Por: Márcia Junges | Edição João Vitor Santos | 07 Janeiro 2017
Os mais desavisados podem se questionar: o que tem a ver design com transformação social? Bem, incorrer nessa perspectiva é um indicativo da necessidade de entender o conceito de design para além dos “fazedores” de objetos, decoradores de ambientas etc. “O design é umas das maneiras para expressar a capacidade humana de criar, de imaginar e praticar alternativas que desafiem e até subvertam o status quo. Sua especificidade está no desenvolvimento de dispositivos que possibilitem transformar o mundo em um mundo melhor”, explica Carlo Franzato, design e professor da Escola de Indústria Criativa da Unisinos. Apreendendo essa perspectiva do professor, fica mais fácil entender que o design “está relacionado à transformação do mundo e assim é orientado para o futuro. Logo, é estritamente ligado à sustentabilidade”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Franzato explica que existe uma tradição na associação do design com a sustentabilidade quando se trata de desenvolvimento de produtos e serviços. A questão de fundo é minimizar o impacto ambiental da produção. “Hoje, porém, temos consciência de que a minimização do nosso impacto sobre o planeta não é suficiente para alcançar a sustentabilidade. O caminho rumo à sustentabilidade requer uma mudança radical na nossa concepção de habitar o mundo”, aponta o professor. É nesse processo de mudança que o design encontra seu papel. “As redes de design estratégico podem trabalhar justamente neste sentido, pois pressupõem uma perspectiva ecossistêmica que não privilegia o ponto de vista de um indivíduo ou de uma organização, mas que considera a complexidade de nossa sociedade na sua íntima articulação com o meio ambiente que a hospeda”. Assim, seguindo com Franzato, abandona-se a equivocada concepção de design enquanto “fazedor de coisas” e se passa a ver “o design estratégico como uma tecnologia social para inovar a sociedade”.
Carlo Franzato
Carlo Franzato é designer, com doutorado em Design pelo Politecnico di Milano, universidade italiana estatal de cunho científico-tecnológico. É decano e professor dos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado em Design da Escola de Indústria Criativa, que reúne as áreas de comunicação, linguagem e design, da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos. É líder do Grupo de Pesquisa “Rede de Estratégias em Design” e membro do “Grupo de Pesquisa em Design estratégico: inovação cultural e social”. Também é membro da rede internacional de pesquisa “Latin Network for the Development of Design Processes”. Atua na divulgação científica do design e das demais áreas de conhecimento ligadas aos processos criativos, colaborando com organizações de promoção do design e veículos de comunicação.
A entrevista foi publicada na revista IHU On-Line, no. 493, de 19-09-2016.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é o design estratégico e que diferenças há entre esse tipo de design e um design “tradicional”, digamos assim?
Carlo Franzato - O design é umas das maneiras para expressar a capacidade humana de criar, de imaginar e praticar alternativas que desafiem e até subvertam o status quo. Sua especificidade está no desenvolvimento de dispositivos que possibilitem transformar o mundo em um mundo melhor.
Não existe um design “tradicional”. Esta expressão soa até um pouco estranha, pois o design é intimamente relacionado com a inovação. Mas entendo seu sentido, refere-se aos inúmeros designs de... Historicamente, o design evoluiu dando cada vez mais importância ao tipo de dispositivo desenvolvido, mais do que concentrando-se no método de design. Assim, assistimos a uma multiplicação de design de produto, design de interiores, design de moda ou ainda, mais recentemente, design de serviços, design de experiências etc. Funcionam similarmente as locuções design gráfico, design digital, design interativo etc. Em todos os casos, o complemento passou a dividir abordagens metodológicas supostamente diferentes.
O adjetivo “estratégico” não pretende identificar mais um dispositivo a ser desenvolvido e, logo, mais uma abordagem. Pelo contrário, pretende recuperar a centralidade do método de design e valorizar importância de seu desafio último e maior: a transformação do mundo, sua inovação.
Este é efetivamente um desafio grande, tanto importante, quanto difícil. A complexidade do mundo contemporâneo ou, melhor, a consciência que hoje temos da complexidade do mundo torna difícil nossa ação. Pode ser até paralisante, pois sabemos que, mesmo agindo com toda nossa inteligência e boa intenção, podemos errar. E também acertando, imprevistos repentinos podem intervir na nossa ação, anulando-a ou alterando seus êxitos. Finalmente, poderíamos até chegar a alcançar êxitos contrários ao desejado. Por isso, a estratégia se torna necessária, para vencer o medo dos erros e dos imprevistos e conseguir agir, e também para estar prontos a corrigir o curso da ação.
Na metalinguagem da disciplina, plano, programa e projeto possuem significados distintos. O plano ocorre antes da ação, vislumbrando seu curso e desdobrando-o no horizonte temporal. Similarmente, o programa predispõe à ação e, quando inicializado, segue executando-a decidida e invariavelmente. Ao invés, o projeto não possui esta confiança. Não descreve realidades conhecidas, mas explora o desconhecido. Não opera sobre a certeza, mas avança através da possibilidade. Assim, o projeto não vem antes da ação, mas se manifesta com a ação, no desconhecido, pela possibilidade. A aceitação do erro e dos imprevistos é inerente a esta maneira de agir.
Se no português, “projeto” é apenas substantivo, no inglês, “design” é também verbo, reforçando esta concepção de design como ação e também como estratégia. Efetivamente o adjetivo “estratégico” começa a soar redundante perto do substantivo “design”. Mas tal redundância é provavelmente necessária neste esforço de enfrentar a complexidade, de recuperar a centralidade do método e de valorizar a inovação.
IHU On-Line - A partir disso, o que são redes de design estratégico? Em que medida essas redes primam pelo pensamento sistêmico, e não mais aquele de um “designer solitário”?
Carlo Franzato – Como método de ação estratégica, o design deve ser considerado um processo organizacional. No paradigma da complexidade, e aqui incluindo as noções de sistema aberto e de ecossistema, tal processo envolve não somente um “designer solitário”, mas todo o ecossistema de ação: o meio organizacional (escritórios de design, empresas e demais organizações), o mercado, a sociedade e o meio ambiente. Assim, o processo de design é considerado e desenvolvido no âmbito das múltiplas relações ecossistêmicas instauradas na ação projetual.
Ademais, no cenário da sociedade da informação e da economia do conhecimento, a prática projetual de relações não é mais uma oportunidade acessória para o processo de design estratégico, mas se transfere para seu cerne. Chamo de “redes de projeto” o sistema aberto e dinâmico dos atores envolvidos em um projeto, articulados por meio de relações colaborativas. E chamo “projeto em rede” a prática projetual dessas relações. As expressões “redes de design” e “design em rede” são equivalentes.
O encontro entre organização em rede e design estratégico promove uma mudança metodológica em direção a permitir e promover os processos de estruturação de relações ecossistêmicas e de sua prática projetual. Assim compreendido, o efeito mais significativo das redes de design estratégico é a organização e a contínua reorganização das relações e das atividades que são desenvolvidas no ecossistema das empresas públicas e privadas, das ONGs e das demais organizações.
IHU On-Line - Em que sentido essas redes se conectam com a sustentabilidade e a inovação social?
Carlo Franzato – Como falamos, o design está relacionado à transformação do mundo e assim é orientado para o futuro. Logo, é estritamente ligado à sustentabilidade que, segundo a declaração do Rio [1], é característica desses processos de desenvolvimento que, ao mesmo tempo que possibilitam às gerações presentes o alcance de seus objetivos, garantem às gerações futuras as mesmas oportunidades.
Há uma grande tradição de design para a sustentabilidade, ligada ao desenvolvimento de produtos, serviços e sistemas produto-serviço, cujos processos de produção e consumo tenham um impacto ambiental minimizado. É um âmbito de estudo interdisciplinar para o qual convergem especialistas não somente do design, mas também da engenharia, da administração e de outras áreas.
Hoje, porém, temos consciência de que a minimização do nosso impacto sobre o planeta não é suficiente para alcançar a sustentabilidade. O caminho rumo à sustentabilidade requer uma mudança radical na nossa concepção de habitar o mundo. Devemos mudar nossa ideia de desenvolvimento e de bem-estar, ou seja, devemos passar de uma sociedade que associa seu bem-estar ao crescimento contínuo de sua capacidade de produção e consumo, para uma sociedade que se avance ecossistemicamente, melhorando a qualidade do meio socioambiental. Para tanto, é necessário começar um processo de aprendizagem e inovação social.
As redes de design estratégico podem trabalhar justamente neste sentido, pois pressupõem uma perspectiva ecossistêmica que não privilegia o ponto de vista de um indivíduo ou de uma organização, mas que considera a complexidade de nossa sociedade na sua íntima articulação com o meio ambiente que a hospeda. A partir desta perspectiva, a mudança metodológica prospectada disponibiliza o design estratégico como uma tecnologia social para inovar a sociedade e, logo, alcançar a sustentabilidade.
O projeto em rede se torna fundamental, pois não somente permite alcançar soluções que melhorem a qualidade do meio socioambiental, mas também permite fazê-los juntos. Às redes de design estratégico são participadas por uma pluridiversidade de atores em ação colaborativa que, projetando, aprendem a agir para a inovação social e a sustentabilidade. O potencial de transformação passa das mãos de poucos especialistas para as mãos de quem queira participar.
IHU On-Line - Em que sentido se promovem relações transdisciplinares a partir das redes de design estratégico?
Carlo Franzato – A complexidade e a perspectiva ecossistêmica estão diretamente relacionadas com a transdisciplinaridade. Os processos de organização em rede, de colaboração e, como tais, os processos de projeto em rede demandam um trabalho transdisciplinar.
No projeto em rede, tendo competências projetuais específicas, os designers assumem um papel de facilitadores processuais, habilitando o processo e compartilhando os insumos que o alimentam, e de mediadores de relações colaborativas, promovendo o diálogo e a construção coletiva. Assim, os designers se tornam protagonistas de uma ampla rede de atores que contribuem direta ou indiretamente para a elaboração estratégica e a inovação, incluindo especialistas de diversas disciplinas e pertencentes a diversas empresas e outros tipos de organização, bem como pessoas de maneira geral. O design se transforma em uma plataforma transdisciplinar que sustenta a convergência dos especialistas e dos demais atores que integram essa produtiva rede de colaboração.
NOTA:
[1] O entrevistado refere-se à Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, construída a partir da Conferência das Nações Unidas para Meio Ambiente e Desenvolvimento, que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, entre os dias 3 e 14 de junho de 1992. O texto está disponível em http://bit.ly/2d3D4fB. (Nota da IHU On-Line)
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Articulação em rede para “um mundo melhor”. Entrevista especial com Carlo Franzato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU