04 Dezembro 2019
"Uma nota episcopal não é obrigada a referir-se à chacina de Paraisópolis como resultado da política de terrorismo policial contra populações da periferia. Isso fazemos nós, cientistas sociais. Mas os bispos bem poderiam denunciar profeticamente a política de segurança pública do atual governo paulista como uma forma de necropolítica", escreve Pedro A. Ribeiro de Oliveira, professor aposentado de Sociologia da Religião da UFJF e da PUC-Minas.
A Presidência do Regional Sul 1 da CNBB divulgou nota que é um primor na arte de se solidarizar com pessoas que sofrem, como é dever da Igreja, sem denunciar as pessoas ou instituições responsáveis por esse sofrimento – no caso, as forças policiais do governo paulista. A nota é um desafio ao saudável exercício de análise de discurso. É o que faço aqui, citando os trechos que me parecem mais significativos da nota.
O parágrafo inicial usa o verbo na voz ativa para dizer que “nove jovens perderam suas vidas”, como se fosse por iniciativa própria que eles e ela morreram. Se analisarmos com cuidado o parágrafo final, talvez essa hipótese não seja infundada. Com efeito, a nota termina dizendo: “providos dos mais nobres sentimentos e valores familiares, culturais, religiosos e humanos, os jovens trilharão caminhos de justiça e cidadania, livres das circunstâncias que conduzem à violência e à morte”. Ou seja, não seria a intervenção brutal da polícia, mas a falta de valores que conduz os jovens à morte. Mas deixemos de lado essa interpretação, que tem fundamento empírico mas talvez não corresponda à intenção dos autores, e vejamos outros trechos da nota que revelam omissões muito importantes.
No parágrafo inicial, os bispos referem-se à “triste e assustadora notícia da grave ocorrência em Paraisópolis”. Quem leu a notícia sabe que foi uma ação violenta de policiais militares, que, a pretexto de perseguirem dois motociclistas infratores, fecharam todas as possibilidades de fuga de um baile funk e provocaram nove mortes e muitos ferimentos por pisoteamento. Os bispos, porém, evitam descrever a chacina, limitando-se a usar a expressão típica das narrativas policiais: “ocorrência”.
O parágrafo seguinte refere-se aos “sentimentos de Jesus Cristo” para assegurar que “repudiamos toda forma de violência, manifestação de ódio e desrespeito à vida”. Isso vale para qualquer tempo ou lugar da história humana. Inclusive, aqui é usado o genérico “toda”, e não o específico “essa”. Assim fica o repúdio amplo, geral e irrestrito à violência, e não o repúdio à ação policial que causou aquele massacre dos jovens. Aliás, a nota evita falar de “chacina”, como o ato foi qualificado por entidades de defesa dos Direitos Humanos. Refere-se apenas a “este grave golpe mortal e sangrento” sem apontar a mão que o desferiu.
Depois os bispos referem-se a “periferias dilaceradas pela ausência de recursos materiais e políticas públicas indispensáveis ao bem-estar, fraternidade e sociabilidade”, como se ausência pudesse ser sujeito de alguma ação. Recursos materiais e políticas públicas podem, com certeza, diminuir dilacerações e sofrimentos nas periferias, mas suas causas são outras – e não foram apontadas.
Enfim, é notável a ausência da palavra polícia. A nota refere-se positivamente a “aparatos de segurança do Estado”, ao afirmar que cabe a eles “propiciar a todos, principalmente à população mais vulnerável, oportunidades e projetos eficazes que visem à superação da violência e das desigualdades econômicas e sociais”. E em seguida alerta que “não é ético nem patriótico que os recursos humanos e materiais sejam instrumentalizados para ferir e eliminar a vida e a dignidade de cada ser humano.” Mais uma afirmação genérica que ninguém precisa associar à ação policial em Paraisópolis....
Concluindo, é mister reconhecer que uma nota episcopal não é obrigada a referir-se à chacina de Paraisópolis como resultado da política de terrorismo policial contra populações da periferia. Isso fazemos nós, cientistas sociais. Mas os bispos bem poderiam denunciar profeticamente a política de segurança pública do atual governo paulista como uma forma de necropolítica.
Juiz de Fora, 3 de dezembro de 2019.
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A arte clerical de manifestar-se sem denunciar. Artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU