06 Março 2021
“Cegos pelo brilho das promessas de tecnologias salvadoras e a esperança de que tudo mude para que nada mude, não percebemos que reorientamos nossos passos sem antes pensar para onde os dirigimos”, escreve Andreu Escrivà, ambientalista espanhol, em artigo publicado por La Marea, 02-03-2021. A tradução é do Cepat.
A transição ecológica é o termo da moda no ecologismo e entre aqueles que querem parecer preocupados com o meio ambiente, como antes era a sustentabilidade. A passarela que, de repente, aparece embaixo de nós para nos salvar do precipício, como a que permite a Indiana Jones chegar ao Santo Graal, após três provas. Só se requer uma coisa para passar: um salto de fé. E parece que estamos nisso.
Após assumir que excedemos o uso dos recursos naturais e a energia que o nosso planeta havia acumulado durante eras (primeira prova: só o penitente passará), e aperfeiçoar a arte do malabarismo formal e conceitual com o campo semântico de o verde (segunda prova: a palavra de Deus), agora, resta a última prova: a de obter a fonte da eterna juventude econômica e ecológica, nessa ordem.
Entre todas as terminologias que circulam ao redor da era pós-sustentabilidade, transição ecológica adquiriu um status totêmico, que combina com o dom do polimorfismo e uma glutonaria desmedida, como um buraco negro, por engolir qualquer expressão que orbite ao seu redor. Com tantas arestas presentes no termo, cada um vê o quer ver. As sombras também adotam formas distintas, conforme a posição do observador.
Para muitos, o próprio conceito de transição ecológica se tornou sinônimo de outra transição, a energética, em um exercício de tecnorreducionismo que exclui as implicações mais profundas do termo, aqueles que fazem referência à nossa relação com o território e nossos semelhantes.
É transição energética continuar fazendo o mesmo de sempre, mas com um traço limpo de emissões? Então, transmuta-se ao sustentável o extrativismo em zonas rurais ou em países em vias de desenvolvimento, o planejamento de infraestruturas sem atender a quem vive e cultiva essa terra e o desmatamento com motosserras elétricas? Dá no mesmo continuar sob o jugo de um oligopólio energético – por mais renovável que seja em alguns poucos anos – ou democratizar a geração e consumo de energia a partir da justiça social? É claro que não.
A transição ecológica também devorou seus congêneres no econômico: nem “crescimento verde” e nem “economia circular” se salvaram de ser digeridos por seu estômago polissêmico, e agora só podem ser concebidos como um apêndice, mais ou menos inflamado, do termo raiz. No momento, o Green New Deal foi capaz de escapar de sua voracidade, por força da presença midiática e a agenda política. No entanto, não conseguiu se desligar. Enfim, este novo pacto verde é uma ferramenta para a tão desejada transição.
Ainda que... um momento: para que vale a transição ecológica? Por acaso, fizemos esta pergunta?
Talvez a maior confusão existente em relação à transição ecológica seja a que a assimila a um objetivo em si mesmo, quando é, como a passarela de Indiana Jones no templo do Cânion da Lua Crescente, um meio para chegar à meta. Ou, como diria Joe MicMillan em Halt and Catch Fire: “The thing that gets you to the thing”, ou seja: a coisa que te leva à coisa que de verdade importa.
A tragédia é que, enquanto confundimos transição ecológica com painéis solares e carros elétricos, seguimos sem fazer um debate aberto e profundo sobre o nosso destino. Certo, colocamos em movimento o trem da transição ecológica: para onde nos dirigimos? Para um decrescimento ordenado que seja capaz de evitar o colapso? Para uma economia do Estado estacionário? Para um novo capitalismo verde, igualmente voraz, mas melhor maquiado e com certificação ecológica? Para um ecossocialismo herdeiro das utopias do século XIX? Continuaremos fazendo equilibrismos – econômicos, ecossistêmicos e termodinâmicos – esperando que a estrutura não se desmorone?
Lamentavelmente, parece que escolhemos esta última opção. Cegos pelo brilho das promessas de tecnologias salvadoras e a esperança de que tudo mude para que nada mude, não percebemos que reorientamos nossos passos sem antes pensar para onde os dirigimos. Que os termos podem se tornar banais tanto pelo esvaziamento de seu conteúdo profundo, como pela multiplicidade de significados: se algo passa a significar tudo, é que já não quer dizer nada.
Quando chega ao local onde o Santo Graal está guardado, escondido entre dezenas de outros cálices, Harrison Ford escolhe uma taça simples, sem adornos. “Esta é a taça de um carpinteiro”, proclama. E é que o que importa, o que sempre importou, não é o continente: é o conteúdo. Nos bebamos promessas vazias em uma taça reluzente, por mais tentadora que seja. Ainda estamos a tempo de não nos deixarmos deslumbrar e escolher sabiamente.
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Indiana Jones e a transição ecológica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU