30 Agosto 2021
O rabinato fez com Francisco aquilo que não teria a confiança de fazer com nenhum outro papa: explicitar as suas próprias ansiedades. É a prova de que o judaísmo confia que o papa entende: um título concedido a poucos.
A opinião é de Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, de Bolonha.
O artigo foi publicado em La Repubblica, 27-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Para captar o sentido do apelo dirigido ao papa por figuras renomadas do rabinato, em resposta a uma catequese papal sobre a Carta aos Gálatas, é preciso dar alguns passos para trás.
Para trás até à aurora do regime de cristandade, quando uma minoria interna ao judaísmo se tornou religião do império. Para trás até ao tempo em que a cruzada ensinou a matar os judeus. Para trás até às teologias que queimavam o Talmud para forçar os judeus a serem aquilo que imaginavam que eles fossem.
Para trás até ao tempo de Jules Isaac, o grande historiador francês que, por acaso, escapou da deportação de toda a família para Auschwitz em 1943: um corajoso intelectual do diálogo a quem se devem as amizades judaico-cristãs e os “pontos” de Seelisberg que, em 1947, levantavam o problema da relação entre a prática genocida da Shoá e a pregação cristã do desprezo antijudaico. Não era possível se livrar desse nó entretendo-se com as óbvias diferenças entre o racismo “biológico” dos fascismos e o antissemitismo “teológico” dos cristãos. De fato, o problema não era a sua diversidade: mas a soma dos seus respectivos desvalores.
E foi também graças à coragem com a qual João XXIII assumiu os pontos de Seelisberg que o Concílio, em 1965, chegaria à deploração solene do antissemitismo “de qualquer pessoa e de qualquer tempo”. Esse ato permitiu muitas coisas: a cassação dos “perfidis” do missal, o repúdio da acusação de deicídio e do sangue – até ao discurso de Wojtyla em Mainz, em 1980: no qual o papa retomou o ditado neotestamentário sobre a eternidade da aliança entre Deus e Israel, da qual o dom da Torá, escrita e oral, é penhor e caminho.
Uma virada epocal: que, no entanto, permitia prever que a massa inercial de séculos de antissemitismo católico permitiria o reaparecimento de preconceitos antigos e de superficialismos apenas aparentemente inócuos: por tradicionalismo, por ignorância, por superficialidade.
E era previsível que, contra isso, não bastaria nem o diálogo dos insípidos, nem a vigilância dos duros: era necessária uma vigilância dialógica, exigente. Aquela que existe entre pessoas que confiam umas nas outras.
É essa confiança que tem marcado a relação entre o rabinato e o Papa Francisco perante leituras equivocadas do Novo Testamento. Pensemos nas expressões contra os fariseus: frases que se tornaram a matriz da cantilena que opõe o cristianismo “religião do amor” ao judaísmo “religião do talião”: um marcador que sinaliza um claro analfabetismo religioso e um antissemitismo latente. Pensemos na pregação de Paulo de Tarso, cuja teologia da graça aos gentios, descontextualizada, tornou-se uma alavanca para se substituir à eleição.
Sobre esses pontos, o rabinato fez com Francisco aquilo que não teria a confiança de fazer com nenhum outro papa: explicitar as suas próprias ansiedades e explicar, no caso da catequese de agosto sobre Gálatas lida pelo papa, que apresentar a anterioridade da aliança em relação ao dom da Lei significa sugerir a obsolescência da observância da Torá e evocar teologias da substituição, as quais ainda hoje não é difícil ligar com outras culturas do ódio.
Excesso de suscetibilidade rabínica? Pretensão desmedida? Não, muito pelo contrário. É a prova de que o judaísmo confia que o papa entende: um título concedido a poucos.
É a confiança de que, na viagem à Hungria e à Eslováquia – lugares densos de discriminações antigas e modernas que muitas vezes agitam impiedosamente a cruz como um fetiche –, o papa pedirá perdão pelo antissemitismo de ontem e de hoje, e saberá responder àquele apelo que não pode permanecer sem ser ouvido, porque toca uma das cicatrizes mais trágicas da história judaica e cristã.
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Um gesto de confiança dos rabinos ao papa. Artigo de Alberto Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU