17 Setembro 2016
Em Assis, se falará de religiões, rigorosamente conjugadas no plural. O cristianismo, porém, não é uma religião: palavra de Francisco e Martini. E também de Giacomo Biffi. Que gostava de contar uma história...
A reportagem é de Simone M. Varisco, publicada no sítio Caffè Storia, 16-09-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"O cristianismo, em si, não é uma concepção da realidade, não é um código de preceitos, não é uma liturgia. Não é sequer um impulso de solidariedade humana, nem uma proposta de fraternidade social. Ou, melhor, o cristianismo não é nem mesmo uma religião. É um acontecimento, um fato. Um fato que se resume em uma Pessoa. Hoje ouvimos dizer que, no fundo, todas as religiões se equivalem, porque cada uma tem algo de bom. Provavelmente, isso também é verdade. Mas o cristianismo não tem nada a ver com isso. Porque o cristianismo não é uma religião, mas é Cristo. Isto é, uma Pessoa." Quem escreveu isso foi o falecido cardeal Giacomo Biffi, arcebispo de Bolonha.
Uma posição talvez impopular, mas nada isolada. Talvez não muitos se lembram que o cardeal Carlo Maria Martini, arcebispo de Milão, por alguns anos, manteve uma coluna de correspondências no jornal Corriere della Sera, "Cartas ao cardeal Carlo Maria Martini", interrompida apenas poucos meses antes da sua morte.
Em junho de 2010, solicitado pela pergunta de um leitor sobre a multiplicidade das religiões, Martini escreveu: "As religiões são uma tentativa do homem de se colocar em relação com a divindade. Por isso, assumem das civilizações circundantes muitos dos seus sinais expressivos, símbolos, temas, parábolas etc. com os quais expressam a sua busca. Por isso, a história das religiões também é a história do seu vínculo com as diversas culturas. Naturalmente, o cristianismo também assumiria algum desses sinais e símbolos. Mas o cristianismo é muito mais do que uma religião: ele nasce da iniciativa divina de entrar em contato com o homem e de lhe revelar a si mesmo".
Novamente um fato, portanto. E do qual é preciso dar testemunho. "Não se pode entender um cristão sem que ele seja testemunha", explicava há algum tempo o Papa Francisco, refletindo em Santa Marta sobre o martírio de tantos cristãos.
"Nós não somos uma ‘religião’ de ideias, de pura teologia, de coisas bonitas, de mandamentos. Não. Nós somos um povo que segue Jesus Cristo e dá testemunho – mas quer dar testemunho de Jesus Cristo –, e esse testemunho, algumas vezes, chega a dar a vida."
Daí a concepção da Igreja não como "universidade da religião", mas como povo que segue a Cristo, também até o martírio. Um assunto sobre o qual o pontífice voltou há poucos dias, por ocasião da celebração eucarística dedicada à memória do padre Jacques Hamel, morto na igreja de Saint-Étienne-du-Rouvray no dia 26 de julho passado.
Nesse sentido, o cristianismo é um caso único. Ao anunciar o divino aos homens – com maior ou menor sucesso – Maomé, Buda e os fundadores das diversas religiões se tornaram profetas, de algum modo.
Não é assim para Cristo. João Paulo II explica bem isso na carta apostólica Tertio millennio adveniente, um olhar voltado para a Igreja do novo milênio e do Jubileu do ano 2000.
Em Cristo – diz-se na carta apostólica – a pedagogia divina iniciada com a eleição do povo de Israel "atinge a sua meta: efetivamente, Ele não Se limita a falar ‘em nome de Deus’ como os profetas, mas é o próprio Deus’".
Nesse sentido, continua João Paulo II, "tocamos, aqui, o ponto essencial onde o cristianismo se diferencia das outras religiões, nas quais se foi exprimindo, desde o início, a busca de Deus por parte do homem. No cristianismo, o ponto de partida está na Encarnação do Verbo. Aqui, não é apenas o homem que procura Deus, mas é Deus também que vem em Pessoa falar de Si ao homem e mostrar-lhe o caminho, por onde é possível alcançá-l'O".
Com certeza e com razão, fala-se de religião cristã, de religião católica. O cristianismo também teve e continua tendo o seu vínculo próprio com a cultura na qual se originou e na qual está hoje inserido. Uma cultura que deu ao cristianismo orações, liturgias, doutrina. Nesse sentido, há toda a "tentativa do homem de entrar em relação com a divindade".
Também não tiveram sucesso as contraposições entre fé e religião que alguns teólogos, como os evangélicos Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer, teorizaram ao longo da história. Julgando a religião – no seu conjunto de ritos, doutrinas, valores – como um simples comportamento arbitrário do homem, propuseram o caminho de um cristianismo "sem religião", acabando por chegar, às vezes, à superficialidade – palavra de Francisco – do gnosticismo, tão na moda no nosso tempo.
O cristianismo não pertence a qualquer civilização, dizia Pio XII. Deslocando o olhar para o panorama mundial atual, evidencia-se que, depois do colapso das ideologias e na fragilidade da cultura laica, se difundiu e cresceu a pretensão de utilizar "as religiões" – rigorosamente conjugadas no plural – como muleta para os mais disparatados projetos políticos, neste e no outro lado do Atlântico.
Se Obama "tem determinadas ideias que não podemos compartilhar", e Putin é um homem "tocado pela necessidade da fé", como revela por Bento XVI nas suas Ultime Conversazioni [Últimas conversações], desde que o mundo é mundo, César sempre traiu Cristo. Prescindir de Cristo para exaltar supostos "valores humanos" mais facilmente compartilháveis pela grande plateia propensa ao aplauso significaria, para os cristãos, trair a si mesmos. E não só.
Quer agrade ou não, Cristo disse ser Deus. Das duas, uma: ou ele era louco ou o que ele dizia é verdade. Não há caminhos do meio. Mas atenção: se o que ele diz é verdade, então tudo muda realmente.
O cardeal Biffi gostava de contar uma história. "Quando eu dava aula em Milão no Instituto de Pastoral, eu dei uma aula sobre ressurreição de Cristo. Depois da aula, uma senhora se aproximou e disse: ‘Mas o senhor realmente quer dizer que Jesus está vivo?’. ‘Sim, senhora, que o seu coração bate exatamente como o seu e o meu.’ ‘Mas então é realmente necessário que eu vá para casa para dizer isso ao meu marido.’ ‘Que bom, senhora, tente ir e dizer isso ao seu marido.’ No dia seguinte, a senhora volta e me diz: ‘Sabe, eu disse aquilo ao meu marido.’ ‘E ele?’ ‘Ele me respondeu: mas imagine, você deve ter entendido mal.’ Notem que ela era catequista. No entanto, estava confusa. Eu, então, lhe entrego a gravação da aula. Ela as mostra ao seu marido, e ele, no fim, entra em colapso: ‘Mas, se é assim, muda tudo!’ Pensem nisso e me digam se não é verdade: se aquele homem, bonito, excepcional, é realmente Deus e se ainda está entre nós, então realmente muda tudo".
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Não existe mais religião: Francisco, Martini e Biffi em Assis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU