediquem seus esforços para refletir sobre esses problemas é uma necessidade”, escreve Domingo Sugranyes Bicke, presidente da Fundação Centesimus Annus Pro Pontifice, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 17/05/ 2017 . A tradução é de Luisa Rabolini.
O desafio para organizações e profissionais é ver a mudança digital como uma oportunidade para se adaptar, aprender e progredir. As empresas devem tomar as decisões de investimento de risco em um mundo de informação a baixo custo e alto volume de disponibilidade. Neste ambiente revolucionário, em que a informação é o novo petróleo da economia, os papéis dos consumidores e dos produtores confundem-se e os modelos de trabalho tradicionais sofrem profundas modificações.
Os resultados tecnológicos são ambivalentes: por exemplo, a inteligência artificial aplicada ao progresso da medicina não impede que milhares de mortes ocorram diariamente por causa de doenças curáveis. Mas, a inclusão contra o "grande fosso" pode ser viável graças à tecnologia digital, por exemplo, através da disponibilização de telefones celulares ou oportunidades de educação à distância. E, no entanto, em nosso mundo, quatro bilhões de pessoas ainda não têm acesso à internet.
Nos últimos dois séculos, as preocupações sobre o trabalho na economia de mercado vêm se repetindo. Atualmente, a ameaça de robôs e computadores que devoram o homem parece mais grave do que nos ciclos históricos anteriores, já que nos últimos anos há um déficit de empregos em relação ao crescimento, e os salários estagnaram em comparação com outros fatores de produção. O colapso atingiu principalmente os trabalhos menos qualificados, no setor manufatureiro, empregatício e administrativo, enquanto que as faixas mais altas e baixas na taxa de emprego foram menos afetadas.
No entanto, a grande maioria dos empregos que hoje existem seria inimaginável apenas 70 anos atrás: mais do que o fato de que algumas funções desaparecem e outras nascem, os verdadeiros problemas talvez residam nas barreiras educacionais e institucionais para as mudanças. A digitalização corre rápida, mas os resultados são ainda difíceis de prever e não oferecem um modelo claro para uma formação profissional específica.
A inovação tecnológica também cria novos cenários competitivos, onde algumas posições oligopolistas apoiam-se, por um período limitado de tempo, sobre uma vantagem tecnológica temporariamente exclusiva, e não na dimensão ou fatia de mercado. Uma segmentação capilar dos consumidores pode impedir a formação de um preço de mercado determinado pela lei da oferta e procura.
Os dados fornecidos pelos consumidores, juntamente com aqueles das transações bancárias e das informações a disposição do público são processados e analisados para compreender e prever os comportamentos. Embora por lei os big data devam ser anônimos, as possibilidades de análise cruzada estão mudando os limites do conceito de dados pessoais.
Surge então a dúvida se a batalha pela confidencialidade já não está perdida de antemão. As leis estão rapidamente se adequando, no caso da União Europeia, por exemplo, não para controlar a tecnologia, mas para tutelar os consumidores e garantir que os princípios desenvolvidos no âmbito da economia de mercado possam ser mantidos e aplicados no novo contexto tecnológico.
Os valores cultivados e aplicados na família e na comunidade são muitas vezes esquecidos quando as mesmas pessoas estão atrás de suas mesas em uma empresa. Este fato não desaparece com a digitalização, aliás: o imperativo tecnológico - tudo o que é tecnicamente possível é considerado legítimo - pode prevalecer e até mesmo tornar mais difícil unificar valores morais, comportamento e incentivos.
Poderia até ser cedo demais para tirar conclusões e juízos com base no pensamento social católico. As perguntas, no entanto, se encaixam perfeitamente no campo de interesse da Igreja: cada questão ética relacionada com a digitalização leva inevitavelmente a temas de cultura e de comunicação, ecoando as perguntas sobre a pessoa, a comunidade e os pressupostos morais. Há amplo espaço para novas pesquisas éticas, e ter grupos e comunidades eclesiais que dediquem seus esforços para refletir sobre esses problemas é uma necessidade.
A cultura do encontro, expressão usada frequentemente pelo Papa Francisco, requer hábitos que promovam o bom uso dos recursos tecnológicos, bem como o cuidado com as relações humanas. Contra as prevalecentes versões utilitaristas, positivistas ou emocionais da ética, o pensamento social católico tradicionalmente volta à atenção para teorias objetivas enraizadas na capacidade de discernir o certo do errado.
Quanto às novas perspectivas de emprego e trabalho “Convém recordar sempre que o ser humano é «capaz de, por si próprio, ser o agente responsável do seu bem-estar material, progresso moral e desenvolvimento espiritual ». (...) Por isso, a realidade social do mundo atual exige que, acima dos limitados interesses das empresas e duma discutível racionalidade econômica, «se continue a perseguir como prioritário o objetivo do acesso ao trabalho para todos»” (Laudato si´,127).
Existe o risco de um vácuo moral sempre que as decisões são tomadas por máquinas ou algoritmos de inteligência artificial: na ausência de um agente moral não existe responsabilidade humana e isso leva a um território inexplorado da história humana. Diante dessa radical incerteza, o diálogo traz algumas pistas de investigação: se a informação é o principal recurso da economia e tem um valor monetário mensurável, então os dados devem ser tratados com a mesma atenção e com os mesmos princípios do dinheiro em nome de terceiros. Assim como existe um código universal de ética para tratar de bens, serviços e dinheiro, deveria existir algo similar para os dados.
A revolução digital, juntamente com outros fatores de mudança, exige que a atenção seja deslocada da tutela dos postos de trabalhos para a tutela dos trabalhadores com benefícios sociais flexíveis e a possibilidade de formação e treinamento em um mundo em mudança.
Precisamos de uma reforma radical da educação, que se descole do programa de ensino secundário/universitário universal para se direcionar a alternativas mais flexíveis que promovam a aprendizagem continuada, a empregabilidade e a capacidade de julgamento moral.
A regulamentação é muito lenta para acompanhar a inovação; portanto, a sociedade e a economia devem promover uma reflexão cultural corporativa para gerenciar o uso de dados.
Devemos prestar mais atenção ao lado da demanda desses processos: o que os consumidores querem? Suas reais prioridades podem ser expressas e levadas em consideração? Que responsabilidades deveriam exercitar? A Igreja tem um papel importante em educar a escolha do consumidor.
Estas orientações exigem novas formas de cooperação entre o setor público e os agentes privados para mitigar os riscos relacionados com o emprego e incentivar uma liderança responsável na economia digital. Em relação ao futuro do trabalho, é imprescindível que seja encetado um diálogo geral entre empregadores e organizações de trabalhadores. Há necessidade de ambientes de encontro que criem confiança. Poderia uma plataforma baseada no pensamento social católico ser um desses locais de encontro?
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Novos desafios para o pensamento social da Igreja. Uma ética para a digitalização? Artigo de Domingo Sugranyes Bicke - Instituto Humanitas Unisinos - IHU