27 Outubro 2020
O Sínodo para a Amazônia tem sido considerado por muitos como o primeiro grande evento eclesial em que as mulheres tiveram um papel importante. As 35 mulheres presentes na Assembleia Sinodal foram a voz de tantas mulheres que “tiveram um papel fundamental na construção do processo sinodal, uma vez que foram elas as que mais contribuíram no processo a partir das escutas”.
A entrevista é de Luis Miguel Modino.
Uma dessas mulheres foi Rose Bertoldo, religiosa do Imaculado Coração de Maria, que desde 2012 vive em Manaus, onde trabalha principalmente no combate do tráfico de pessoas e a exploração sexual de crianças e adolescentes. Segundo ela, “esse processo sinodal, ele tem muito nos ajudado e contribuído para que essa presença das mulheres ganhe um novo vigor, ganhe uma nova força na vida da Igreja”. Foram as mulheres quem mais ajudaram a “trazer presente essas realidades de violação de direitos, tanto os direitos humanos como os direitos da natureza”.
Na Amazônia, as mulheres “se comprometem muito no cuidado da vida no chão da Amazônia, principalmente onde a vida é mais ferida, é mais fragilizada”, segundo a auditora sinodal. Lembrando da Assembleia Sinodal, a religiosa enfatiza que “o Papa Francisco, a gente percebia essa grande valorização a partir de cada colocação das mulheres”, ele tem sido alguém que tem dado “essa abertura para essa participação maior das mulheres”. Agora, neste tempo de pós-sínodo, onde as mulheres contribuíram muito para dar visibilidade às propostas do Sínodo, é tempo de “investir na formação das lideranças mulheres, principalmente das mulheres mais jovens”, começando dos pequenos espaços.
Estamos completando um ano da Assembleia Sinodal do Sínodo para a Amazônia, onde diferentes vozes têm afirmado o papel fundamental das mulheres. Como mulher participante nessa assembleia, qual foi realmente esse papel das mulheres?
Várias dimensões se configuraram de particular importância, mas o que eu destaco é a presença e participação ativa das mulheres em todo o processo sinodal, no processo de escuta e de construção, porque as mulheres tiveram um papel fundamental na construção do processo sinodal, uma vez que foram elas as que mais contribuíram no processo a partir das escutas. Mas o legado que fica para a história da Igreja, não só da Amazônia, mas da Igreja universal, é essa presença afetiva e efetiva nas comunidades.
Durante todo esse processo sinodal, as mulheres contribuíram para tirar do anonimato essa presença feminina dentro da Igreja. Nós mulheres estamos muito silenciadas, e também nos deixamos silenciar. Esse processo sinodal, ele tem muito nos ajudado e contribuído para que essa presença das mulheres ganhe um novo vigor, ganhe uma nova força na vida da Igreja. A partir da assembleia sinodal, desse processo todo, as mulheres têm discutido mais essa presença na Igreja, e tem trazido à tona para outros atores, inclusive os companheiros homens, para discutir e repensar esse papel das mulheres nas comunidades. Sem as mulheres, as comunidades não teriam o dinamismo que hoje tem.
(Foto: Luis Miguel Modino)
Qual é realmente o papel das mulheres nas comunidades e na Igreja amazônica?
Um dos papéis fundamentais que as mulheres exercem, é o cuidado da vida, que perpassa todas as dimensões, social, política, econômica. Mais do que nunca, elas têm contribuído muito para trazer presente essas realidades de violação de direitos, tanto os direitos humanos como os direitos da natureza. Esse é o grande papel das mulheres hoje, esse cuidado. Se a gente for ver, todo o processo de escuta, as mulheres foram as que mais trouxeram essa questão da vida violada, a vida das mulheres, das meninas, das juventudes, mas também a vida violada da Mãe Terra, da natureza.
Essa é uma das questões que as mulheres têm contribuído muito nesse processo, e dão também esse novo enfoque para a vida da Igreja. Muitas realidades que eram silenciadas com relação às mulheres dentro da Igreja, elas trazem presentes e colocam novamente em pauta, para que essas questões sejam discutidas, como por exemplo a questão dos ministérios, o diaconato feminino.
O número de mulheres na Assembleia Sinodal era mais ou menos 10% do total, podemos dizer que essa voz das mulheres é um passo importante para um futuro reconhecimento e participação das mulheres em futuros eventos da Igreja?
Com certeza, o Papa Francisco, ele tem dado essa grande contribuição na Igreja, essa abertura para essa participação maior das mulheres. A gente fala de uma Igreja que sempre foi muito fechada a essa questão da participação das mulheres nos espaços institucionais da Igreja, e o Papa Francisco tem essa abertura. Ainda falta muito, o Papa Francisco é um homem muito sensível, muito aberto, mas ainda também tem um certo medo, um certo receio com relação a isso. Cabe a nós, mulheres, buscar esses espaços, lutar por esses espaços, porque na história da Igreja, na história da humanidade, as mulheres nunca ganharam nada de graça, sempre foi conquista, sempre foi muita luta.
O Documento Final do Sínodo e a Querida Amazônia mostram essa presença e grande contribuição das mulheres. Primeiro, as mulheres trazem para a Assembleia Sinodal e para todo o processo esse grande conhecimento, as mulheres conhecem o território, as mulheres conhecem as realidades, e as mulheres ajudam a construir esse conhecimento. Uma outra dimensão muito forte desse processo todo, é que as mulheres, no chão da Amazônia, elas têm se apropriado muito das realidades, das realidades de violação de direitos, das realidades de conquistas, mas sobretudo das realidades onde a vida é ferida. Essa apropriação tem dado uma voz muito grande a muitas outras mulheres que há tempo já estavam silenciadas. Isso ajuda a dar visibilidade a toda essa realidade.
Uma outra dimensão que tem contribuído muito essa presença das mulheres, em todo o processo e na Assembleia Sinodal, é a dimensão do compromisso. As mulheres é que tem uma grande responsabilidade, que se comprometem muito no cuidado da vida no chão da Amazônia, principalmente onde a vida é mais ferida, é mais fragilizada, e o cuidado com a natureza. Isso ficou muito mais explícito, neste ano, depois da Assembleia Sinodal, com a pandemia do coronavírus, as mulheres foram as mais afetadas, mas foram as mulheres quem mais se sensibilizaram e estão cuidando da vida nesse tempo. Essa dimensão do cuidado, do compromisso, a partir das suas pequenas comunidades, dos seus territórios.
(Foto: Luis Miguel Modino)
Em algum momento, vocês como mulheres se sentiram constrangidas pelos homens que participaram da Assembleia Sinodal, ou houve um tratamento de igual para igual entre homens e mulheres?
Eu não digo que a gente se sentiu constrangida, em momento nenhum se sentiu, porque a gente também, cada proposta que cada uma das mulheres levou, a gente estava muito empoderada, estava muito portadora dos conhecimentos que levávamos para a Assembleia Sinodal. Mesmo que a gente sentisse que alguns padres sinodais não concordassem, mas a gente também se sentia muito respeitada nas colocações que cada uma fazia.
Por parte do Papa Francisco, a gente percebia essa grande valorização a partir de cada colocação das mulheres. As mulheres foram as que mais trouxeram as realidades e situações que ferem a vida na Amazônia, e que muito contribuiu, não só para dar visibilidade, mas para que as propostas fossem colocadas no Documento Final do Sínodo e aprovadas por todos os padres sinodais. Havia uma grande articulação entre nós mulheres, quando o grupo não estava sendo fiel às escutas, a gente retomava com muita consciência e contribuía para que o grupo se mantivesse fiel a tudo aquilo que veio das bases. Mesmo nos círculos menores de trabalho, a gente buscava aliar-se aos padres sinodais para a aprovação das propostas.
Você falava que ainda às vezes o Papa Francisco tem certo medo diante de algumas coisas. Uma das polêmicas durante a Assembleia Sinodal foi o voto feminino, de fato as mulheres que estavam na Assembleia fizeram um pedido por escrito ao Papa para poder votar, que não foi aprovado. Mesmo sem ser aprovado, isso pode contribuir em futuras decisões dentro da Igreja?
Um dos grandes legados que as mulheres deixaram para a Igreja universal, a partir da realidade da Amazônia, é essa abertura para os futuros sínodos. As mulheres, cada vez mais, vão reivindicar e vão ter esses espaços. Não porque ele é dado de graça, mas porque a gente deixa para a história da Igreja, não só da Amazônia, mas para a Igreja universal, esse desejo de igualdade, é uma questão de justiça para com as mulheres.
A gente não está reivindicando, nem está pedindo nenhum favor, a gente quer aquilo que é de direito das mulheres, que é essa dimensão também do voto igual aos homens. Não só os padres sinodais têm o direito de votar, mas todos nós, inclusive nós mulheres temos esse direito, a gente não está pedindo nenhum favor, mas o direito, que seja essa dimensão da igualdade, da justiça, uma vez que em todo o processo, a contribuição das mulheres foi muito efetiva.
Mas ao mesmo tempo, a gente vê avanços. Na Fratelli Tutti, o Papa Francisco diz que é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples fato de ser mulher, e também em outra parte da encíclica, ele afirma que nas sociedades ainda falta clareza na hora de debater sobre que as mulheres têm a mesma dignidade, idênticos direitos que os homens. Nessa tensão entre avanços e medos, podemos dizer que o Papa Francisco tem ajudado decisivamente para que as mulheres sejam mais empoderadas dentro da Igreja?
Em toda a história, não só da Igreja, mas da humanidade, sempre houve essa grande desigualdade das mulheres. Em muitas sociedades houve muitos avanços, outras ainda precisam avançar muito, mas é um processo. O Papa Francisco, com toda a sua sensibilidade, tem contribuído e chamado muito a atenção nos espaços da Igreja, inclusive abrindo muito a participação das mulheres em serviços e instâncias de poder, por exemplo no Vaticano, que antes não havia.
Esses são passos que nos animam e ao mesmo tempo nos desafiam para que a gente continue a se qualificar, continue lutando por esses espaços, porque esses espaços, eles não são só atribuídos aos homens, eles também são atribuídos às mulheres. Cabe também a nós continuarmos lutando para ocupar esses espaços.
(Foto: Luis Miguel Modino)
No caso da Igreja da Amazônia, um pequeno avanço, ou um grande avanço, a gente não sabe até que ponto isso vai marcar o futuro, é a presença de algumas mulheres na Conferência Eclesial da Amazônia. Além da CEAMA, como as mulheres podem ajudar na implantação das propostas do Sínodo na Igreja da Amazônia?
Nesse espaço do pós-sínodo, as mulheres é que tiveram uma presença muito forte para levar para as bases todo esse processo sinodal. Mesmo nesse tempo de isolamento, as mulheres contribuíram muito, não só nessa dimensão mais virtual, de dar visibilidade às propostas do Sínodo, de tornar conhecido o Documento Final e também a Querida Amazônia. Mas são elas que estão lá na linha de frente, dirigindo as comunidades, mesmo com esse processo de isolamento.
Com a criação da Conferência Eclesial da Amazônia, as mulheres têm um papel fundamental, a partir dos espaços eclesiais, de contribuir para dar visibilidade ao Documento Final e a Querida Amazônia, mas sobretudo colocar as propostas em prática. A gente sabe que a grande maioria da presença e participação nas comunidades, é das mulheres. Então a importância de investir na formação das lideranças mulheres, principalmente das mulheres mais jovens, para contribuir na formação e na implementação das propostas do Sínodo.
A gente tem um grande caminho pela frente, mas a gente tem que começar dos pequenos espaços. O empoderamento das mulheres, que já vem sendo feito nas pequenas comunidades, ele precisa ser reforçado, a gente precisa muito investir nessa formação, porque são as mulheres que acabam reproduzindo muitas vezes essa dimensão patriarcal e machista. A gente precisa trabalhar essa questão nos grupos de lideranças, na formação, para que as mulheres também tenham essa presença como diferencial, mais conscientes de seu papel, para ajudar também na formação de outras lideranças, a partir dessas realidades novas que o Documento Final do Sínodo e a Querida Amazônia propõem para a Igreja da Amazônia.
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“O Sínodo contribuiu muito para que a presença das mulheres ganhe vigor na vida da Igreja”. Entrevista com Rose Bertoldo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU