23 Outubro 2021
"Palavras não são instrumentos neutros da comunicação, mas podem ser verdadeiras balas, bastões, barras. Nestes casos, estamos diante de uma desnaturação feroz da sua natureza que, em vez disso, é a de presidir ao processo de humanização da vida. A lei da palavra se constitui de fato, em sua origem, como uma alternativa clara à violência. É o maior dom da linguagem: a vida não é o lugar de uma guerra implacável de todos contra todos pela própria afirmação, porque o dom da palavra nos deveria induzir ao diálogo e ao reconhecimento mútuo", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das Universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Stampa, 04-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
O caso Morisi, assumido pela mídia como um caso inquietante da degradação da vida política em nosso país, infelizmente não é absolutamente um caso, no sentido de exceção, mas sim a perturbadora expressão de uma regra. De fato, no mundo da comunicação jornalística foi aos poucos se firmando uma cultura transversal do insulto e da difamação, que parece não ter limites e da qual a Besta é apenas a ponta do iceberg.
É impressionante notar que entre aqueles que hoje atacam Morisi e sua penosa história humana, estão sem qualquer senso de vergonha até mesmo os mais ferozes intérpretes de um jornalismo agressivo, marginal, ideologicamente justicialista, evidentemente difamatório que no impulso antipolítico promovido pelo populismo do partido 5Estrelas das origens assola o país com o conluio culpado da mídia que tem explorado para fins de audiência essa modalidade obscena de conceber a história política: juízos sumários, uso sistemático da zombaria, distorção fascista dos nomes, alterações óbvias da verdade, substituição do confronto político pela desqualificação moral do adversário. Mas, como costuma acontecer nesses casos, o giro impiedoso da roda do tempo transfigura fatalmente os agressores em agredidos. O ditado popular mostra-se mais uma vez profético: quem semeia o vento colhe tempestade.
No entanto, nada sugere que haverá uma mudança real de marcha. Em vez disso, estamos diante do ativismo de jornalistas que, depois de terem bombardeado descuidadamente sujeitos mais tarde declarados inocentes, militam entre as fileiras dos principais acusadores da Besta e de sua ação política.
O raciocínio, entretanto, deve ser mais amplo: a comunicação em nosso tempo tende a privilegiar as sensações sobre o conteúdo, o efeito publicitário sobre as argumentações, o objetivo imediato do consenso sobre aquele mais longo da verdade. É uma triste evidência que tem como denominador comum a negação do peso das palavras. Porém, as palavras pesam. E esse peso coincide com suas consequências.
Em outra oportunidade, defini a vida adulta como aquela – para além dos dados de cartório - que se esforça para assumir as consequências de suas próprias palavras. Na ausência desse esforço, a vida se manifesta na forma irresponsável da adolescência, onde o jogo das palavras tende a ignorar a assunção das suas inevitáveis consequências. Infelizmente, esse jogo coincidiu com a vida política do país nas últimas décadas. Mas se trata, na realidade, de um grande problema ético, filosófico e político. Que relação existe entre a palavra e as coisas, entre a palavra e a realidade?
As palavras se limitam a nomear uma realidade que existe por si, independentemente das palavras, ou forjam a realidade, a modelam? São realmente apenas puro flatus vocis, como acreditavam os nominalistas tipo Roscellino, ou têm o poder de fazer existir a realidade, de transformá-la, de transfigurá-la? Um enorme problema que, em primeiro lugar, diz respeito à responsabilidade não só em relação à própria palavra, mas também por aquilo que a nossa palavra poderia provocar. Um exemplo disso é o caso já histórico de Toni Negri, que em suas palavras afirmava a necessidade do uso radical da força na luta de classes, mas sempre negou qualquer responsabilidade em relação àqueles que, em nome dessas palavras, praticaram no final da década de 1970 formas armadas de violência política.
Agora, o clima político e civil é muito diferente. O que está em jogo não é mais o conflito ríspido e cruento entre ideologias, mas a astúcia feroz para a agregação mais eficaz do consenso. No entanto, o problema permanece dramaticamente o mesmo: as palavras têm ou não têm peso? Hoje vemos como eles podem não apenas armar as mãos, mas também destruir famílias, pessoas, reputações, carreiras.
Elas não são então substitutos simbólicos da violência - onde há violência não há palavra, afirma Lacan - mas também podem se manifestar como a expressão mais extrema da violência. Palavras não são instrumentos neutros da comunicação, mas podem ser verdadeiras balas, bastões, barras. Nestes casos, estamos diante de uma desnaturação feroz da sua natureza que, em vez disso, é a de presidir ao processo de humanização da vida. A lei da palavra se constitui de fato, em sua origem, como uma alternativa clara à violência. É o maior dom da linguagem: a vida não é o lugar de uma guerra implacável de todos contra todos pela própria afirmação, porque o dom da palavra nos deveria induzir ao diálogo e ao reconhecimento mútuo. Afinal, é o que nos diferencia do mundo animal. É o que torna uma vida realmente civil. Não é por acaso que o apelido guerreiro da Besta alude a um reino que não conhece de forma alguma a lei da palavra.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As palavras certas derrotam a besta. Artigo de Massimo Recalcati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU