25 Janeiro 2021
Ler a obra do teólogo suíço Karl Barth muitas vezes parece uma luta intelectual. O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, mais conhecido nos Estados Unidos pela sua participação na trama para assassinar Hitler, tinha uma voz autoral muito diferente; mesmo em sua forma mais inflexivelmente profética, sua obra raramente parece confrontante.
O comentário é de Marcia Pally, que leciona na Universidade de Nova York; é professora visitante anualmente na Faculdade de Teologia da Universidade Humboldt (Berlim) e foi pesquisadora entre 2019 e 2020 no Centro de Investigação Teológica (Princeton). O artigo foi publicado por La Croix International, 23-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
KRÖTKE, Wolf. Karl Barth and Dietrich Bonhoeffer.
Theologians for a Post-Christian World.
Baker Academic, 272 páginas
Wolf Krötke, um leitor próximo de ambos os teólogos, é capaz de aprimorar os brilhantes pontos essenciais da obra deles e de levar o leitor a reexaminar seus próprios pensamentos sobre a relação entre nós e Deus à luz das afirmações deles – a ponto de perguntar sempre de novo: é nisso que eu acredito?
Krötke, pastor da Alemanha Oriental comunista, compartilha uma intenção fundamental com seus interlocutores, que também eram pastores: falar com inteligência e honestidade sobre o modo como estudiosos e não estudiosos pensam sobre Deus.
A descrição de Krötke da sua própria confiança em Barth e Bonhoeffer para construir uma “resistência teológica” quando a resistência política era amplamente fútil ecoa elegantemente as suas investigações sobre os problemáticos esforços deles para fazerem o mesmo durante a ascensão do fascismo.
A partir de 1934, com o argumento teológico da Declaração de Barmen contra o Estado totalizante, Barth, assim como Bonhoeffer, chegou à conclusão de que às vezes era necessária uma resistência política violenta.
De sua parte, Krötke não tem certeza sobre a “apropriação pela Igreja dos instrumentos violentos da nossa era pecaminosa. A guerra, mesmo uma guerra chamada de justa (...), não oferece nenhum paradigma geral para a resistência cristã à desumanidade, ao racismo e ao genocídio”.
Krötke expõe a grande estrutura do pensamento de Barth, desde seus primeiros trabalhos sobre Paulo na Epístola aos Romanos (1919) até os 13 volumes de “Dogmática eclesiástica” (1932-1967).
“Barth gostava de dizer”, observa Krötke, “que a Igreja e a teologia têm a tarefa de ‘começar do zero a cada hora’.”
Isso certamente é verdade na obra de Barth: você não consegue captar ponto algum sem “começar de novo”, remontando-o às suas premissas.
No relato de Krötke, os principais pilares do pensamento de Barth são estes: Deus é, desde o princípio, antes mesmo da criação, “o Deus que nos encontra em Jesus Cristo e é entendido em termos da história da graça de Deus com a humanidade”.
Esse encontro e as suas manifestações entre nós são a “história de uma parceria em que o Deus, que é amigo dos seres humanos, vem ao nosso meio e nos torna capazes de ser seus parceiros livres e de levar vidas que merecem ser chamadas verdadeiramente de humanas”.
Finalmente, “como a nossa orientação fundamental é a relação com Deus, realizamos nossa liberdade mais plenamente correspondendo ao chamado de Deus”.
Krötke cita críticos que acham que a visão de Barth oferece muito pouco espaço e agência para a humanidade. No entanto, o encontro com um Deus que optou por nos agraciar com uma amizade continua sendo o ponto de partida de Barth. Todos os caminhos partem daí.
Os leitores devem decidir por si mesmos se isso coloca Deus no centro da vida humana, como Barth acreditava, ou se, como dizem seus críticos, o relato de Barth sobre o nosso encontro com Deus é uniforme demais – muito dependente das noções idealistas alemãs sobre a obra do Espírito através da história e surdo para os detalhes da relação de qualquer pessoa real com Deus.
É uma doutrina do tipo “pegar ou largar”, como Bonhoeffer descreveu? Ou ela permite que a pessoa se sinta abraçada em sua parceria com Deus?
Tendo estabelecido a perspectiva teológica fundamental de Barth, Krötke passa a explicar as ideias de Barth sobre a natureza do pecado, a relação entre o cristianismo e outras fés (incluindo o ateísmo e a aliança com Israel), a importância dos nossos esforços falhos de reconciliação (com Deus e com as outras pessoas), o papel da pastoral em possibilitar o encontro com Deus (e o papel da exegese em compreendê-lo) e, mais importante, a natureza da “parceria” divino-humana concedida pela graça – aquilo que Barth chamou de “a soma do Evangelho”.
Krötke inicia a sua seção sobre Bonhoeffer observando que ele também ancorou seu trabalho no encontro entre a pessoa humana e Deus.
“A fé é um dom de Deus”, explica Krötke, “enquanto a religião é sempre uma relação com Deus moldada pelos humanos.” O realismo de Bonhoeffer pode nos ajudar a ver as múltiplas relações entre as pessoas, Deus, a fé e as instituições religiosas.
Nisso, ele difere de Barth, que afirmava que todas as pessoas estão “fadadas” a ter uma religião.
Essa ideia de “destino”, acreditava Bonhoeffer, nega a liberdade por meio da qual as pessoas vão ao encontro de Deus.
No belo resumo de Krötke, “os seres humanos, distintos da sua religião, são criaturas amadas por Deus, cuja liberdade para encontrar Deus contém muito mais possibilidades do que qualquer forma particular de comportamento religioso”.
Bonhoeffer defendia a ideia agostiniana de que, no encontro com Deus, descobrimos novas possibilidades de experiência que, de outra forma, não poderíamos sequer imaginar.
E quem é esse Deus? Não é um deus ex machina que nos salva no momento da necessidade, e não apenas o Jesus fraco e crucificado, mas sim o Deus descartado da vida moderna: “Deus é para o mundo apenas ao se afastar dele e, assim, ao lhe dar tempo e oportunidade de ser ele mesmo”.
Bonhoeffer escreveu sobre a “loucura” do Deus invisível, embora “o mistério de Deus liberte os seres humanos para permitir que Deus vá até eles”. Deus é encontrado na oração e na meditação sobre as Escrituras, e Krötke oferece uma análise eloquente do “Livro de orações da Bíblia: introdução aos Salmos”, de Bonhoeffer.
A potência desse Deus, que está perto quando não podemos fazer nada, tornou-se mais importante à medida que os esforços para deter Hitler fracassaram, e Bonhoeffer, condenado à prisão, nada mais pôde fazer. “Compartilhar” o sofrimento desse Deus em um mundo sem Deus é uma fonte de orientação e consolo.
É como nos identificamos “generosa e abnegadamente com toda a comunidade e com o sofrimento dos nossos irmãos humanos”.
A discussão de Krötke sobre essas ideias estimula o leitor a um diálogo com Bonhoeffer sobre o papel do sofrimento divino e humano, o mistério e a invisibilidade de Deus, e a visibilidade de Jesus (“O Deus de Bonhoeffer é o Deus que se torna nada mais do que humano”).
Embora os cristãos alemães que seguiram Hitler acreditassem que Deus se manifestava na história alemã, Bonhoeffer sustentava que Deus se manifesta apenas em e por meio de Jesus Cristo. Mesmo assim, Krötke também comenta sobre a “abertura de Bonhoeffer a outras religiões”, que, “assim como a sua compreensão da falta de religiosidade, surge da sua fé em Deus em Cristo”.
Nossas muitas religiões e variedades de fé fazem parte da vida humana, onde Deus nos encontra.
O penúltimo capítulo de Krötke sobre Bonhoeffer explora sua obra política, o “primeiro esforço concentrado no mundo teológico alemão (...) para enquadrar a questão da ordem do Estado em termos de cristologia”.
Bonhoeffer afirmava que a Encarnação e a Ressurreição não destroem o mundo, mas sim o afirmam.
Assim, o Reino de Cristo “é o fundamento do Estado [mundano] também, que afasta o poder da morte, preserva a ‘ordem da comunidade, do matrimônio, da família e da nação [Volk]’ contra o indivíduo isolado e restringe a sede de egoísmo”.
Na visão de Bonhoeffer, assim como na de Lutero, não há direito à revolução.
Mas isso não significa que o Estado tenha carta branca; pelo contrário, o Estado é obrigado a promover as outras ordens da sociedade – Igreja, família, esfera econômica, “cultura, educação e arte”.
E a Igreja deve procurar limitar o poder do Estado, que, em seu uso das sanções e da força, se distingue do reino de amor de Cristo.
Enquanto o Terceiro Reich mantinha um mínimo de ordem social, Bonhoeffer hesitava em exigir que a Igreja o identificasse como uma aberração que “surge como ‘a besta do abismo’” na negação de Cristo.
Mas Bonhoeffer acreditava que os cristãos individuais podiam descobrir que o nazismo havia abandonado a obrigação de trabalhar com – e de ser limitado por – outras ordens da sociedade, colocando-se acima delas como uma espécie de ídolo. Em seu ensaio de 1933 “A Igreja e a questão judaica”, Bonhoeffer escreveu que “o Estado deve criar ‘lei e ordem’ para todos os seus ‘sujeitos’. O Estado, portanto, restringe ilegitimamente seu ofício quando recusa a ordem e a justiça a um determinado grupo de pessoas – em outras palavras, os judeus (...) A Igreja deve se levantar, sem exceção, por todas as ‘vítimas de qualquer ordem social’ e, em primeiro lugar, pelos judeus”.
Por causa da recusa de justiça por parte do Estado alemão aos judeus, Bonhoeffer se encontrou em “uma situação extraordinária” na qual, como Krötke escreve, alguém poderia se afastar “‘do normal e regular’ e decidir por uma ação ‘além de qualquer possível regulação pela lei’”.
Enquanto Hitler tornava a ilegalidade um novo modo de governo, Bonhoeffer via sua própria decisão de sair da lei apenas como uma exceção tornada necessária por circunstâncias excepcionais – e foi, notavelmente, uma decisão pela qual ele estava disposto a aceitar punição.
Na opinião de Krötke, foi esse pensamento que impulsionou Bonhoeffer a voltar dos Estados Unidos para a Alemanha em 1939. Krötke acha que a posição teológica de Bonhoeffer sobre o Estado nazista foi finalmente muito mais radical do que a Declaração de Barmen de 1934, escrita em grande parte por Barth.
No entanto, Krötke também nos deixa com mais uma ironia: a teologia que Bonhoeffer desenvolveu para lutar contra o Estado fascista logo seria apropriada pelas autoridades da Alemanha Oriental em apoio ao Estado comunista.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A resistência teológica de Barth e Bonhoeffer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU