17 Agosto 2021
O que pensa o secretário-geral de um Partido Comunista e como o pensa? Essa pergunta poderia parecer absurda se não se tratasse da China e de seu presidente Xi Jinping. Em uma ditadura como a China, é realmente importante entender como se formam as ambições – por exemplo, a de se tornar a principal potência mundial até 2049 – e as decisões, inclusive as mais insuportáveis, como a supressão das liberdades democráticas em Hong Kong.
A entrevista é de Hervé Nathan, publicada por Alternatives Économiques, 14-08-2021. A tradução e de André Langer.
Como nos tempos da União Soviética (quando se praticava no Ocidente a “sovietologia”), uma das perspectivas possíveis é cotejar e estudar os textos disponíveis. Foi o que fez François Godement em seu último livro Les mots de Xi Jinping, ed. Dalloz, 2021 (As palavras de Xi Jinping), selecionando do corpo de escritos e entrevistas as citações mais reveladoras da personalidade e do “pensamento” do líder chinês. Surgem alguns traços, às vezes psicológicos (o próprio autor admite ter grande dificuldade em definir o homem por trás do dirigente), mas sobretudo políticos. Xi é um comunista próximo dos militares, cuja dureza foi moldada pela experiência dos expurgos durante a Revolução Cultural. O que nos diz esse homem que pensa que “o Partido está no controle”? François Godement é conselheiro para a Ásia no Instituto Montaigne.
Quando se reúne os discursos e as declarações do presidente chinês Xi Jinping, cujos poderes são enormes, chega-se a entender sua personalidade?
Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que só temos acesso aos escritos e discursos de Xi Jinping que ele quer ver tornados públicos, com algumas exceções, como uma famosa entrevista autobiográfica concedida por volta de 2000 e na qual ele já tem uma ambição que ultrapassa em muito o emprego regional que ocupava na época. Portanto, a imagem que temos dele é a que ele construiu.
No entanto, é extremamente revelador pelos slogans que ele martela e pelos raciocínios aos quais recorre. Pode ser que o homem Xi Jinping seja no privado alguém moderado e certamente cauteloso, tão grande a precaução com a sua vida. Mas sua expressão pública é inteiramente articulada em torno de objetivos e métodos extremamente voluntariosos.
Eu prontamente associo Xi ao título do famoso filme de Leni Riefenstahl sob o Terceiro Reich: O Triunfo da Vontade (1935). A ênfase que Xi Jinping coloca na primazia da vontade sobre as restrições e os obstáculos é impressionante. E isso mesmo que se diga marxista, e o marxismo dê enorme importância ao determinismo, à infraestrutura sobre a superestrutura. Além disso, a vontade tem como corolário a luta, outra palavra-chave de Xi.
Ele também elogia muito a disciplina?
A disciplina está no cerne da construção de um Estado de Direito na China. Embora entendamos um sistema jurídico como um equilíbrio dos poderes. Xi o interpreta como um regulamento que anuncia uma lista de obrigações. Nisso, ele está mais próximo de Liu Shaoqi, o cofundador da República Popular da China (que morreu na prisão durante a Revolução Cultural, nota do editor), do que de Mao Tsé-Tung, que não aceitou outra disciplina além da sua e sabia usar a seu favor a indisciplina e a revolta.
Por exemplo, foi Mao quem, durante a Revolução Cultural (1966-1972), proclamou as “três liberdades”: de se manifestar, de se expressar através de cartazes (dazibao) e de fazer greve. Esse não é o jeito de Xi, que é um líder metódico e meticuloso, mais próximo dos moldes do sistema soviético, portanto, longe das viradas ideológicas de Mao...
Isso é surpreendente quando sabemos que Xi Jinping sofreu a Revolução Cultural ao ser enviado ao campo para “aprender com as massas”, e que seu pai, que era um dos pilares do PCCh, foi expurgado no início dos anos 1960. Essa trajetória pessoal parece, ao contrário, ter reforçado seu gosto pela autoridade?
Eu poderia responder com uma pirueta dizendo que muitas vezes são as crianças martirizadas que, por sua vez, martirizam seus filhos.
Mais seriamente, com seu exílio e sua queda do paraíso que foi uma infância entre as famílias dos dirigentes, ele aprendeu não que o sistema precisava ser mudado, mas que ele precisava ser o mais forte do sistema. Ele foi capaz de se candidatar dez vezes para se tornar membro do PCCh. Esta é a prova de uma vontade ferrenha.
Observamos, ao longo da sua carreira, sinuosidades ideológicas. Ele apoiou as reformas de Deng Xiaoping. Nos cargos que ocupou nas províncias, mostrou-se um hábil interlocutor de investidores capitalistas estrangeiros. Mas ele sempre teve a ambição de subir mais alto. O simples fato de ter permitido publicar pela revista das organizações de massa de mulheres chinesas um extenso relato autobiográfico, com expressões marcantes como “o aço é temperado nas provações”, com alusões à sua família revolucionária, é prova disso.
Como toda a sua geração, ele não teve direito a uma educação completa nem cosmopolita. Ele passou um mês em uma fazenda em Iowa, o que é uma experiência internacional muito limitada... Seu doutorado em economia rural, feito tardiamente, é de uma grande banalidade. Ele fez sua carreira na política, por meio de sua vontade, não pela amplitude de seus pontos de vista.
A posição que conseguiu ocupar no Estado, no Partido e no Exército é muito próxima daquela de Mao, superior à de Deng Xiaoping (o modernizador da China comunista após 1976, nota do editor). Seu discurso, proferido em 1º de julho, por ocasião do centésimo aniversário do PCCh, pode ser visto como um verdadeiro concentrado de maoísmo, baseado no nacionalismo, no voluntarismo e desprovido de qualquer nuance.
O “pensamento de Xi Jinping” foi inscrito como uma referência ideológica na Constituição da República Popular da China, assim como o “pensamento de Mao Tsé-Tung” antes dele. Como podemos definir a ideologia do atual líder da China em relação à de seu antecessor?
Se existe um eixo central nele, é a luta contra a corrupção. Ele a usa, é claro, como uma arma política, para derrotar seus concorrentes e intimidar os quadros.
Paradoxalmente, Mao era mais realista, mais tolerante sobre essa questão, e se ele clamava para “perseguir velhos costumes”, não nutria muitas ilusões deste lado. Também foi uma fonte de oposição a Liu Shaoqi antes da Revolução Cultural.
O segundo eixo é o patriotismo ou o nacionalismo que apresenta as relações internacionais como uma luta permanente, uma relação de forças. É claro que ele não deixa de usar expressões como “ganha-ganha” ou “multilateralismo”, “comunidades de destino”, mas muitas vezes coloca a ênfase na “luta”.
Se a luta contra a corrupção está tão presente, não é porque ele considera que depois da repressão e dos massacres da Praça da Paz Celestial (Tiananmen) em 1989, é a condição sine qua non para a sobrevivência do regime comunista chinês?
Ele não está errado! Penso que se eles ainda estivessem vivos, os ex-dirigentes do Kuomintang (1) diriam a mesma coisa, já que a República caiu em 1949 em parte devido à sua corrupção. Lembro-me de discussões com antigos quadros em Taiwan, há cerca de 20 anos, que constatavam com um sorriso que a corrupção crescia na China.
Não sei se Xi acabou com a corrupção na cúpula, quando ela atingiu as grandes famílias do regime. Em todo caso, ele a tornou muito menos flagrante com inúmeras operações de limpeza de quadros, inclusive no exército. Para citar apenas um exemplo, a prisão do chefe do Estado-Maior do Exército foi seguida, diz-se sem ser desmentida, por um translado de dinheiro líquido acumulado que necessitou de vários caminhões...
O problema é que você não pode lutar contra a corrupção sem a existência de instituições de supervisão independentes. O sistema comunista, ao contrário, prevê o autocontrole, confiado por Xi Jinping à Comissão de Inspeção e Disciplina do Partido.
A diferença ideológica de Xi não está na ambição de abarcar a história da China imperial ou republicana, quando a crítica de Confúcio, por exemplo, era a regra no governo de Mao?
A síntese nacionalista dos elementos mais tradicionais da cultura clássica já foi iniciada por seus predecessores. Ela era visível nas cerimônias dos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008, ou na moda arquitetônica neoclássica dos anos 1990 – Confúcio já tinha voltado à graça.
Mas hoje isso vai muito longe: a última sandice é a moda dos trajes imperiais entre as mulheres chinesas. Esse retrocesso também é uma rejeição da ocidentalização. Mao queria fazer algo novo quebrando o velho; Xi restaura um sistema. Parece muito com a fase de Restauração do Império Qing após 1860.
Xi Jinping estabeleceu como meta que a economia chinesa ultrapasse a dos Estados Unidos até 2049, centenário da tomada do poder pelos comunistas. A China pode limitar suas ambições a um simples objetivo econômico?
Esta é a base da legitimidade que o regime comunista reivindica para si: colocar a China em primeiro lugar, mesmo que não se fale oficialmente em ultrapassar os Estados Unidos. Mas nunca é demais recordar as humilhações nacionais que os ocidentais e os japoneses lhe infligiram no século XIX. A ênfase na força e nas capacidades militares renovadas está aí para servir de garantia.
O debate permanece aberto sobre se a China deseja estar na vanguarda do mundo para liderá-lo ou deixar que os outros se defendam sozinhos, inclusive em muitos aspectos da ordem internacional. Não me parece óbvio que a China queira assumir o fardo do império, para parafrasear Rudyard Kipling e seu [poema o] “fardo do homem branco”. Deste ponto de vista, permanece uma grande incerteza e, além disso, o discurso do centenário do PCCh foi amplamente focado na própria China.
Nós nos perguntamos sobre a exportação do modelo chinês, o “socialismo com características chinesas” que Xi enaltece – um modelo autoritário, capaz de sucesso econômico e de controle rígido das populações graças à vigilância digital em massa...
A exportação do modelo chinês é apenas um nicho de exportações. Um deles, evidentemente, são as tecnologias de vigilância. É muito concreto. Mas se a China está na vanguarda quando se trata de tecnologias de reconhecimento facial, moralmente não é muito diferente do que eram anteriormente as exportações francesas ou ocidentais de centrais telefônicas equipadas com sistemas de escuta integrados, ou de outros equipamentos de monitoramento. Por outro lado, é muito mais eficiente e mais invasivo...
Outra coisa é a questão do autoritarismo. Não é tanto que os chineses o exportem, mas que o reivindiquem como um bem comum com outros regimes autoritários. É baseado em uma visão fundamentalmente negativa da democracia como fonte de caos, de mudanças incompreensíveis e ligado a objetivos retóricos em vez de reais. Isso não é nenhuma novidade nas ditaduras, mas se baseia nos sucessos econômicos e tecnológicos da China. O próprio socialismo atrai sobretudo os ocidentais nostálgicos que encontram virtudes na economia planificada e veem a China como uma vingança contra o liberalismo econômico.
Nós chamamos, às vezes, um pouco apressadamente a economia chinesa de economia mista (público-privada, nota do editor), ao passo que o sistema de empresas do Estado permanece extremamente forte, muito mais do que os mecanismos de mercado que o governo autoriza. Na verdade, tudo isso é muito mal regulado.
Quanto ao sistema do partido e do enquadramento de massa que ele permite, a China não tem absolutamente nenhum interesse em exportá-lo. Todos esses elementos constituem uma construção assimétrica que a China deseja manter para si, pois lhe permite praticar o dumping social e ambiental ou afirmar sua influência através de iniciativas como as Rotas da Seda.
Sem a exportação do comunismo...
Lembro-me de uma viagem de trem com um quadro internacional do PCCh. Ele estava voltando de uma viagem pela África. Eu lhe perguntei: com qual partido político africano a China tem relações? Ele me olhou e respondeu: “com todos!” O pensamento de Xi Jinping sobre o socialismo com características chinesas também é isso!
1. Partido Nacionalista Chinês, no poder entre 1928 e 1949, data da tomada do poder pelos comunistas.
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Xi Jinping por suas palavras. Entrevista com François Godement - Instituto Humanitas Unisinos - IHU