04 Janeiro 2021
O Deus de Jesus é um Deus humano, um Deus próximo, um Deus que vacila conosco, enquanto nos enche com a sua ternura. Esse Deus não se impõe. E eu me absteria absolutamente de fazer dele um Deus necessário. Não, ele é até um Deus facultativo, isto é, que deixa ao ser humano a faculdade de deixá-lo de lado. É um Deus do qual se pode abrir mão, mesmo que ele não possa abrir mão de nós.
A reflexão é de Alain Durand, dominicano francês do Convento La Tourette, perto de Lyon, na França. O artigo foi publicado em Garrigues et Sentiers, 28-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A cultura cristã está em forte declínio, principalmente entre os jovens”: esse é o título de um artigo publicado no Le Monde do dia 14 de agosto, ao apresentar os resultados de uma pesquisa do IFOP [Instituto Francês de Opinião Pública] realizada no início de agosto de 2020. O comentarista Jérôme Fourquet escreve: “Há um fenômeno global de secularização da sociedade. Muitos não se interessam muito em conhecer essa cultura. Ela se tornou uma língua estrangeira ou até desconhecida para uma grande parte das gerações mais jovens”.
Essa é a situação em que nos encontramos. Nessa pesquisa, fala-se diretamente de “cultura cristã” e não de “fé cristã”. Pode-se ter uma boa cultura cristã sem ter a fé, enquanto o inverso praticamente não é possível, pois a fé nasce da palavra, e tal palavra necessariamente contém elementos de conhecimento e, portanto, de cultura.
Nos últimos anos, já houve muitas outras pesquisas que indicavam um declínio contínuo da prática religiosa e da adesão aos dados da fé. Existem bons motivos para acreditar que essa tendência continuará. Para quem é crente, essa situação é um verdadeiro desafio, sem falar do sofrimento que pode acarretar, principalmente para as pessoas idosas que constatam o abandono da religião nos seus filhos e ainda mais nos seus netos. A questão é saber como é possível hoje comunicar a fé, que palavra e que testemunho podem superar essa evidente falta de interesse pelas realidades da fé.
A secularização é um fato. Seria preciso saber como despertar o interesse pela questão de Deus fora de qualquer percurso religioso. Mas isso é possível? A questão não é totalmente nova, pois foi levantada profeticamente por Dietrich Bonhoeffer, cujas “Cartas da prisão” continuam sendo imprescindíveis. Sem dúvida, não há outra possibilidade para fazer compreender algo da fé do que falar de Deus a partir das nossas realidades humanas. A situação atual nos convida a superar um modo de proceder tradicionalmente dedutivo que consiste em partir de um Deus preliminarmente definido para posteriormente deduzir uma “visão cristã” do ser humano. Não se trata de falar do ser humano a partir das realidades religiosas. Em vez disso, trata-se de falar de Deus a partir do ser humano.
A questão de Deus não pode fazer sentido senão no prolongamento da questão do ser humano. Ela se situa no seu desenvolvimento. Deus se torna aquilo que constitui o coração da consistência humana. Deixa de ser aquele a partir do qual se poderia deduzir aquilo que é o ser humano, pois é aquele cujo rosto se constrói a partir da nossa humanidade.
Sim, é precisamente a partir do ser humano que podemos conhecer algo de Deus. Tal percurso só ganha forma no fato da revelação de Deus no homem Jesus. É precisamente a partir dessa humanidade singular que é a de Jesus de Nazaré que se delineia o rosto de Deus.
Isso é tão verdade que Jesus declara em João 14,9: “Quem me viu, viu o Pai”. Uma palavra que poderia ser qualificada, a partir dos nossos hábitos religiosos, como “reducionismo inaceitável”. “Não”, poderíamos responder a Cristo, “quem te viu não viu o Pai, o Pai é outro, alguém que não temos o direito de confundir contigo! Serias, talvez, o falso profeta de um Deus sem transcendência? Nós estamos fartos desse apelo permanente ao humano, nós precisamos de um Deus outro, de um Deus que eleve a nossa alma para o alto, longe dos nossos vales de lágrimas. Nós precisamos justamente de algo diferente do humano, e lá vens tu para rebaixar as nossas aspirações a ponto de pretender que basta ver a ti, o homem de Nazaré, para ver Deus. Que achatamento! Que confinamento! Nós esperávamos nos elevar rumo às esferas celestes, e tu nos rebaixas novamente ao nível do chão!”.
“Além disso, o homem que és e ao qual ousaste reduzir o Pai perdeu toda a atratividade humana na Cruz. Esse homem se tornou o último de todos, o flagelado, o condenado, e tu gostarias que Deus fosse reconduzido a tal decadência! Não, é preciso que mantenhamos a distância, o abismo entre Deus e ti, entre o ser humano e Deus. Senão, estamos perdidos. Não haveria mais razão, então, para nos apegarmos a Deus, se Deus fosse tão semelhante a nós! Nós precisamos de um outro Deus, de um Deus de verdade, de um Deus que não seja um homem, acima de tudo não um homem humilhado, afligido, martirizado, morto. Não, nós precisamos de um Deus forte, de um Deus todo-poderoso, de um Deus radiante, capaz de vir nos socorrer, em vez daquele Deus humilde que vem compartilhar a nossa sorte”.
Mas não é precisamente esse Deus, esse Deus das religiões, esse Deus prestigioso, esse Deus poderoso, que acabou de abandonar o nosso universo? Não é ele, talvez, o Deus que não interessa mais às pessoas apesar das demandas religiosas de um número cada vez menor de pessoas? Não é, enfim, o Deus da religião, esse Deus todo-poderoso, glorioso e condescendente, que deixou de ser credível para a maioria dos nossos contemporâneos?
Tomemos, como ponto de partida, o fato cada vez mais evidente de que aquilo que interessa aos homens de boa vontade é poder levar uma vida propriamente humana, sem fanfarras, uma vida com as suas alegrias simples e as suas pequenas satisfações do cotidiano, uma vida em que se possa viver com dignidade, em que se possa participar da festa da vida saboreando as doçuras da terra, a beleza das coisas e o calor das relações, uma vida em que cada um se encarrega de construir a fraternidade humana.
Tudo isso pode preencher as nossas vidas? Por que relativizar o nosso modo de vida, a partir de um ponto de vista que seria o de um Deus exterior que propõe algo muito mais grandioso? O humano, a partir do qual Cristo nos fala de Deus e delineia o seu rosto, é feito de tudo aquilo que dá valor à nossa vida, assim como dava valor à sua vida. Não havia apenas grandes coisas na sua vida, aquelas que se diz serem reservadas à elite, havia todos aqueles gestos simples e amigáveis que criam fraternidade, havia aquela atenção ao sofrimento alheio que era o primeiro passo dado para dar alívio para a tragédia humana, havia também aquelas refeições e aquelas bebidas que ele apreciava a ponto de ser tratado como glutão e beberrão pelos seus detratores. Havia a acolhida incondicional aos feridos da vida, aquele perfume derramado sobre a sua cabeça, aquelas refeições partilhadas com aqueles que ele nunca deveria ter frequentado segundo a moral vigente dos homens religiosos.
Sim, tudo isso nos remete a outro Deus. Um Deus humano, um Deus próximo, um Deus que vacila conosco, enquanto nos enche com a sua ternura. Esse Deus não se impõe. E eu me absteria absolutamente de fazer dele um Deus necessário. Não, ele é até um Deus facultativo, isto é, que deixa ao ser humano a faculdade de deixá-lo de lado. É um Deus do qual se pode abrir mão, mesmo que ele não possa abrir mão de nós. Um Deus que eu só posso encontrar descobrindo ao mesmo tempo que sou infinitamente precioso aos seus olhos. É um Deus que alegra o coração, um Deus que permite a vida, um Deus que não tenta pegar ninguém em falso, um Deus que se esconde no coração de toda relação de fraternidade, um Deus que dilata toda a riqueza do humano, porque ele mesmo é a plenitude interior do humano.
É um Deus de quem é possível falar humanamente, um Deus que se deixa abordar sem que o saiba, um Deus que não teme se deixar encontrar cobrindo-se de anonimato quando qualquer ser humano, crente ou não, acolhe qualquer outro ser humano, crente ou não. É um Deus que se descobre no “murmúrio de uma brisa leve” (1Rs 19,12) e não no furacão, no raio, nos tremores de terra, nos tsunamis, nos tanques, na violência das ditaduras, na barbárie dos atentados.
Um Deus tão discreto que está presente, mesmo quando não sabemos dele e não sentimos nada dele. Esse Deus é um Deus que é fonte daquilo que há de mais humano no ser humano. É a dimensão máxima da minha própria humanidade. A minha esperança é de que esse Deus desperte no nosso coração o desejo de encontrá-lo, de uma forma totalmente diferente daquilo que poderia fazer, do alto da sua grandeza, um Deus soberano fixado no absoluto. Nós somos responsáveis pelos traços do seu rosto quando falamos dele. Todo o resto pertence a ele.
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Falar de Deus quando Deus não interessa mais a ninguém. Artigo de Alain Durand - Instituto Humanitas Unisinos - IHU