16 Março 2020
A crise do coronavírus levanta sérias questões médicas, éticas e logísticas. Mas levanta outras questões para as pessoas de fé. Por isso, gostaria de oferecer alguns conselhos da tradição cristã, da espiritualidade inaciana e da minha própria experiência.
O comentário é do jesuíta estadunidense James Martin, S.J., colunista da revista America, consultor do Dicastério para a Comunicação do Vaticano e autor, em português, de “Jesus: a peregrinação” (Ed. Harper Collins) e “A Sabedoria dos Jesuítas para (quase) Tudo” (Ed. Sextante).
O artigo é publicado por America, 13-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A pandemia de coronavírus está confundindo e assustando centenas de milhões de pessoas. Isso não é uma surpresa. Muitas pessoas ao redor do mundo estão doentes, e muitas outras morreram. A menos que a situação mude drasticamente, muitas mais adoecerão e morrerão em todo o mundo.
Esta crise levanta sérias questões médicas, éticas e logísticas. Mas levanta questões adicionais para as pessoas de fé. Por isso, gostaria de oferecer alguns conselhos da tradição cristã, da espiritualidade inaciana e da minha própria experiência.
Isso não significa que não haja nenhum motivo para se preocupar ou que devamos ignorar os bons conselhos dos profissionais médicos e dos especialistas em saúde pública.
Mas pânico e medo não vêm de Deus. Calma e esperança, sim. E é possível responder a uma crise com seriedade e deliberação, mantendo um senso interior de calma e de esperança.
Santo Inácio Loyola, o fundador dos jesuítas, costumava falar sobre duas forças em nossas vidas interiores: uma que nos afasta de Deus, que ele rotulou de mau espírito e que “causa uma ansiedade atormentadora, entristece e cria obstáculos. Desse modo, perturba as pessoas com falsas razões destinadas a impedir seu progresso”.
Soa familiar? Não dê crédito a mentiras ou rumores, nem ceda ao pânico. Confie no que os especialistas médicos lhe dizem, não naqueles que temem mais. Há uma razão pela qual Satanás é chamado de “Príncipe da Mentira”.
O pânico, ao confundir e assustar você, afasta-o da ajuda que Deus quer lhe dar. Ele não vem de Deus. O que vem de Deus? Santo Inácio nos diz: o Espírito de Deus “desperta coragem e força, consolação, inspiração e tranquilidade”. Portanto, confie na calma e na esperança que você sente. Essa é a voz a ser ouvida.
“Não tenham medo!”, como disse Jesus muitas vezes.
Outro dia, um amigo me disse que, quando um chinês idoso entrou em um vagão do metrô na cidade de Nova York, o vagão esvaziou, enquanto as pessoas começaram a gritar contra ele, culpando o seu país por espalhar o vírus.
Resista à tentação de demonizar ou de criar um bode expiatório, que aumenta em tempos de estresse e de escassez. A Covid-19 não é uma doença chinesa; não é uma doença “estrangeira”. Não é “culpa” de ninguém.
Da mesma forma, as pessoas que são infectadas não têm culpa. Lembre-se de que Jesus foi perguntado sobre um homem cego: “Quem pecou, para que este homem nascesse cego?”. A resposta de Jesus: “Ninguém” (Jo 9,2). A doença não é uma punição. Então não demonize e não odeie.
Muitas coisas foram canceladas por causa do coronavírus. O amor não é uma delas.
Esta pandemia pode ser um longo fardo; alguns dos nossos amigos e familiares podem ficar doentes e talvez morrer. Faça o que puder para ajudar os outros, especialmente os idosos, os deficientes, os pobres e os isolados. Tome as precauções necessárias; não seja imprudente e não se arrisque a espalhar a doença, mas também não esqueça o dever cristão fundamental de ajudar aos outros. “Eu estava doente, e você veio me visitar”, disse Jesus (Mt 25).
E lembre-se de que Jesus viveu durante um tempo em que as pessoas não tinham acesso nem aos cuidados médicos mais rudimentares; portanto, visitar os doentes era tão perigoso, senão até mais, do que hoje. Parte da tradição cristã é cuidar dos doentes, mesmo com algum custo pessoal.
E não feche seu coração aos pobres e àqueles que não têm nenhum serviço de saúde, ou o têm de modo limitado. Os refugiados, os sem-teto e os migrantes, por exemplo, sofrerão ainda mais do que a população em geral. Mantenha seu coração aberto para todos os necessitados. Não deixe sua consciência ser infectada também.
As Igrejas Católicas em todo o mundo estão fechando; missas e outros serviços paroquiais estão sendo cancelados por muitos bispos. Essas são medidas prudentes e necessárias, voltadas a manter as pessoas saudáveis.
Mas elas têm um custo: para muitas pessoas, isso retira uma das partes mais consoladoras das suas vidas – a missa e a Eucaristia – e as isola ainda mais da comunidade em um momento em que elas mais precisam de apoio.
O que se pode fazer? Bem, existem muitas missas televisionadas e transmitidas ao vivo, assim como outras transmitidas pelo rádio. Mas, mesmo que você não consiga encontrar uma, você pode rezar por conta própria. Ao fazê-lo, lembre-se de que você ainda faz parte de uma comunidade.
Há também a longa tradição na nossa Igreja de fazer uma “comunhão espiritual”, quando, caso não possa participar pessoalmente da missa, você se une a Deus em oração.
E seja criativo. Você pode meditar o Evangelho do domingo por conta própria, consultar um comentário bíblico sobre as leituras, reunir sua família para conversar sobre o Evangelho ou ligar para os amigos e compartilhar suas experiências de como Deus está presente em você, mesmo em meio a uma crise.
Os cristãos perseguidos na Igreja primitiva rezavam e compartilhavam sua fé nas catacumbas, e nós podemos fazer o mesmo. Lembre-se de que Jesus disse: “Onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). Lembre-se também de que a Igreja não é um edifício. É a comunidade.
Muitas pessoas, especialmente as doentes, podem sentir uma sensação de isolamento que agrava seu medo. E muitos de nós, mesmo não estando infectados, conhecerão pessoas que estão doentes e até podem morrer. Então a maioria perguntará naturalmente: por que isso está acontecendo?
Não existe uma resposta satisfatória para essa pergunta, que, em sua essência, é a questão de por que o sofrimento existe, algo que santos e teólogos ponderaram ao longo dos séculos. No fim das contas, é o maior dos mistérios. E a pergunta é: você pode acreditar em um Deus que você não entende?
Ao mesmo tempo, sabemos que Jesus entende o nosso sofrimento e nos acompanha do modo mais íntimo. Lembre-se de que, durante seu ministério público, Jesus passou muito tempo com os doentes. E, antes da medicina moderna, quase qualquer infecção poderia matá-lo. Assim, a expectativa de vida era curta: apenas 30 ou 40 anos. Em outras palavras, Jesus conhecia o mundo da doença.
Jesus, então, entende todos os medos e preocupações que você tem. Jesus entende você, não apenas porque ele é divino e entende todas as coisas, mas porque ele é humano e experimentou todas as coisas. Vá ao encontro d’Ele em oração. E confie que Ele ouve você e está com você.
Confie nas minhas orações também. Vamos superar isto juntos, com a ajuda de Deus.
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A fé em tempos de coronavírus. Artigo de James Martin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU