"Não é errado dizer que a 'reforma litúrgica' é a única verdadeira novidade 'institucional' gerada pelo Concílio. Se bem me lembro das sábias palavras de Gh. Lafont, o grande teólogo e amigo que perdemos este ano, devo lembrar que ele sempre dizia uma coisa decisiva: o Concílio, recuperando a 'sacramentalidade do episcopado', fez uma operação realmente revolucionária no nível teológico. A sinodalidade, se bem pensada, é a consequência (e talvez a causa) de uma modificação profunda na forma de pensar a identidade episcopal e eclesial", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 08-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Gostaria de apresentar, de forma muito concisa, quatro textos muito recentes, fruto de pesquisas nos contextos francês, alemão e "romano". Um texto já está escrito em italiano, um deles está prestes a ser publicado em tradução italiana (o francês) enquanto já podemos ter resenhas disponíveis daqueles alemães (uma acaba de ser publicada no Il Regno). Deter-me-ei brevemente nos aspectos mais qualificantes de cada uma dessas importantes contribuições:
As propostas fundamentais do volume são 4 repensamentos sinodais decisivos. Irei citá-los como aparecem nos capítulos finais do texto, editado por H. Legrand:
- que o clero não tenha em si todo o poder
- que o chamado ao ministério não deve seguir um único caminho
- que o poder do padre seja apenas serviço ao único sacerdócio de Cristo
- que a fraternidade cristã deva superar a subordinação da mulher ao homem.
Vamos examinar brevemente cada um deles
a) A reação da Igreja à explosão de liberdade no mundo moderno tardio levou a uma teoria da concentração de poder nas mãos do papa e do clero. Mas isso não é de forma tradicional. É um desenvolvimento da modernidade tardia que pode ser legitimamente modificado sem cair em uma "descontinuidade". Ler em paralelo o que dizia Leão XIII no final de 1800 e as palavras do Vaticano II [1], pouco mais de 60 anos depois, mostra claramente a mudança de paradigma em jogo. A comparação entre o "antes" e o "depois", realizada na trama do século XX, permite uma consideração que desperta a consciência [2] e gera nova motivação da ação.
b) No campo da chamada ao ministério, uma investigação apurada da história permite-nos notar como, também aqui, a aceleração das últimas décadas tende a impor um imaginário invertido: o primado da "ordenação por constrição" é substituído pela nulidade da constrição na ordenação. O primado da Igreja é substituído pelo primado do sujeito. Com consequências nada pequenas na forma de conceber o poder da Igreja em relação ao do padre.
c) A compreensão do poder sagrado reside em um equilíbrio muito delicado entre "representação de Cristo" e "perda de poder". Uma Igreja das "três coisas brancas" (Santíssima Virgem Maria, Santo Padre e Santíssimo Sacramento) é substituída por uma comunidade em que ser ministro é prestar um serviço a Cristo e à Igreja: há menos ênfase na “identidade sacerdotal” do sujeito encarregado e mais sobre o “sacerdócio de Cristo e da Igreja” que o ministro deve servir.
d) Por fim, a difícil saída da subordinação estrutural da mulher e a recuperação da igualdade fundamental constituem uma aquisição preciosa da "fraternidade / sororidade" operada pelo Evangelho na vida dos seres humanos: isto é válido não só para o mundo, mas também para a instituição eclesial [3].
Devolver a palavra às mulheres e reconhecer a sua autoridade é um percurso de transformação cultural e institucional em que não é o Evangelho que muda, mas somos nós que passamos a compreendê-lo melhor, segundo a conhecida expressão atribuída a João XXIII em seu leito de morte.
Como está claro, cada um desses 4 pontos implica um profundo repensamento teológico, espiritual e institucional. Um Sínodo deve trabalhar na perspectiva institucional de um repensamento desses nós da articulação estruturada da autoridade eclesial.
Na tradução o título seria: Ofício ministerial, poder e liturgia. Comentários teológicos para uma Igreja no caminho sinodal. Do título, para dizer a verdade, emerge apenas parcialmente a "verdadeira razão" do texto: isto é, a necessidade de oferecer uma resposta urgente à "tragédia dos abusos" que abalou profundamente a consciência eclesial católica, não só alemã, e que a levou a enfrentar o caminho sinodal, como uma reflexão profunda sobre a correlação de três "verbetes" do vocabulário eclesial, em cujas relações internas se centram os 18 ensaios do livro (escritos por 12 teólogos e 8 teólogas).
O prefácio esclarece que, sem abordar no plano da teologia fundamental, da história, da dogmática e da liturgia, as relações entre "ministério", "poder" e "culto ritual", nunca será possível resolver nem a tragédia dos abusos, nem da reforma da Igreja.
A estrutura do texto divide as contribuições em três campos, que giram em torno do tema do "poder": o primeiro é dedicado à "estética do poder - no âmbito da liturgia"; o segundo à "pragmática do poder - ordenamentos litúrgicos"; o terceiro à "lógica do poder - no horizonte das disposições eclesiológicas".
A simples lista dos títulos das três partes, cada uma composta por 6 ensaios encorpados, pode ser útil para oferecer uma visão geral do texto e esclarecer a amplitude de sua reflexão.
Sem entrar nos 18 densos estudos [4], alguns com um imponente aparato de notas, limito-me a observar o seguinte.
O que desperta maior interesse, e talvez algumas surpresas, pelo menos para o leitor italiano, é que todos esses ensaios, muitas vezes acompanhados de um aparato "hiperscientífico" de notas e referências, estão claramente orientados a oferecer um valioso material para a reflexão do "caminho sinodal” em andamento na Igreja alemã. Uma lógica de comunhão que muitas vezes pode ser interpretada exatamente ao contrário, quase como uma lógica de tomada de distância, senão de separação. Restabelecer o valor do "serviço eclesial" da mais audaciosa reflexão teológica e a necessidade que a Igreja local e universal têm, ambas, de tal serviço de "inteligência da fé" é talvez a motivação mais urgente que leva à consideração positiva desse importante volume. Uma Igreja que decide se mover em estilo sinodal – no norte ou sul, leste ou oeste do mundo alemão - terá necessariamente que enfrentar todas as junções e problemas que esse volume aborda com parrésia, com grande coragem e com notável lucidez. Quanto mais grave for percebido o problema, ao mesmo tempo dos abusos e da reforma, maiores devem ser os recursos de imaginação e de reflexão, que são justamente consideradas irrenunciáveis.
Igualmente interessante, no plano da reflexão litúrgica em relação aos arranjos eclesiológicos, é o segundo volume (Liturgia e imagens de Igreja). Aqui, a correlação entre "participação ativa" e "estrutura eclesial" é estudada de forma muito apurada. Muitos estudos aprofundam esses pontos-chave de forma original e bastante interessante. Citarei apenas alguns:
- Quem celebra a Eucaristia? A pergunta é respondida com ensaios do Novo Testamento, litúrgicos e dogmáticos, e com observações também de natureza sociológica e cultural.
- A reprodução litúrgica da Igreja como problema dogmático (Seewald)
- O fenômeno das "Liturgias abertas" (Kranemann) sobre o tema da eclesiologia das liturgias alternativas, com 5 teses conclusivas, que alcançam o horizonte sinodal como objetivo
- Finalmente, uma grande reflexão (Haunerland) sobre o valor sistemático e estrutural do conceito de “actuosa participatio”, que muda a autocompreensão da Igreja.
Esta reflexão [5], estimulada pela encíclica Fratelli tutti, constitui um documento bastante significativo para o próximo caminho sinodal italiano e universal. Trazemos apenas algumas ideias muito claras:
a) A instituição deve despedir-se das formas de vida e de governo eclesial que sofrem de uma deriva clerical patológica. Existem “sinais” que anunciam o “novo mundo que devemos aprender a habitar”. Aqui o texto retoma com novo ímpeto a solicitação que vem de João XXIII, de Paulo VI e recentemente de Francisco: a Igreja pode / deve aprender com os "sinais dos tempos", que são uma forma de "aprendizagem".
b) Uma visão da Igreja, entre Ecclesiam suam (1964) e Fratelli tutti (2020), é profecia de uma “evidência testemunhal da forma eclesial”, isto é, da destinação universal da salvação.
Este ponto-chave da doutrina cristã e da autoconsciência cristã deve mais uma vez tornar-se "imediato na percepção de qualquer pessoa e firme na convicção dos crentes" (Um apelo aos discípulos). Isso requer uma "dupla despedida":
- da "direção eclesiástica da sociedade civil" e
- da "direção eclesiástica dos conhecimentos humanos".
É reabertura, na história comum, de uma esperança de resgate para o mundo compartilhado, sobretudo para os pobres e para os descartados.
c) Em suma, a saída de um primeiro dualismo acarreta consequências institucionais claramente delineadas: a “inadequação dos aparatos teológicos, canônicos e formativos” exige uma pronta reforma, para que as energias positivas dessa mudança de paradigma possam ser liberadas. Porém, nessa mudança será necessário ter cuidado para não reinserir os “dualismos” por meio do uso de categorias que não estejam suficientemente calibradas.
d) O segundo dualismo, do qual se despedir, é a mudança de registro que diz respeito à oposição entre natural e sobrenatural, entre criação e redenção. Aqui, também, o trabalho de conversão e de transcrição a que a teologia é chamada deve deixar cair as evidências demasiado fáceis segundo as quais em alguns casos é a natureza que garante a graça, enquanto em outros a graça tem lugar apenas "além", se não "contra" a natureza.
Apenas algumas das muitas ideias de um texto rico e singularmente explícito, que muito pode contribuir para instituir um caminho sinodal aberto e com visão de futuro.
Não é errado dizer que a "reforma litúrgica" é a única verdadeira novidade "institucional" gerada pelo Concílio. Não quero retirar o que acabei de dizer, mas se bem me lembro das sábias palavras de Gh. Lafont, o grande teólogo e amigo que perdemos este ano, devo lembrar que ele sempre dizia uma coisa decisiva: o Concílio, recuperando a "sacramentalidade do episcopado", fez uma operação realmente revolucionária no nível teológico.
A sinodalidade, se bem pensada, é a consequência (e talvez a causa) de uma modificação profunda na forma de pensar a identidade episcopal e eclesial. Vou tentar explicitar isso brevemente, quase como um esquema:
a) Se o bispo é simplesmente o titular de uma "potestas iurisdictionis" - como pensamos no ocidente latino por mais de um milênio - também o sínodo é, por tradição, um instrumento de exercício do poder episcopal. Assim como foi gerido até a década de 1950. E assim o pensa também Trento, 500 anos antes: em um quadro claro e linear, mas fechado, irremediavelmente fechado em uma pirâmide que não pode ser invertida.
b) Quem exerce "poder" na Igreja? A pergunta hoje recebe uma resposta "teoricamente" diferente, mas praticamente muito semelhante à de antes. Mudamos de "teologia", também temos um papa que fala de uma "pirâmide invertida", mas permanecemos no ancien régime das práticas formais. A única prática que objetivamente mudou é a liturgia e, portanto, tentamos tornar a mudança “opcional”, recolocando em vigor, de 2007 a 2021, a forma antiga junto com a nova. O que seria como dizer: a pirâmide pode ser invertida, mas se for mantida na posição clássica, ninguém pode dizer nada. Nesse sentido, Traditionis Custodes é um documento fundamental em vista do Sínodo.
c) É curioso, porém, que a "autocensura" seja radical, em todos os níveis. Clérigos e leigos, para usar a nomenclatura mais difundida, todos fechados na mesma leitura. A mesma pergunta sobre a "estrutura do poder" é muitas vezes censurada, com base no princípio de "que na Igreja a questão do poder já estaria distorcida". Não, não é assim.
Aliás, devemos ser ainda mais claros. Por trás da reconstrução católica da identidade do Bispo, desenvolvida a partir de 800, pode-se ler, entrelinhas, o nascimento do "estado liberal" a ser combatido e refutado.
d) Eis então a questão que procuro formular nos termos mais claros: é possível que o Bispo, e por antonomásia o Papa, seja entendido como "titular de todo o poder legislativo, executivo e judiciário"? Nesse caso, a sinodalidade é uma "mera cerimônia" infrutífera. Se não quisermos que seja assim, temos que elaborar novas categorias institucionais para compreender o fenômeno. E não podemos nos comprazer em “não ter parlamentos”, porque teremos que escutar a Palavra também na experiência do povo, tirar dela o suco e falar bastante, entre nós, mesmo à custa de discussões.
e) Mas isso vale para a "figura clássica" do bispo. O que acontece se o Bispo for entendido como “vértice do sacramento da ordem” [6]? Certamente mudam as coisas, não necessariamente na direção mais apropriada. Houve, nestes 60 anos, um "uso instrumental" da sacramentalidade episcopal, que simplesmente reduplicou a exclusividade do poder da concepção clássica, deslocando-a para o plano sacramental.
f) Se o “sínodo” é a abertura para uma reconsideração da “autoridade dos batizados”, tal abertura deve ter os instrumentos institucionais a ser exercida. Aí intervém a "imaginação" e a "criatividade" de que precisamos. Será inevitável que, para o sucesso de cada iniciativa, nos movamos sempre num plano institucional a redescobrir como “profecia”. Sem um trabalho profético também dos canonistas não sairemos disso: precisamos de novas normas. Do contrário, morreremos de normas inadequadas que nasceram em outros mundos e que não respondem mais às nossas necessidades.
O código de 1917 orientou uma matéria que o de 1983 tocou de maneira demasiado tímida e frequentemente irrelevante. A Igreja é o âmbito institucional e pastoral que dá sentido ao Código, não é o Código o âmbito que dá sentido institucional à Igreja. Sobre isso, creio, teremos de fazer o mais exigente debate teológico, pastoral e espiritual, em vista do caminho sinodal universal e nacional que nos espera. Sem nunca cair na armadilha de “negligenciar” o plano institucional, porque o “bonum animarum” nunca prescinde das formas institucionais que são adotadas. E o princípio de “abertura” do código deve ser usado não apenas “fora” das normas, mas para conceber normas novas mais adequadas. Hipostatizar as disciplinas e as normativas é um erro que não devemos cometer. Nem como teólogos, nem como pastores, nem como canonistas, nem como fiéis. A prudência hoje implica, por necessidade e para todos, uma certa ousadia.
[1] Leão XIII ao arcebispo de Paris: “Só os pastores têm todo o poder de ensinar, julgar, dirigir; aos fiéis foi imposto seguir os seus ensinamentos, submeter-se docilmente aos seus juízos e deixar-se governar, corrigir e guiar à salvação”.
Vaticano II, Lumen Gentium 37: “Os pastores, ajudados pela experiência dos leigos, tanto nas coisas espirituais como nas temporais. (distintius et aptius), mais facilmente julgarão com acerto, a fim de que a Igreja inteira, com a energia de todos os seus membros, cumpra mais eficazmente a sua missão para a vida do mundo”.
[2] À semelhança do que H. Legrand realiza nessa última parte do texto, outro “mestre” como Gh. Lafont seguiu um caminho semelhante, lembrando “a Igreja de sua juventude” em seu Pequeno ensaio sobre o tempo do Papa Francisco, nas pp. 72-80. Todos nós, que nascemos "depois" do Concílio Vaticano II, precisamos ler as descrições do "antes" - que são verdadeiramente possíveis apenas para quem já então era presente, confessante e orante (como foi para Lafont, nascido em 1928, e para o próprio Legrand, nascido em 1935) em uma Igreja cujas prioridades são em parte tão diferentes da atual. Essa relação de "comunhão entre gerações" é uma das formas mais preciosas de sabedoria eclesial.
[3] A aceleração nos últimos meses se realizou com os dois Motu Proprio do Papa Francisco Spiritus Domini e Antiquum Ministerium é simbolicamente decisiva: pela primeira vez cai a "reserva masculina" de acesso aos ministérios instituídos do leitor, do acólito e do catequista.
[4] Limito-me a remeter à apresentação encontrada em GM Hoff - J. Knop - B. Kranemann, Il potere sacro, “Il Regno”, 14 (2021), 461-472.
[5] Pontifícia Academia para a Vida, Salvar a Fraternidade - Juntos, que pode ser lida no site: http://www.academyforlife.va/content/pav/it/salvare-fraternita.html
[6] O sistema clássico de compreensão da “ordem sagrada” (pelo menos a partir do século XI) funciona de maneira a separar dois âmbitos - que hoje, depois do Concílio Vaticano II, pensamos serem unificados: a potestas ordinis e a potestas iurisdictionis.
A primeira pertence ao "sacerdote", que é o grau máximo do "cursus" que se inicia com a tonsura. A potestas iurisdictionis, por outro lado, pertence ao "bispo", e se encarna ao plano da "doutrina" e do "governo".
O sistema clássico distingue profundamente o munus sacerdotal - atribuído ao padre - do munus régio e profético, referindo ao invés ao bispo. Na Igreja, portanto, o governo e a doutrina estão nas mãos dos bispos (e do papa), enquanto o poder sacerdotal está com os padres, enquanto os "leigos" obedecem aos primeiros e recebem os frutos da graça dos segundos. Em tal sistema, o "sínodo" é um instrumento nas mãos dos bispos, para o governo da Igreja.
A condição da Igreja pós-conciliar é diferente, que reconstrói as coisas de maneira diferente:
- recupera o episcopado, como o mais alto grau do sacramento da ordem
- atribui a todos os graus da escala hierárquica uma relação com os "tria munera": dos batizados ao papa, todos participam do sacerdócio, da profecia e da realeza de Cristo
- O Sínodo, portanto, torna-se intersecção entre todos os níveis da Igreja, um encontro para caminhar juntos, no exercício dos três "dons" que Cristo fez para todo o corpo de sua Igreja.