18 Novembro 2021
“Desde que assumiu o cargo em 2013, Xi instituiu reformas que potencialmente limitam a legitimidade do partido aos olhos do povo. Ele consolidou o poder, eliminando a liderança coletiva estabelecida após a morte de Mao para evitar os perigos implícitos no governo de um homem só. Ele aumentou a repressão à sociedade civil, protestos e religião, reduzindo a capacidade de resposta do partido ao povo. Mais importante ainda, ele eliminou os limites do mandato e falhou em ungir um eventual sucessor. A China sobreviveu à maioria das outras ditaduras autoritárias em grande parte por causa de suas transições pacíficas de poder, uma tradição que Xi derrubou com um governo potencialmente indefinido. Ele poderia iniciar a morte do PCCh?”, escreve Elizabeth M. Lynch, em resenha do livro “The Party and the People: Chinese Politics in the 21st Century”, de Bruce Dickson (Ed. Princeton University, 2021), publicada por Commonweal, 11-11-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Capa do livro (Foto: Reprodução)
Em seu diário de 1950, “Diário de Pequim: Um ano da Revolução”, o sinólogo estadunidense Derk Bodde publicou um alerta aos políticos dos EUA. Ele havia retornado há pouco de Pequim, onde o Exército de Libertação Popular havia marchado para a cidade e facilmente derrubado o governo Guomindang (nacionalista). A falta de oposição popular ao golpe era surpreendente. Constantes blecautes, inflação descontrolada e uma rampante corrupção fizeram até mesmo os opositores ideológicos ao comunismo desejar a chegada do Partido Comunista Chinês (PCCh, ou simplesmente “O Partido”). Seria um erro, alertou Bodde, assumir que o povo chinês sentia-se “escravizado” por um regime ilegítimo. Era o PCCh, e não o Guomindang, que estava respondendo às necessidades do povo.
Setenta anos depois, o Ocidente ainda não tinha aprendido a lição de Bodde. Felizmente, Bruce J. Dickson oferece em seu livro “O Partido e o Povo” uma correção necessária à errônea compreensão estadunidense de que o PCCh carece de apoio popular. Dificilmente um regime inflexível de punho de ferro que governa por meio do medo e da repressão, o PCCh é bastante sensível ao povo chinês e aos tempos de mudança. Como Dickson aponta, a adaptabilidade do partido é precisamente o que lhe permite manter o controle do poder por mais de sete décadas.
Livros escritos para “novatos sobre a China”, ou leitores com pouca experiência na história e cultura do país, tendem a enfatizar excessivamente o passado antigo da China como uma forma de compreender seu presente. Felizmente, esse não é o caso aqui. Dickson limita principalmente sua análise à era pós-Mao (1976 até o presente), com cada um dos oito capítulos de seu livro respondendo a uma pergunta específica. Dickson tem os iniciantes em mente, mas até mesmo os observadores veteranos da China também aprenderão alguma coisa.
Os primeiros três capítulos (“O que mantém o partido no poder”, “Como os líderes são escolhidos?” e “Como as políticas são feitas?”) examinam o funcionamento interno do PCCh. Um elemento importante é a estrutura leninista do partido. “Se Marx forneceu a ideologia do comunismo, Lenin forneceu a organização”, escreve Dickson. Sob um estado de partido leninista, o governo é indistinguível do partido; cada posição governamental tem um posto partidário correspondente, tornando mais fácil para o partido transformar suas políticas em lei. Também integrantes de um estado de partido leninista são as células do partido no local de trabalho e na vizinhança. Eles intervêm diretamente na vida diária das pessoas, fornecendo educação ideológica e fazendo cumprir a linha do partido. Essa estrutura leninista - e o domínio completo do partido na política e na sociedade - praticamente garante que o PCCh e suas políticas sempre permanecerão no controle.
Mas, mostra Dickson, o PCCh também criou uma estrutura promocional para seus membros que incentiva a atenção às demandas do povo. Em muitos governos autoritários, a promoção política é baseada exclusivamente em conexões pessoais. Na China, o mérito desempenha um papel mais importante. As conexões são certamente importantes, mas os funcionários locais do partido têm um incentivo ainda mais forte para atingir os objetivos gêmeos do partido: desenvolvimento econômico e “estabilidade social”. Para manter seus postos, eles devem manter as pessoas satisfeitas.
Mas como pode um partido leninista saber quais são as necessidades do povo? Dickson tenta uma resposta nos três capítulos seguintes do livro (“Será que a China tem uma sociedade civil?”, “Os protestos políticos ameaçam a estabilidade política?” e “Por que o partido teme a religião?”). Como Dickson demonstra, a provisão de algum espaço para a sociedade civil e protestos políticos é essencial para o sucesso do partido. Ambos informam os funcionários locais e centrais do partido sobre as demandas do povo para que eles possam adaptar as políticas de acordo. Mas, como Dickson adverte, a sociedade civil e os protestos políticos só podem existir dentro de um espaço definido pelo partido. O partido suprime duramente qualquer atividade de organização não sancionada.
Infelizmente para o povo chinês, os contornos desse espaço estão mudando constantemente. A detenção em 2015 de cinco ativistas que planejavam protestar contra o assédio sexual no transporte público é um exemplo disso. O PCCh há muito clama pela igualdade das mulheres, observando que elas "sustentam metade do céu". Mas, mesmo sem perceber, essas cinco ativistas haviam cruzado a linha. O PCCh viu a eficácia dos protestos nas mídias, aumentando a popularidade e a ação coordenada em várias das principais cidades, como uma ameaça ao seu governo. Cada uma foi presa sob a acusação de “provocar distúrbios e problemas”, um crime segundo a lei criminal da China que tem sido usado quase exclusivamente para silenciar manifestantes pacíficos. As cinco feministas foram finalmente libertadas sob fiança, mas permanecem sob vigilância constante e não podem deixar a China.
A religião também desempenha um papel importante no sucesso dos funcionários locais do partido, mas apenas de acordo com as estritas limitações do partido. Enquanto o PCCh permanece inerentemente distante de religiões, especialmente aquelas com laços estrangeiros e ligadas ao catolicismo, protestantismo e islamismo, as autoridades locais sabem que grupos religiosos muitas vezes fornecem serviços sociais que o governo local não pode oferecer, como orfanatos, hospitais e lares para deficientes.
Para muitas organizações religiosas, o terremoto de Sichuan em 2008, que matou aproximadamente 69 mil pessoas, marcou uma virada. O governo chinês respondeu fracamente, mas as igrejas cristãs locais, como a Early Rain Covenant Church na vizinha Chengdu, mobilizaram suas congregações. Seus membros primeiro cuidaram dos feridos e montaram despensas de alimentos, depois, por fim, estabeleceram um abrigo permanente para desabrigados, uma creche e um programa de assistência financeira para famílias de presos políticos. Mas essas iniciativas de caridade tornaram-se suspeitas sob o atual presidente da China, Xi Jinping. Em um julgamento secreto realizado em 2019, Wang Yi, pastor da Early Rain, foi condenado por subverter o poder do Estado e administrar um negócio ilegal. Ele agora cumpre uma pena de prisão de nove anos.
A maioria dos observadores da China que entre 1989 e 2008 tinha uma visão predominante conhecida como “teoria da modernização da democracia”. A ideia era que o desenvolvimento econômico da China inevitavelmente a levaria a abraçar um sistema político mais aberto. Essa foi uma das razões pelas quais os Estados Unidos apoiaram a entrada da China na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001. Os políticos americanos presumiram que a democracia seguiria a liberalização econômica como algo natural, como as observações feitas em 2000 pelo presidente Bill Clinton deixam claro:
“A China não está simplesmente concordando em importar mais de nossos produtos. É concordar em importar um dos valores mais queridos da democracia, a liberdade econômica. Quando os indivíduos têm o poder não apenas de sonhar, mas de realizar seus sonhos, eles exigirão mais voz”.
Mas, como Dickson aponta, mesmo em 2001 era temerário pensar que o desenvolvimento econômico resultaria em uma reforma política maior. Bem ciente das implicações da teoria da modernização, Deng Xiaoping iniciou suas reformas econômicas na esteira do protesto da Praça Tiananmen em 1989, em uma tentativa de evitar novos apelos por democracia. Avance para 2021 e o PCCh sobreviveu à teoria da modernização: a mudança política progrediu gradativamente em comparação com seu robusto desenvolvimento econômico. Sob Xi Jinping, realmente regrediu. Mas, como Dickson observa em seu capítulo final, “Será que a China se tornará democrática?”, o PCCh tem um ponto fraco significativo. Como sua legitimidade depende do aumento da renda, qualquer desaceleração da economia chinesa pode resultar em novos apelos por mudanças políticas.
O excelente livro de Dickson é ligeiramente prejudicado por uma omissão, que cai em seu penúltimo capítulo, “Quão nacionalista é a China?”. Aqui, Dickson examina como o PCCh usou o nacionalismo para aumentar sua legitimidade (introduzindo a “educação patriótica” obrigatória nas escolas chinesas após os protestos de Tiananmen em 1989). Dickson passa o tempo rastreando e analisando os vários níveis de nacionalismo entre as diferentes gerações chinesas, mas não consegue examinar uma questão indiscutivelmente mais importante: o efeito devastador que o nacionalismo chinês teve sobre as minorias da China e seus vizinhos. A China é um país multiétnico que inclui grandes populações de uigures, tibetanos e outros grupos étnicos. Mas seu nacionalismo privilegia a identidade dos chineses han, o grupo étnico dominante na China. Até que ponto esse nacionalismo com foco em Han tornou mais fácil para o partido internar mais de 1 milhão de uigures ou cometer incontáveis abusos dos direitos humanos em áreas tibetanas? Essas seriam boas perguntas a serem exploradas.
Como qualquer bom observador da China, Dickson se recusa a fazer prognósticos sobre o futuro do PCCh. Mas ele mostra que muitos dos fatores que mantiveram o partido no poder – melhores condições econômicas, protestos limitados e sociedade civil, a crença do povo de que o país se tornou mais “democrático” – ainda existem. Para Dickson, Xi Jinping, ao fim, constitui o coringa. Desde que assumiu o cargo em 2013, Xi instituiu reformas que potencialmente limitam a legitimidade do partido aos olhos do povo. Ele consolidou o poder, eliminando a liderança coletiva estabelecida após a morte de Mao para evitar os perigos implícitos no governo de um homem só. Ele aumentou a repressão à sociedade civil, protestos e religião, reduzindo a capacidade de resposta do partido ao povo. Mais importante ainda, ele eliminou os limites do mandato e falhou em ungir um eventual sucessor. A China sobreviveu à maioria das outras ditaduras autoritárias em grande parte por causa de suas transições pacíficas de poder, uma tradição que Xi derrubou com um governo potencialmente indefinido. Ele poderia iniciar a morte do PCCh? Para qualquer pessoa interessada nesta questão e no futuro da China, “The Power and the People” é um bom lugar para começar.
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China. Poder perpétuo? Uma resenha do livro “O partido e o povo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU