30 Junho 2021
"A quebrada começa a usar, para si mesma, o termo 'periferia'. Como 'um grito desesperado para unir aqueles que estão sendo abandonados nas metrópoles; para expor o que a sociedade não quer enxergar'. O período é contraditório. As lutas anteriores esvaziam-se. Mas surgem, pela primeira vez, o orgulho periférico".
O comentário é de Tiaraju D’Andrea,professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Zona Leste. Coordenador do Centro de Estudos Periféricos (CEP). Pós-doutor em Filosofia pela USP. Atuou como pesquisador convidado na Universidade Paris VIII e na École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHSS), Paris.
O texto a seguir foi construído a partir de entrevista de Antonio Martins com Tiaraju Pablo D’Andrea, publicado por Outras Palavras, 28-06-2021.
Eles são 76,1% da população urbana do país, segundo um estudo de 2017 do IBGE. Somam cerca de 130 milhões de pessoas, o que os faria o 10º país mais populoso do planeta. Vivem menos (em casos extremos, 23 anos, numa mesma metrópole) – e em condições que vão do desconfortável ao dramático. A covid os castigou muito mais. Mas eles foram os únicos a desenvolver, para enfrentar a pandemia, redes de solidariedade autônomas. E se transformaram, nas últimas décadas, num criadouro de invenções culturais. Ainda assim, os moradores da periferia urbana brasileira tornaram-se, nas últimas décadas, um ente estranho, para aquilo que se convencionou chamar de “esquerda”. As imagens associadas a eles são as igrejas evangélicas, a violência policial, as milícias, o crime organizado, os bailes funk.
O sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea, da Unifesp, é um dos pesquisadores que têm se dedicado a ir além do estereótipo e estudar o que chama de “sujeitas e sujeitos periféricos”. Em 25/6, em entrevista a Outras Palavras no âmbito do projeto Resgate, Tiaraju expôs algo de suas pesquisas e reflexões. A periferia que emerge de sua fala não é mágica – mas histórica. Surgiu devido a condições concretas e se transformou junto com o país. Ajudou a livrá-lo da ditadura, nos anos 1970. Regrediu com ele, nas décadas de reprimarização e precarização. Arrisca-se a submergir, como todos nós, no túnel de retrocessos e fundamentalismos. Mas pode surgir de lá, deste “possível novo quilombo de Zumbi”, o impulso capaz de resgatar o Brasil.
Como realidade e conceito, periferia urbana é um fenômeno recente em termos históricos, argumenta Tiaraju. Data de um tipo particular de urbanização, acelerada e segregadora, iniciado nos anos 1940. A vida tornou-se insustentável nas regiões mais pobres, e fez do Brasil o país de maior migração interna no mundo, no século 20. As multidões que acorriam às metrópoles em formação – São Paulo e Rio, especialmente – eram empurradas para áreas cada vez mais distantes, desprovidas de serviços públicos e mobilidade. Quase sempre precisavam, para se estabelecer, entrar em choque com a natureza: matas, mangues, mananciais aquíferos.
A industrialização nascente, prossegue Tiaraju, transformou estas periferias, aos poucos, em dormitórios proletários. Elas crescem de modo explosivo por décadas. Seus moradores envolvem-se em lutas sociais. Nos anos 1970, junto com o sindicalismo operário, que organizava em especial os homens, brotam as lutas territoriais cujas protagonistas são mulheres. Elas querem saúde e creches; organizam-se nos clubes de mães e no movimento contra a carestia – ainda que as mulheres também lutem nas fábricas e os homens, no bairro. Os partidos de esquerda ocupam algum espaço. E quem mais atua, nos planos simbólico e político, é a igreja católica ligada à Teologia da Libertação.
Nesse período, a quebrada se pensava diferente. As associações que se organizam para reivindicar melhor infraestrutura são de moradores de bairro. Trabalhador, povo e popular são as principais categorias utilizadas. Periferia era um tema mais empregado pelas universidades e pelos telejornais.
A partir dos anos 1990, continua o sociólogo, um terremoto econômico e político sacode as franjas das metrópoles. A desindustrialização encolhe dramaticamente a classe operária e espalha o desemprego nas quebradas. A esquerda, tanto laica quanto religiosa, retrai-se. Os partidos progressistas deslocam os quadros mais importantes para as instituições: os governos municipais e estaduais, as assessorias parlamentares e, mais tarde, Brasília. A Teologia da Libertação é golpeada pela devastação conservadora que marca o papado de João Paulo II. No espaço aberto pelo desemprego, as quebradas transformam-se em espaços de violência sistemática. Começa a política de encarceramento em massa dos pobres: entre 1990 e 2019, a população carcerária crescerá 900%. Avançam a criminalidade e o genocídio da juventude negra.
É nessa fase, apontam os estudos de Tiaraju, que a quebrada começa a usar, para si mesma, o termo “periferia”. Ela o faz, diz o pesquisador, como “um grito desesperado para unir aqueles que estão sendo abandonados nas metrópoles; para expor o que a sociedade não quer enxergar”. O período é contraditório. As lutas anteriores esvaziam-se. Mas surgem, pela primeira vez, o orgulho periférico; e a consciência de que a população que vive às margens dos centros e bairros “nobres” não é inferior, mas injustiçada. Na construção desta singularidade, a cultura é central. E na produção artística destacam-se os Racionais MC’s em álbuns como RaioX Brasil (1993) e Sobrevivendo no Inferno (1997).
Esta periferia, que aprofunda uma consciência de si mesma, sofre, no entanto, as influências contraditórias que marcam o país a partir de então. Ela vota majoritariamente no lulismo, a partir da virada do século, mas abre terreno para as igrejas do individualismo quando dissolvem-se as antigas formas de reivindicação de direitos trabalhistas e os próprios governos de esquerda deixa de apostar na mobilização popular. Vê seu território, abandonado pelo Estado, sob o controle de grupos como o PCC, cujo papel é ambíguo: defesa contra a brutalidade do encarceramento em massa e, ao mesmo tempo, empresariamento militarizado. Assiste à emergência de uma miríade de coletivos culturais, que são ao mesmo tempo espaço de criatividade e forma autônoma de geração de renda.
A resultante é ambígua, faz questão de ressaltar Tiaraju. Do ponto de vista estritamente político, o sentimento que predomina é a descrença. A abstenção eleitoral beira os 40%. Com o apagamento dos grandes projetos de país, abre-se espaço para a política como troca de pequenos favores.
Como envolver esta nova periferia na luta pelo Resgate do país? Tiaraju não tem respostas prontas, mas segue estudando. Ele o faz desde que, originário das quebradas da Zona Leste, chegou à USP em 2002 e chocou-se com o “abismo” entre a universidade e as maiorias. Ressalta: dois valores éticos, que se destacam nas periferias, podem ser bases para um novo tempo de reflexões e mobilização. O primeiro é a pluralidade. As quebradas são, por sua própria natureza, territórios instáveis e em renovação constante. Acolhem gente de múltiplas origens, que nelas busca um pequeno espaço para erguer uma casa de blocos e se proteger de algum modo da aridez insensível da metrópole. Todos sabem que são precários e desta noção nasce o respeito pelo outro. Talvez a consciência de território seja, neste aspecto, uma nova forma de consciência de classe.
E, pelos mesmos motivos, a periferia cultiva a solidariedade. Tiaraju lembra das redes comunitárias surgidas para proteger as populações da Covid em locais como o Complexo da Maré, no Rio, ou Heliópolis, em São Paulo. O sociólogo pensa que não é algo relacionado apenas à pandemia, mas uma atitude – a criação incessante do Comum – que a quebrada adota como estratégia de sobrevivência.
Tiaraju pensa, contudo, que esta conquista cultural e ética não substitui a presença do Estado e, em especial, sua capacidade única de promover a redistribuição de riquezas entre toda a sociedade. A parcela da riqueza social que é drenada incessantemente das periferias para a elite não pode ser recomposta por meio de ações solidárias entre os próprios moradores da quebrada. Para isso, é preciso um Resgate muito mais potente…
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Tiaraju D’Andrea: Periferia brasileira, além dos clichês - Instituto Humanitas Unisinos - IHU