02 Setembro 2021
A escola tem sido vista como um estacionamento ou na sua funcionalidade econômica, voltada à aquisição de competências necessárias para formar o “capital humano”. Essa é a dura análise de Giulio Ferroni, professor emérito da Universidade La Sapienza, de Roma, que está lançando o livro “Una scuola per il futuro” [Uma escola para o futuro].
Todos falam de STEM [Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, no acrônimo em inglês], mas é necessária outra visão da ciência e da tecnologia, que faça as contas com a alteridade da realidade e com o limite: “Precisamos de um humanismo ambiental contra o risco de um humanismo tecnológico ou digital”.
Ele falou sobre a escola suspensa (1997) e sobre a escola impossível (2015). Agora, com a Covid-19 que “mandou às favas tantas discussões, tanta agitação e confusão de políticos, pedagogos, sindicalistas, reformadores e resistentes às reformas”, já que a escola “foi literalmente suspensa e, por alguns meses, literalmente impossível”, Giulio Ferroni volta a refletir sobre a educação com seu novo livro publicado pela editora La Nave di Teseo.
Capa do livro "Una scuola per il futuro", de Giulio Ferroni
“Precisamos de uma escola viva”, diz ele. “Hoje, mais do que nunca, há a necessidade de um autêntico relançamento da escola, que a liberte da burocratização em que caiu nos últimos anos e da condição de estacionamento a que tantas vezes foi curvada. Diante do domínio do digital e das mídias sociais, diante da difusão de uma perigosa incultura, entre ignorância, estupidez, irracionalidade, disseminação descontrolada da mentira e da vulgaridade, as gerações mais jovens precisam da tela forte da cultura e da ciência, daquela racionalidade problemática que certamente não pode depender de motivações mesquinhas, mas do atual precipitar da história e da necessidade de ‘salvar’ o futuro, da responsabilidade pelo destino do planeta, no qual todos estamos envolvidos.”
A reportagem é de Sara De Carli, publicada em Vita, 31-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Onde, na sua opinião, a escola mostrou a sua fragilidade neste um ano e meio? Ou se trata apenas da gravidade e da imprevisibilidade da emergência sanitária? Por que estamos em um ponto de virada para a escola?
O ponto de não retorno é determinado pelo que acontece em nível mundial. A Covid é um indício dos riscos. A verdadeira urgência que diz respeito ao mundo é a relação com um ambiente que corre o risco de se tornar invivível: esse risco será cada vez mais forte nas próximas décadas. A escola deve dar aos jovens a consciência do presente, uma consciência civil que dê o sentido da compatibilidade da vida no futuro. Em vez disso, o que estamos tentando fazer como escola? Recomeçar, como se nada tivesse acontecido, atribuindo à escola a mesma funcionalidade econômica de antes: a escola é importante para a aquisição de competências necessárias para a formação e o crescimento do capital humano. No máximo, pensa-se em corrigir as contradições mais macroscópicas, com mais atenção à equidade social e à sustentabilidade econômica, mas sem mudar o paradigma... O desafio é outro: é fazer com que as gerações mais jovens tenham uma consciência de limite e saibam agir para reverter o rumo, entendendo que a realidade não é algo que flui para a frente rumo a um bem-estar maior e que nem tudo é simples, fácil, progressivo.
Que tipo de cultura, disciplinas, didática é necessário para fazer isso?
Não as salas de aula invertidas e a programação para todos, sobre as quais tanto se fala. É preciso uma cultura forte. Eu sugeriria uma abordagem severa à ciência e à cultura humanística, integradas como consciência do mundo e das suas contradições. Ao invés disso, domina uma absolutização das supostas tendências dominantes, por exemplo, a digitalização como um apriori. O digital é muito útil como instrumento, mas não quando se torna o modelo da universalização da existência. Isso me parece uma loucura. Se não conseguirmos fixar o horizonte digital como instrumento de pesquisa e não como modelo antropológico, caminhamos rumo a uma sociedade com menos consciência e mais conflitualidade.
De fato, você fala do risco de um humanismo tecnológico ou de um humanismo digital e afirma que o único humanismo possível e desejável hoje é um humanismo ambiental. Estou impressionado com o fato de que começam a se levantar vozes que apontam para uma certa preocupação com a ênfase nas STEM em detrimento da humanitas, uma armadilha... Como esse humanismo ambiental pode ser praticado na escola?
Não sei articulá-lo, não sou pedagogo. Mas essa perspectiva é necessária. É preciso uma reconstrução do humano, que saiba inserir a tecnologia no horizonte do reconhecimento do espaço de vida e da necessidade de salvaguardar esse espaço de vida em nível universal. Estamos em um ponto de não retorno no nosso estar no mundo, e a escola deveria nos ajudar, não com lições abstratas de ecologia, mas a partir das próprias disciplinas ensinadas. É necessário o sentido da história para entender que o mundo nem sempre foi assim e que, portanto, pode ser não apenas diferente disso no futuro, mas também pior do que isso. Trata-se de levar a conceber a complexidade das disciplinas, não dominando todos os seus aspectos, mas advertindo os limites do saber e a necessidade de se defrontar com o saber e com a organicidade das disciplinas.
De fato, a verdadeira competência só pode ser adquirida com o conhecimento. Em vez disso, quando se fala apenas de competências, a referência é ao saber fazer as coisas sem se interrogar sobre a motivação das coisas. A competência exclui não a motivação pessoal, mas sim a motivação cultural e universal, porque toda competência, na realidade, está dentro do horizonte do saber humano. Tenho medo de uma competência que esteja separada do conhecimento crítico do contexto e da motivação: é funcional a uma economia que não tem o senso do seu próprio limite no mundo. Agora há a ênfase nas STEM, com uma pressão muito forte sobre os professores, mas ela é desviante. É preciso ouvir que as ciências não coincidem com a tecnologia, que a matemática não é cálculo ou algoritmos, mas sim uma investigação sobre a estrutura da razão e da realidade.
Para mim, por outro lado, parece ter voltado a vontade de consumir a realidade, como antes. Pelo contrário, a ciência é interrogação da realidade, ela se serve da tecnologia para transformar a realidade, mas não pode nos levar para fora da própria realidade, porque a matéria do mundo resiste ameaçadoramente à nossa ilusão de levar tudo para o digital. O problema das gerações futuras será esse. Mas não vejo a necessária atenção aos verdadeiros problemas do fato de estarmos na terra hoje. Está em curso uma maquiagem perfeita, mas os problemas explodem quando se vive a realidade, a vida cotidiana, com as suas contradições e a sua incerteza.
Portanto, a primeira tarefa é ensinar a se defrontar com o limite e a incerteza.
Os jovens procuram fugir da incerteza queimando o presente. A escola deveria habituá-los a interrogar o sentido dessa incerteza que vivem, dando-lhes perspectivas para fazer com que entendam que eles têm nas mãos o destino do mundo: não para transformá-lo infinitamente, mas para serem construtores de competências que devem servir para construir outros modelos de vida. A cultura humanística combinada com a científica deve fazer isso, sugerir outros modelos de vida.
No livro, você conta que essa reflexão nasceu nos meses do lockdown, quando estava envolvido na revisão do seu manual de história da literatura, e você se interrogou sobre o sentido e sobre o destino de fazer a história da literatura na escola. Hoje, todos nos entusiasmamos com os professores que conjugam Dante com um bot: qual é a sua reação?
Do ponto de vista teórico, é tudo legítimo. Mas Sergio Quinzio dizia que, quando pretendemos olhar muitas coisas elaboradas no passado – o mito, a religião, a poesia – e analisá-las e reconstruí-las com instrumentos nascidos depois, corremos o risco de esquecer que o sentido vital daquelas coisas era diferente. Traímos a alteridade daquele passado. Podemos brincar com Dante, com os quadros, com o passado, fazer videogame com eles. Eu não sou contra isso. Mas não dizer que esse é um modo para nos aproximarmos de Dante e entendê-lo melhor, porque, ao fazer isso, perdemos o contexto da sua experiência de vida.
Em vez disso, eu acredito que também é importante educar para sentir a alteridade do mundo, das pessoas, da história... É algo que ensina o respeito ao outro, é uma lição de vida. Proclamamos a inclusão, mas esta implica saber viver a relação com a alteridade. É o fundamento da relação com as disciplinas do passado e o seu significado no presente: um humanismo ambiental deve se apoiar justamente nisso, na necessidade e na importância da distância e da alteridade.
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“A escola deve preparar os jovens para salvarem o planeta.” Entrevista com Giulio Ferroni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU