07 Fevereiro 2020
Uma tarefa cultural necessária hoje é identificar, no pensamento de Bonhoeffer, interrogações capazes de impelir à reflexão nestes tempos sombrios.
A opinião é do teólogo italiano Fulvio Ferrario, decano da Faculdade de Teologia Valdense de Roma, em artigo publicado na revista Confronti, de fevereiro de 2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A 75 anos do seu assassinato ocorrido no campo de concentração nazista de Flossenbürg, são múltiplas as tentativas por parte da direita (religiosa ou não) nos Estados Unidos e na Alemanha de se reapropriar do pensamento de Bonhoeffer.
Se eu tivesse que identificar um ponto de partida, escolheria a publicação de um volumosa (entenda-se: quanto ao número de páginas, cerca de 500) biografia de Dietrich Bonhoeffer, que se deve a um estadunidense chamado Eric Metaxas.
Tratando-se de um péssimo livro, não surpreende que tenha sido prontamente traduzido para o italiano e promovido por célebres autores de textos religiosos. Infelizmente, foi apresentado favoravelmente também em lugares, por outros aspectos, meritórias.
O autor não é um estudioso, mas sim um propagandista da extrema direita cristã, um dos primeiros a se alinhar com Trump, visto como o Grande Combatente contra o Mal absoluto, identificado na candidata democrata à presidência, sobre cujo nome Metaxas se permitiu desafogar o seu mau gosto, chamando-a de “Hitlery” Clinton.
O autor apresenta Bonhoeffer como um evangélico, fundamentalista e reacionário, comprometido com uma batalha até a morte contra o “espírito do tempo”: ontem, o nacional-socialismo; hoje, as várias formas de cristianismo que os fanáticos consideram escandalosamente como “liberais”, geralmente ignorando o significado histórico desse adjetivo.
Entre os frutos dessa “trumpização” do teólogo, há uma placa colocada pelo embaixador estadunidense Richard Grenell no campo de concentração de Flossenbürg, onde Bonhoeffer foi morto. No seu discurso por ocasião da inauguração da placa, o embaixador Grenell citou frases de Bonhoeffer como: “Não na fuga dos pensamentos, apenas na ação está a liberdade”; que, relida à luz da filosofia twitterforme do presidente estadunidense, acaba significando: a liberdade é agir sem pensar.
A Igreja Evangélica da Alemanha se manteve devidamente afastada da operação trumpista de Flossenbürg, assim como a crítica séria imediatamente reconheceu a natureza do livro de Metaxas: porém, sabe-se que a comunicação, incluindo a religiosa, segue canais que têm pouco a ver com competência.
E, assim, o 75º aniversário do assassinato de Bonhoeffer, que ocorre em abril próximo, verá a maciça instrumentalização desse autor por parte do mundo fundamentalista norte-americano: há rumores de uma expedição a Flossenbürg do vice-presidente Mike Pence, na ocasião do aniversário (ou seja, no meio da campanha eleitoral para as eleições presidenciais).
A direita europeia não podia ficar para trás. A Alternative für Deutschland, a formação soberanista alemã, descobriu uma paixão bonhoefferiana. O partido se comprometeu, como se sabe, a se libertar das suspeitas de simpatias neonazistas: a biografia de Bonhoeffer, também aqui condensada em algumas citações, arrancadas de qualquer contexto e interpretação sensata, é utilizada nesse sentido.
Tal leitura é corroborada mediante a ênfase da pertença de Bonhoeffer a setores conservadores da resistência anti-hitleriana. Esse elemento restitui, por si só, pelo menos uma parte da verdade: Bonhoeffer não foi um “progressista”, e as categorias mediante as quais ele pensou a dimensão política e a alternativa ao nazismo talvez olhem mais para o passado do que para o futuro. Restam a perturbação e o desprazer pela instrumentalização fascistoide de um homem que foi morto pelo fascismo.
A tribo de fãs de Bonhoeffer, à qual este que escreve pertence, poderia se perguntar autocriticamente se esse sequestro por parte da direita religiosa e política não seria uma espécie de contraponto a uma certa inflação bonhoefferiana, sob a forma de citações em rajadas na pregação e em ensaios teológicos e, também, de tentativas de alistar o teólogo para as próprias bandeiras.
Além desse ato penitencial, resta uma tarefa cultural, que consiste em identificar, no pensamento de Bonhoeffer, não tanto coberturas autorizadas para as próprias teses, mas sim interrogações capazes de impelir à reflexão nestes tempos sombrios.
A pergunta-chave que ele se faz na prisão de Tegel é, como todos sabem: “O que é verdadeiramente o cristianismo para nós ou, também, quem é Cristo hoje?”.
E a Igreja, quando se recorda de ser quem é, também pensa na política a partir dessa pergunta.
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Bonhoeffer soberanista? Artigo de Fulvio Ferrario - Instituto Humanitas Unisinos - IHU