24 Novembro 2020
Em um longo e abrangente livro-entrevista, papa Francisco fala publicamente sobre a perseguição aos uigures na China, declara seu apoio aos protestos por justiça racial, pronuncia-se contra aqueles que rejeitam as restrições da pandemia de coronavírus e faz um chamado pela renda básica universal.
A reportagem é de Colleen Dulle, publicada por America, 23-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O livro “Let Us Dream”, que será publicado pela Simon & Schuster em 1º de dezembro (No Brasil o livro será publicado com o título “Vamos sonhar juntos”, pela editora Intrínseca, na mesma data), é produto de uma série de conversas entre o Papa e o seu biógrafo Austen Ivereigh. É uma longa reflexão sobre as necessárias mudanças que o Papa vê para o mundo pós-covid. Nesse contexto que ele se expressa sobre diversos temas polêmicos.
Descrevendo que só se pode ver realmente o mundo olhando para as pessoas marginalizadas, Francisco pede para se pensar os desafios enfrentados por essas pessoas, para que não se caia em uma visão abstrata dos problemas do mundo e que paralisa devido ao tamanho destes. Nessa seção, ele reconhece a condição dos uigures pela primeira vez publicamente, dizendo, “eu penso frequentemente nas pessoas perseguidas: os rohingya, os pobres uigures, os yazidis”. O silêncio prévio do Papa sobre os uigures foi interpretado como não querer comprometer o acordo da Santa Sé com a China, cujo foco está na nomeação de bispos.
O Papa também falou favoravelmente diversas vezes sobre os protestos por justiça racial que emergiram depois do assassinato de George Floyd, em maio, nos EUA. Ele contrastou esses protestos com os que se opõem ao lockdown, afirmando que estes “são vítimas somente em suas imaginações: aqueles que reclamam, por exemplo, que serem forçados a usar máscara é uma injustificada imposição do Estado, já esqueceram ou não se importam com aqueles que não podem contar, por exemplo, com a seguridade social ou que já perderam seus empregos”. O Papa recebeu críticas por aparecer frequentemente sem máscara durante a pandemia. Descrevendo pessoas que “vivem de queixas” e consideram apenas seus próprios problemas, ele diz: “É a incapacidade de ver que nem todos temos as mesmas possibilidades disponíveis para nós”. Ele continua:
“Você nunca encontrará essas pessoas protestando pela morte de George Floyd ou participando de uma manifestação porque há favelas onde as crianças não têm água ou educação, ou porque há famílias inteiras que perderam sua renda. Você não os encontrará protestando que as quantias surpreendentes gastas no comércio de armas poderiam ser usadas para alimentar toda a raça humana e educar todas as crianças. Sobre tais assuntos eles nunca protestariam; eles são incapazes de sair de seu mundinho de interesses”.
Francisco posteriormente descreve o lugar de “uma indignação saudável” em unir as pessoas por uma causa comum, sem transformar tal causa em uma ideologia – um sistema estrito de crenças que, na visão de Francisco, acaba impondo uma uniformidade e falta de diversidade de opinião e podem ser vítimas de servir a um partido político ou figura, em vez de uma pessoa comum que defende essa causa. “Conhecer-se como povo é ter consciência de algo maior que nos une, algo que não se reduz a uma identidade jurídica ou física compartilhada. Vimos isso nos protestos em reação ao assassinato de George Floyd, quando muitas pessoas que de outra forma não se conheciam foram às ruas para protestar, unidas por uma indignação saudável”, disse o Papa no capítulo “A time to act” (“Um tempo para agir”, em tradução livre).
Na seção final do livro, Francisco diz: “Acredito que é hora de explorar conceitos como a renda básica universal (RBU), também conhecida como ‘o imposto de renda negativo’: um pagamento fixo incondicional a todos os cidadãos”. Em abril, Francisco disse que “pode ser a hora de se considerar um salário básico universal”, mas uma autoridade do Vaticano disse então que o Papa não quis dizer “renda básica universal”. A revista America entrou em contato com Austen Ivereigh e o Vaticano para obter novos esclarecimentos.
O Papa descreve os vários benefícios que vê em tais pagamentos incondicionais, incluindo a compensação de cuidadores não pagos e “trabalhadores informais”, permitindo que as pessoas recusem trabalho indigno e, assim, reformulando as relações de trabalho, removendo “o estigma do assistencialismo” e permitindo que as pessoas combinem trabalho com serviço comunitário.
Francisco destaca o trabalho de economistas como Mariana Mazzucato e Kate Raworth ao impactar seu pensamento sobre as melhores maneiras de construir uma economia mais justa. “Será que nesta crise a perspectiva que as mulheres trazem é a que o mundo precisa neste momento para enfrentar os desafios que estão por vir?”, pergunta o Papa. Ele aponta para o sucesso que as nações com líderes femininas tiveram no controle da pandemia do coronavírus e descreve seus esforços para colocar mais mulheres em posições de liderança no Vaticano.
Falando sobre a nomeação de seis mulheres para o Conselho de Economia do Vaticano, Francisco diz: “Eu escolhi essas mulheres em particular por causa de suas qualificações, mas também porque acredito que as mulheres em geral são muito melhores administradoras do que os homens” porque elas fazem a maior parte da organização dia-a-dia em seus empregos e famílias. “Eles entendem melhor os processos, como levar os projetos adiante”.
O Papa diz que quer colocar as mulheres em uma posição em que possam mudar a cultura do Vaticano, mas adverte, como costuma fazer, contra a “clericalização” das mulheres – isto é, dizendo que mulheres não serão iguais até que elas sejam ordenadas sacerdotes.
Seguindo o método “Ver, julgar, agir” popular no ensino social católico latino-americano, o livro é dividido em três partes: “A Time to See” (“Um tempo para ver”), “A Time to Choose” (Um tempo para escolher) e “A Time to Act” (Um tempo para agir). O Papa orienta o leitor ao ver as injustiças que foram exacerbadas pela pandemia e os pecados em que estão enraizadas. Ele descreve a tomada de decisões através da tradição jesuíta de “discernimento de espíritos”, observando onde Deus está trabalhando e onde o que Santo Inácio chama de “espírito maligno” está trabalhando. Em “A Time to Act”, ele exorta o leitor a não voltar ao normal após a pandemia, mas a trabalhar pela mudança pessoal e estrutural.
Ao contrário da recente encíclica de Francisco “Fratelli Tutti”, que diagnosticou os problemas que ele vê na sociedade, o livro-entrevista trata mais “do próprio processo de transformação: como acontece a mudança histórica, como resistimos ou abraçamos esse processo: a dinâmica da conversão”, escreve Ivereigh no epílogo.
O papa Francisco discute o que chama de “personal covids” – às vezes que o obrigaram a parar e reconsiderar sua trajetória, que ele acredita ser o que a pandemia obrigou cada pessoa a fazer. Ele descreve como sua doença pulmonar quando jovem, que resultou na remoção de parte de um de seus pulmões, o forçou a considerar o quão dependente ele era de seus cuidadores. Também lhe deu tempo, disse ele, para considerar sua vocação para os jesuítas entre as outras ordens religiosas que ele vinha considerando.
Ele também fala sobre o que outros chamaram de “exílio” em Córdoba, a 700km de Buenos Aires, depois de servir como provincial jesuíta durante a “Guerra Suja” do país. Foi um momento difícil para o então padre Jorge Bergoglio, que ele comparou a ser colocado no banco durante uma partida de futebol. Ele passava a maior parte do tempo orando e ouvindo confissões, o que, segundo ele, o ajudava a ter paciência. Ele também leu por acaso uma história dos papas em 37 volumes. “De onde estou agora, não consigo deixar de me perguntar por que Deus me inspirou a lê-los”, diz Francisco. “Era como se o Senhor estivesse me preparando com uma vacina. Depois de conhecer a história papal, não há muito que se passe na Cúria do Vaticano e na Igreja hoje que possa me chocar. Tem sido muito útil para mim!”.
Francisco fala livremente e com humor ao longo do livro, alternando entre anedotas pessoais, instruções jesuítas sobre o discernimento e apelos específicos para mudança social. Francisco vê a pandemia como um tempo para contemplação e conversão, e ele vê o horizonte de um mundo pós-pandêmico como um tempo para agir para mudar a sociedade.
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Em nova entrevista, papa Francisco fala sobre uigures, George Floyd e Renda Básica Universal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU