11 Janeiro 2020
"Não falta dinheiro: mudanças de impacto custariam 0,2% do PIB. Nem saídas: também os bairros medievais da Europa foram favelas. Duro é romper a lógica da segregação, e enfrentar os preconceitos de neoliberais e desenvolvimentistas", escreve Ion de Andrade, médico, professor universitário e colaborador do BrCidades, em artigo publicado por Outras Palavras, 09-01-2020.
A tragédia de Paraisópolis nos traz, num flash, um cenário devastado. Ele mostra, para além do massacre de nove jovens, uma vida cheia de precariedades e sofrimentos. Pela tragédia vêm aos jornais notícias sobre a qualidade de vida no bairro, os conflitos étnicos com a comunidade bem-nascida próxima e detalhes sobre o teatro de operações. Sabemos, então, que o baile funk era o único espaço de lazer para a juventude, não a de Paraisópolis, mas a de toda a região.
No outro extremo, em notícias separadas por escassas semanas, os jornais estamparam que a estatal chinesa que construirá a ponte entre Salvador e Itaparica está contente, pois o governo baiano cobrirá a totalidade dos riscos do empreendimento com 56 milhões de reais por um período de 15 anos.
Ao todo, entre garantias e custo real da obra, a ponte custará a bagatela de seis bilhões de reais. É desnecessário lembrar que a realidade das periferias da capital baiana é similar à de Paraisópolis.
De Natal vem um exemplo ainda mais danoso aos cofres públicos. O estádio Arena das Dunas, cuja obra custou em torno de 400 milhões de reais em 2014, resultará num custo final para o governo do Estado de R$ 1,4 bilhão, ao final dos 22 anos de contrato, mais de três vezes o valor inicial estimado.
Esses contextos e números são muito informativos sobre os níveis de civilidade reinantes no Brasil. Mas, as informações mais valiosas que emergem desses três fatos aparentemente desconexos dizem respeito à cultura política hegemônica no país que dá coerência aos três e define o que é prioritário aos olhos do Estado, independentemente da identidade ideológica das autoridades públicas.
Constata-se também dessas mega construções o fato de que o Estado brasileiro, sim, tem recursos e o país poderia enfrentar folgadamente, como veremos, a sua agenda social aportando dignidade e bem-estar às suas populações mais desvalidas.
A grande questão de por que não o faz é complexa e decorre da reprodução continuada de uma sociedade de matriz escravocrata, na qual as periferias representam Senzalas desprovidas de qualquer direito perante um Estado sucedâneo da Casa Grande que entende não ser da sua responsabilidade o cumprimento ali da agenda civilizatória, o que mantém essa “escravaria” sob seu jugo, no que vem a ser a maior e mais consensual política pública do Estado brasileiro.
Não nos concentraremos nisso, mas nas ferramentas que poderão permitir escapar dessa realidade trágica e crônica ou sobre o que fazer.
Em primeiro lugar, é importante considerar que, para quem desconhece a realidade das periferias e dela só faz uma ideia mediada pelo que sai na mídia (o que inclui muitas autoridades públicas), a solução para seus problemas parece impossível, o que inibe a ação pública, pois o gestor não sabe por onde começar.
Essa percepção, porém, não é a de quem, até por falta de escolha, lá vive. Os moradores das periferias sabem o que é que lhes seria prioritário em termos de melhorias do seu cotidiano. Noutras palavras, aquilo que externamente parece sem remédio, não o é.
Outra barreira hipnótica, inibidora de uma ação mais robusta nas periferias, é de ordem estética que institui que nenhuma política pública seria capaz de enfrentar tamanha fealdade. Esse problema, por incrível que pareça, não é real. As cidades medievais da Europa, a que nos damos o direito de achar bonitas, embora sejam obras do passado e estejam “concluídas”, apresentam o mesmo perfil urbano de nossas periferias, o que inclui casas apinhadas, ruas estreitas e uma edificação no topo de morros. Portanto, o problema insolúvel das periferias não é esse perfil urbano “sem remédio”. Aliás ele veio para ficar e gerará novos consensos estéticos, após solucionarmos os desafios civilizatório.
Em terceiro lugar, a agenda das periferias não é mais a agenda de enfrentamento da miserabilidade extrema que víamos no Brasil antes da experiência dos governos populares. Não se trata mais de distribuir cestas básicas a uma população famélica. Embora materialmente a vida não seja o que deveria ser, as conquistas sociais da sobrevivência, decorrentes das lutas do povo, mudaram expectativas. Além disso, o SUS e a educação obrigatória, mesmo devendo melhorar muito, estão também presentes nas periferias.
Então, o que falta?
Do ponto de vista metodológico, falta o reconhecimento por parte do Poder Público do direito dessas comunidades de exprimir seus problemas e de propor soluções capazes de ser convertidas em políticas públicas e em equipamentos coletivos e de usufruir dos orçamentos públicos inegavelmente existentes para a sua materialização.
Do ponto de vista dos conteúdos, o que falta às periferias é tudo aquilo que subjetivamente lhes pareça prioritário. Um espaço de lazer para a juventude? Uma biblioteca? Um centro poliesportivo? Um museu? Uma praça? Uma piscina pública? Uma escola de música? Artes plásticas e cênicas? Um anfiteatro? Um centro de velórios? Uma casa de idosos? Um parque ecológico? Uma alameda pedestre? Um telescópio para a escola? Uma linha de ônibus que atenda certa região do bairro? Um endereço para o correio? O tratamento respeitoso pela polícia? O saneamento básico? Uma melhor coleta de lixo? A desratização? Um belvedere? O tratamento do córrego imundo para que se torne um passeio público? Que se tampe as caixas d’água para evitar a dengue? Um local adequado para a atividade física dos idosos? O cineclube? A colônia de férias para a criançada? Uma banda sinfônica? Um coreto? Uma sala de eventos? Um ponto público para a internet?
Difícil não é imaginar o que as comunidades podem querer ver materializado com orçamentos públicos que existem num processo de planejamento de bairro quando não têm nada. Difícil é entender o quão monstruoso é o Brasil por ainda não ter uma agenda de inclusão social que dê significado, sentido e alcance à vida de milhões. A restritíssima agenda consensual à esquerda e à direita é “Saúde, Educação & Segurança”, todos ruins.
Estamos numa quadra em que os neoliberais resolveram abandonar os investimentos sociais e os desenvolvimentistas, se tiverem liquidez, constroem grandes obras.
Mas quanto custa afinal essa agenda de emancipação das periferias para os orçamentos públicos?
Vejamos primeiro o exemplo do Rio Grande do Norte (RN), que é um dos estados mais pobres do Brasil e que nesse contrato com o Arena das Dunas gastou cerca de 1% do seu orçamento de 2019. Se o RN, em lugar de ter assumido essa dívida da Copa, tivesse preferido saldar a sua dívida social nos mesmos valores, poderia investir em 20 anos, sem recursos federais, a enormidade de 22 milhões de reais em cada comunidade do estado agrupadas por 20.000 habitantes e selecionadas pelo terço mais pobre, alcançando 1.320.000 potiguares com R$1.100.000 por ano por comunidade durante vinte anos.
No que toca ao orçamento federal, considerando sermos 210 milhões de habitantes, seríamos 10.500 agrupamentos de 20.000 habitantes, dos quais apenas os 3.500 mais pobres seriam alvo desses investimentos.
Considerando então um aporte hipotético de 1,5 milhão de reais por ano em cada uma dessas comunidades, (o suficiente para construir equipamentos coletivos de até 750m² por ano ou de 1.500m² em dois anos, de excelente padrão construtivo) seriam gastos 5 bilhões e 250 milhões de reais por ano, dos 3,26 trilhões previstos no orçamento federal de 2019 ou 0,16% do total. É claro que essa é apenas uma parte da agenda, que deve incluir equipamentos, políticas públicas, manutenção e recursos humanos, mas os números revelam a viabilidade da empreitada.
Não esqueçamos, o subproduto desse processo é cidadania em lugar de escravaria e democracia estável em lugar do golpismo.
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A potência sufocada das periferias brasileiras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU