29 Outubro 2021
"Não é a primeira vez na história mais recente do Ocidente que o caráter ideologicamente iliberal da extrema esquerda converge com aquele da extrema direita. O caráter paradoxal dessa convergência é dado pelo fato de que nos protestos No Vax e No Green Pass se revela uma ideia apenas elitista da liberdade que gostaria de excluir o vínculo, o elo social, a solidariedade. É o ponto onde o anarquismo e a vocação totalitária se entrelaçam de forma perturbadora", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das Universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica, 28-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Tive recentemente a oportunidade de jantar com meus queridos amigos de Trieste de origem argentina que me contaram como foi a ditadura militar na segunda metade dos anos 1970 em seu país. O macabro projeto dos militares pode ser resumido perfeitamente nas palavras do governador da província de Buenos Aries, Ibérico Manuel Saint-Jean: “Primeiro mataremos todos os subversivos, depois mataremos seus colaboradores, depois seus simpatizantes, então aqueles que permanecem indiferentes, e por fim, mataremos os tímidos”.
Nenhuma piedade, portanto, para as vozes fora do coro, para os opositores, para aqueles que não compartilharam a virada autoritária imposta pelos militares. Qualquer cidadão e qualquer organização potencialmente dissidentes contra o novo regime eram considerados um inimigo perigoso a ser suprimido. Mesmo naquele regime - como em todos os regimes ditatoriais - era imposta uma rastreabilidade dos movimentos individuais. Tratava-se de um sistema que visava tornar presente em todo lugar a perseguição aos antagonistas, o estabelecimento de um verdadeiro terrorismo de estado.
O general Videla, em 1975, pôde afirmar que “na Argentina deverão morrer todas as pessoas necessárias para alcançar a segurança do país”. Os opositores foram simplesmente suprimidos com o uso impiedoso da violência. Tortura e assassinato político estavam na ordem do dia. Caminhões militares carregavam em massa dissidentes para seu dramático destino. A rastreabilidade estava, naquele caso, a serviço da eliminação física do dissenso; era usada para compor "listas negras" que identificavam os opositores do regime que deviam ser suprimidos. A simples ideia de poder gritar "Liberdade, liberdade, liberdade!" em uma praça ou expressar o próprio juízo crítico na televisão era impensável e teria sido paga com o preço da vida.
Mesmo em tempos de crise provocada pela pandemia, tivemos que recorrer à rastreabilidade de nossos movimentos individuais. Essa rastreabilidade, porém, não está a serviço da morte, como acontece em toda ditadura, mas da vida. É tão difícil de entender? No entanto, em nosso país, a extrema direita e a extrema esquerda se lançaram numa crítica radical à gestão da pandemia e das relativas medidas de prudência e segurança sanitária (vacinação e Passaporte Verde entre todas) aprovadas por nosso governo. Essa crítica furiosa acontece em nome da liberdade.
Conhecemos o refrão mais refinado: a gestão da pandemia abriu o caminho para uma virada repressiva das nossas instituições que corre o risco de originar um estado de emergência permanente que acaba por justificar uma legislação antidemocrática. De fato, ao grito de “Liberdade! Liberdade!" uma extrema minoria de nosso país denuncia a virada autoritária do Estado democrático que ameaça a esmagadora maioria. Não é a primeira vez na história mais recente do Ocidente que o caráter ideologicamente iliberal da extrema esquerda converge com aquele da extrema direita. O caráter paradoxal dessa convergência é dado pelo fato de que nos protestos No Vax e No Green Pass se revela uma ideia apenas elitista da liberdade que gostaria de excluir o vínculo, o elo social, a solidariedade. É o ponto onde o anarquismo e a vocação totalitária se entrelaçam de forma perturbadora.
Não é por acaso que é precisamente a liberdade que é um princípio ético que não encontra nenhum direito de cidadania na extrema direita e na extrema esquerda. A violência anarquista de poucos gostaria efetivamente de querer ditar a lei para a maioria da população. É uma história antiga e terrível que no século XX atravessou tanto fascismos e comunismos. A leitura da presença de uma ditadura política e sanitária, que poria em risco ou mesmo já teria desestruturado o arranjo democrático de nosso país, não é por acaso uma leitura compartilhada pela extrema esquerda e pela extrema direita. É o mesmo juízo expresso por intelectuais de renome que, embora evitem aristocraticamente participar de levantes populares, são de fato irresponsavelmente os seus maitres à penser. Da elucubração filosófica ao desencadeamento da raiva nas ruas, o passo é mais curto do que se possa imaginar.
O elitismo do pensamento e os cortejos que desafiam o Estado não percebem que hoje a rastreabilidade, ao contrário daquela argentina, não está a serviço da ditadura, mas da liberdade, que o Passaporte Verde não restringe a nossa vida, mas é um meio fundamental para recuperá-la. Quem confunde ideias sobre esse ponto fundamental está na verdade defendendo um protesto contra as instituições num momento em que deveria prevalecer a solidariedade incondicional. Esperamos que este seja o último dramático espasmo da sombria temporada do populismo.
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Aqueles filósofos irresponsáveis. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU