08 Fevereiro 2022
Se “o mundo pode ser visto melhor a partir das periferias” como disse recentemente o Papa Francisco, na Nova Zelândia foi deflagrado o último golpe contra a Igreja de Roma em termos de abusos. De 1950 a 2000, mais de 1.300 menores e 164 adultos no país relataram ter sofrido abusos em ambientes católicos.
A reportagem é de Marco Grieco, publicada por Domani, 06-02-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
É o que divulgou nos últimos dias a Comissão Real da Nova Zelândia, criada pela primeira-ministra Jacinda Ardern, em 2018, mas que somente nos últimos dois anos incluiu nas investigações as instituições católicas, envolvendo 428 paróquias, 370 escolas, 67 institutos de cuidados e 43 congregações religiosas das seis dioceses do país - Auckland, Hamilton, North Palmerston, Wellington, Christchurch e Dunedin.
Os resultados, apresentados em um relatório detalhado coordenado pelo grupo Te Rōpū Tautoko e pela Rede de Sobreviventes, remexeram a poeira sob um tapete de silêncio de décadas: “Entre os bispos, o único que nos apoiou foi Dom Michael Dooley, da diocese de Dunedin. Os outros até agora se opuseram à investigação, nem tomaram medidas para apoiar as vítimas”, explica Liz Tonks, da Rede de Sobreviventes.
Segundo o relatório, 14% do clero diocesano da Nova Zelândia cometeram abusos, dos quais 8% entre membros de ordens religiosas masculinas (187 de 2.286) e 3% entre as mulheres afiliadas a congregações religiosas (120 de 4.247). Além disso, são mais de uma centena os leigos e voluntários católicos culpados de violências.
Para os coordenadores do Te Rōpū Tautoko, os números subestimam a real extensão do fenômeno, já que, entre os relatos de abuso, 308 dizem respeito a pessoas não identificadas. A maioria dos crimes ocorreu entre as décadas de 1960 e 1970 e 75% deles antes de 1990. Seu caráter endêmico é singular nas escolas e nas estruturas destinadas a abrigar os mais frágeis.
Paralelamente à elaboração do relatório, de fato, a Comissão Real iniciou investigações na Marylands School de Christchurch - uma escola residencial para crianças com deficiência gerida pela Ordem Hospitaleira de São João de Deus - no instituto Hebron Trust e no orfanato Saint Joseph, administrado pela congregação das Irmãs de Nazaré.
No caso neozelandês, mostrou ser central o papel das congregações religiosas, que pelo silêncio toleravam as violências. É o que relata Mike Ledingham, abusado na escola por um sacerdote, depois acusado de abusar de dezenas de menores: “Tinha oito anos quando pela primeira vez o padre abusou de mim no ginásio da escola. Eu tentava evitá-lo, mas as freiras me levavam pontualmente de volta a ele, que ficava me esperando”, lembra.
Seu irmão Chris, também um sobrevivente, quando se tornou adulto tomou coragem e escreveu ao bispo de Auckland, porém sem nenhum resultado: “Quando não obtive resposta, ambos fizemos declarações públicas. Só então começaram brandas negociações, acompanhadas por desmentidos da igreja, que continuou negando que houvesse outras denúncias. Agora os dados do relatório os desmentem”, exclama.
Para Steve Goodlass, porém, o inferno durou de 1985 a 89 e teve a cara do padre Patrick Bignell, conselheiro do St. Bernard College: "Passei de criança despreocupada a adolescente violentado, que olhava o mundo com os olhos de um abusador", admite.
Na Nova Zelândia, onde a Igreja Católica tem uma influência significativa, por anos os ministros católicos se entrincheiram atrás do Accident Compension Act, um sistema legal que fornece apoio e ajuda a quem sofre violência sexual, mas que não chama diretamente em causa quem perpetua os abusos: "É algo bizarro, porque não há nenhum cuidado, nem mesmo pastoral", explica Steve.
Hoje, as vítimas exigem maior resolução da igreja. Quanto à possibilidade de criar uma comissão independente para esclarecer os abusos também na Itália, no modelo daquela francesa ou alemã, os bispos italianos recentemente criaram barreiras. Entrevistado pelo Corriere della Sera, o presidente dos bispos Gualtiero Bassetti mencionou os Centros diocesanos de escuta que, no entanto, "não são guichês, porque não se trata de departamentos burocráticos, mas estruturas montadas que contam com voluntários treinados em escuta e acolhimento".
Os casos fora da Itália mostram que para as vítimas isso não é suficiente, especialmente se for feito por sacerdotes: “Um bispo mente facilmente, porque sabe que no confessionário sempre pode ser perdoado”, explica Mike.
Implacável é o que Steve admite da recente declaração da Santa Sé sobre os abusos sexuais na arquidiocese de Munique e Freising: “No comunicado fiquei impressionado com a expressão usada: senso de vergonha. A palavra senso ilustra o verdadeiro problema da igreja. Nós sobreviventes vemos gestos simbólicos, mas poucos são reais. No fundo, continuamos largados ainda sangrando na beira da estrada à espera do bom samaritano”.
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Abusos na Nova Zelândia: o doloroso silêncio na igreja das periferias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU