28 Outubro 2021
“Francisco receberá Biden e o tratará da forma que ele parece tratar a maioria dos que o encontram, como um ser humano, que tem pecados ou falhas, assim como dons e dignidade. O papa não espera que um político leve à salvação, nem o presidente espera que o papa resolva todos os dilemas que afligem nossa vida política”, escreve Michael Sean Winters, jornalista estadunidense, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 27-10-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Sexta-feira de manhã, dia 29 de outubro, quando o presidente dos EUA Joe Biden tem uma audiência oficial com o Papa Francisco, algumas cabeças explodirão. Para um certo tipo de católico, Biden representa um repúdio ao seu próprio entendimento de identidade católica, e esse tipo de católico tende a ser menos entusiasta de Francisco. Fotos dos dois juntos vão ser muito pesadas.
Chad Pecknold, professor de teologia da Universidade Católica da América, falou à Associated Press que o encontro “poderia destacar a urgente necessidade de se unir em torno de uma visão clara e coerente de como os bispos devem responder aos políticos que publicamente desprezam os ensinamentos da Igreja enquanto se apresentam para a Sagrada Comunhão”.
Sobre o que ele está falando? Pecknold ignora a diferença entre discordar da aplicabilidade legal de um ensino particular da Igreja em uma sociedade pluralista e “desprezar o ensino da Igreja”.
Quase sempre, Biden deixa claro que ele aceita o ensino da Igreja sobre o aborto, mas não pensa que é correto legislar sobre isso, esse ensino para o país. Eu penso que ele está errado e seu argumento é fraco, mas eu nunca vi Biden desprezar esse ou qualquer ensino da Igreja. Menos ainda Biden demonstrando desprezo pela Igreja, e a Igreja é sempre mais que a soma total de seus ensinamentos morais.
Além disso, todos os lados do debate sobre o aborto estão prestes a descobrir o quão complicado é redigir uma legislação que resista ao escrutínio jurídico e público. Uma coisa é pensar que o aborto é errado, outra é elaborar uma legislação que o torne ilegal. Perguntas difíceis surgirão. Interesses e visões morais concorrentes precisarão ser equilibrados. Na política, em oposição à teologia moral, o compromisso é a moeda do reino, e é a arte do possível, não o arco da justiça, que governa o dia.
Por que, então, Biden provoca tanta fúria? Todo fim de semana, vemos uma foto do presidente saindo da Paróquia da Santíssima Trindade, em Washington, ou da capela São José, na Paróquia Brandywine, em Delaware. Nós o vemos com a mancha de cinzas na testa toda quarta-feira de cinzas. Sabemos que ele carrega um rosário consigo. Ouvimos as histórias das freiras que o educaram quando menino. Sabemos que seus assessores são lembrados de que, se for um dia santo, o presidente precisa encontrar uma igreja, não importa para onde esteja viajando. Quantos católicos você conhece que nunca perdem de cumprir com um dia sagrado?
Em vez de amenizar qualquer julgamento de Biden, a fidelidade do presidente à prática da fé faz com que o coro profissional pró-vida o deteste ainda mais. Bastante ruim quando Bill Clinton, o batista, e Barack Obama, que frequentou a Igreja Unida de Cristo em Chicago por anos, apoiaram o aborto legal, mas ter um católico para fazer isso? Isso deixa alguns de nossos correligionários loucos.
Phil Lawler, do site conservador Catholic Culture, expressou repulsa semelhante quando o papa se encontrou com a presidente da Câmara, Nancy Pelosi. “Há menos de um mês, o Papa disse aos jornalistas que ‘aborto é assassinato’. Agora ele cumprimenta uma das principais defensoras dessa prática nos EUA”, opinou Lawler. “Sua reunião com Pelosi foi notavelmente mais calorosa do que sua reunião de cara fechada, alguns meses antes, com o ex-presidente Trump”.
Para Lawler, o fato de Pelosi ser avó, de ir à missa regularmente, de se importar com muitas das coisas com as quais o papa se preocupa, nada disso importa porque divergem quanto ao aborto.
Ou considere George Weigel, que está furioso porque o presidente recebe a Eucaristia. Em um comentário no Catholic World Report sobre negar ou não a sagrada Comunhão a políticos pró-escolha, Weigel escreveu: “A condição moral subjetiva do político pró-aborto – esta pessoa está em um estado de pecado mortal? – não é o ponto crucial da questão”.
Quem diz? Se a pessoa não está em pecado mortal, por que ela não pode receber a sagrada Comunhão? Certamente Weigel lembra que seu herói, Papa João Paulo II, deu a Sagrada Comunhão a políticos pró-escolha.
Eu não entendo como um católico pode reduzir completamente seu senso de identidade católica a se opor ao aborto mais do que posso entender como um católico pode rejeitar o profundo ensino da Igreja sobre a inviolabilidade da vida humana e abraçar os direitos ao aborto como uma espécie de triunfo progressivo.
Biden parece ser uma pessoa em conflito, e o conflito geralmente é um sinal de seriedade moral. Os fanáticos do aborto, tanto pró quanto contra, são aqueles que realmente estão fora da tradição moral e intelectual católica, que reconhece a complexidade e é alérgica a qualquer abordagem kantiana da ética.
Nós, católicos, nunca deixamos de reconhecer a necessidade de aplicar todos os princípios morais às circunstâncias concretas com o uso do juízo prudencial. E reconhecemos que o julgamento prudencial não é um cartão de “saia da prisão” para qualquer um que o invoque para esboçar o fato de que discorda do ensino da Igreja.
Há outro tipo de resposta à visita de Biden ao Vaticano, da qual devemos suspeitar, e é a narrativa de que esses dois homens são duas ervilhas em uma vagem. No The Washington Post, Matt Viser escreveu romanticamente:
Mas a ressonância também é pessoal, dadas as semelhanças entre o papa de 84 anos e o presidente de 78 anos, que de certa forma se tornaram aliados. Ambos alcançaram a liderança final no final de suas vidas e rapidamente se moveram em uma direção liberal. Eles enfrentaram resistência interna. Ambos são tratados com cautela pelos bispos conservadores dos EUA.
Essa redução dos dois homens a quaisquer semelhanças políticas percebidas ignora o fato de que um dos dois não é um político e, de fato, realmente deseja que a Igreja fique fora da política partidária. Então, em que sentido eles são “aliados”? Mas Francisco não é um liberal pelos padrões americanos, porque a Igreja Católica nunca endossou qualquer conceito de direitos independente de um conceito de responsabilidade o acompanhar.
O artigo de Viser também não percebe a semelhança mais importante entre os dois homens: eles não desistiram das organizações que lideram. Francisco não aponta os 1950 como uma época de ouro que precisamos recuperar. Biden não se entrega à crítica aos EUA, tão comum na esquerda. Ambos os homens têm mais esperança do que os membros mais jovens dos constituintes que lideram, e eles têm mais esperança porque eles têm mais sabedoria.
Francisco receberá Biden e o tratará da forma que ele parece tratar a maioria dos que o encontram, como um ser humano, que tem pecados ou falhas, assim como dons e dignidade. O papa não espera que um político leve à salvação, nem o presidente espera que o papa resolva todos os dilemas que afligem nossa vida política.
Eu espero que eles encontrem áreas de colaboração, porque há tarefas morais urgentes que se beneficiarão de tal colaboração. Eu espero, também, que eles sejam francos sobre suas diferenças, como adultos devem ser. Em resumo, nenhuma cabeça deveria explodir com essa reunião, mas algumas irão. A explosão não terá quase nada a ver com a reunião em si.
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Quando Biden se encontrar com Francisco, algumas cabeças vão explodir - Instituto Humanitas Unisinos - IHU