15 Outubro 2020
A reflexão teológica latino-americana partiu sempre da realidade. Por este motivo, ao longo deste mês de outubro, Ameríndia organizou uma série de encontros virtuais com o tema: "Teologia da Libertação em tempos excepcionais de crise e esperança". O último encontro, com uma ampla participação, refletiu sobre "A desigualdade social na América Latina e no Caribe: o Deus da história e a realidade que nos desafia", com contribuições de Elio Gasda, Raúl Aramendy, Evelyn Martínez e Francisco Orofino.
A reportagem é de Luis Miguel Modino.
Partindo de uma visão bíblica, Orofino refletiu sobre a atual recuperação da vocação profética, algo que considera a principal luta do Papa Francisco pela Igreja Católica. Nesta proposta do Papa, estão presentes a fraternidade (Fratelli Tutti) e a ecologia (Laudato Si'), na opinião do biblista brasileiro. A partir do livro do Êxodo, especificamente Ex 3:7, ele afirmou que é necessário estar atento ao grito, uma vez que "cada profeta ou profetisa é uma resposta de Deus ao grito de alguém". Nesse versículo, enfatizava os verbos presentes: ver, ver, ouvir, conhecer, descer, libertar, elevar. A partir daí, fez uma análise do significado desses verbos hoje.
A questão que Orofino colocou foi: Quem está gritando hoje? A resposta a esta pergunta tem vindo a evoluir nos últimos anos, desde que começou por se pensar que eram os pobres que gritavam, algo que muda no Documento de Aparecida, que nos mostra que são os excluídos, os mendigos, os descartados, os caídos, que estão gritando. Hoje é o Planeta que grita, como o Papa Francisco nos faz ver em Laudato Si', algo que se tornou ainda mais claro com a pandemia e que apela a propostas concretas para responder a esse grito. Por esta razão, declarou que "hoje a ação profética é procurar formas de compreender o que a pandemia nos está dizendo".
Finalmente, com base numa análise do segundo capítulo de Fratelli Tutti, refletiu sobre as personagens que aparecem na parábola do Bom Samaritano, perguntando-se: Quem são os ladrões de hoje? Quem são os indiferentes como o sacerdote e o levita? Quem se coloca ao serviço dos pobres e dos caídos como o samaritano? Na sua reflexão destacou a opção que o Papa Francisco fez desde o início do seu pontificado pelos refugiados, algo que mostrou na sua viagem a Lampedusa, a primeira do seu pontificado, ou a Lesbos, onde levou consigo uma família de refugiados para o Vaticano.
A desigualdade social na América Latina e a crise dos cuidados foi o tema apresentado por Evelyn Martinez, que denunciou a crise de sustentabilidade presente na nossa sociedade atual, com base na ideia do progresso colonial moderno. Em resposta, ela propôs a alternativa da economia dos cuidados e da economia solidária. Na opinião da jovem salvadorenha, estamos perante uma crise ecológica, reprodutiva e de cuidados, que é evidente na impossibilidade da maioria da população satisfazer as necessidades vitais (fisiológicas, cuidados e proteção) que sustentam o ciclo natural da vida humana. Isto leva à deterioração das condições que permitem o cuidado da vida, dos ecossistemas e dos ciclos naturais, dos recursos e da ética dos cuidados.
Evelyn Martínez comparou a economia atual a um iceberg, uma imagem muito presente na sociedade latino-americana, onde a parte invisível da economia, os empregos não remunerados, é claramente maior do que a parte visível. Falou de um mundo dual, onde existe um sujeito universal, masculino, proprietário, branco, alfabetizado, pai, heterossexual, que ocupa a esfera pública e o espaço político, e um sujeito minoritário, feminino, típico das sexualidades não-normativas, negro, indígena, que ocupa a esfera privada e íntima e o espaço doméstico. Além disso, estamos dentro de um sistema económico em que o trabalho está desigualmente distribuído, distinguindo entre a economia produtiva e a economia de cuidados, que se preocupa com a sustentabilidade da vida.
A partir daí, Evelyn Martinez fez uma crítica ao que chamou o homos economicus, com base na teoria económica ortodoxa, que separava o privado do público, na racionalidade instrumental, num sujeito econômico homogêneo, a-histórico, individualista, maximizador, interessado, egoísta, competitivo e desligado da comunidade, que não reconhece reciprocidade, solidariedade e cuidado. Este modelo pode ser reconhecido na maioria dos bilionários que dominam o mundo, que comandam um sistema em que a acumulação de capital e o crime se situam como uma forma estruturante de política e economia. Nesta realidade, uma economia terceirizada, baseada em atividades extrativas, causando um elevado número de feminicídios. Contra esta realidade, propus uma economia do cuidado, solidária e feminista.
Devemos estar conscientes de que "é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do sistema", uma frase de Mark Fisher, que serviu de ponto de partida para a reflexão de Elio Gasda, que analisou a realidade social que nos desafia, com base na desigualdade social. Esta desigualdade faz parte do sistema e aumentou durante a pandemia, cujos sinais são a devastação da Amazónia e a destruição do trabalho, o que faz explodir a miséria nas periferias. Na opinião do jesuíta, “o capitalismo não descansa, impulsionado pelo capital financeiro, o seu objetivo é ganhar mais dinheiro e acumula-lo em poucas mãos”.
O capitalismo criou as suas narrativas para legitimar a desigualdade, disse Gasda, que é ideológica e política. De acordo com ele, "as ideologias são muito poderosas e desempenham um papel central na perpetuação da desigualdade”. É por isso que diz que "os ideais de igualdade e fraternidade são incompatíveis com o capitalismo", que nunca procurou "o bem comum, a luta contra a pobreza ou a democracia". Nesse sentido, o Papa Francisco diz que este sistema não é sustentável, afirmando na Evangelii Gaudium que "uma nova tirania invisível foi estabelecida... Os interesses do mercado divinizado tornam-se uma regra absoluta".
Estamos perante um capitalismo de extremos, no qual "os governos foram entregues a mercados controlados por corporações poderosas", diz o jesuíta. Isto traduz-se na mercantilização extrema de tudo: saúde, educação, água, saneamento, religião. Além disso, somos confrontados com uma concentração extrema de riqueza, o que aumenta a desigualdade, ainda mais com a Covid-19, e um sistema que se esforça por oferecer elevados retornos imediatos aos mais ricos. Neste sentido, Gasda defende que "os vencedores da era pós-pandémica serão as grandes empresas e os seus acionistas. Os habituais. Não haverá uma nova normalidade”.
A isto acresce a perda dos direitos trabalhistas e da previdência, algo que é evidente na América Latina, porque sob o capitalismo, o trabalho é uma mercadoria e com a pandemia reduziu-se ainda mais as condições de trabalho, e o desemprego, a precariedade e a pobreza têm aumentado. De acordo com Gasda, a transição para novos sistemas baseados em infraestruturas de tecnologia digital também acelerou. Outro elemento a ter em conta é a corrupção, que está na base do capitalismo, que sujeita a "política às finanças", como afirma Laudato Si'. Para o jesuíta, "a corrupção é um fenómeno intrínseco a qualquer sistema apoiado pela acumulação de riqueza", chegando ao ponto de afirmar que "o Poder Judicial é a superestrutura que legitima o sistema", uma vez que "a lei é interpretada e aplicada pelos ricos".
Esta desigualdade é crescente, expansiva, e ocupa lugares insuspeitos, na opinião de Raul Aramendy. Na sua opinião, há anos atrás tínhamos pouca capacidade para compreender como funcionava a sociedade, algo que tem vindo a progredir. Segundo o investigador social argentino, a revolução quântica desempenhou um papel importante neste maior conhecimento, o que significou um salto de paradigmas sobre como a vida funciona e o que nos acontece imersos nessa vida.
Na sua opinião, muito poucas pessoas são donos do Planeta enquanto este está sendo destruído, perante a grande totalidade da humanidade que não tem lugar. O escritor argentino falou de quatro cavaleiros do Apocalipse que têm devastado tudo: o neoliberalismo globalizado, a matriz energética, a saúde e as alterações climáticas. Encontramo-nos num sistema que não consegue gerir a desigualdade e a destruição da natureza, o que nos leva a viver uma vida tão digitalmente quanto possível e a um crescimento do fascismo entre a população, afirmando que não é por acaso que Trump, Bolsonaro e muitos outros estão presentes.
Face a esta realidade, apelou a enfrentar estes quatro cavaleiros desde a esperança, o que deveria nos levar a ser sal no mundo como cristãos. Para isso propõe aprender a pensar e agir sistemicamente, incorporar o pensamento holístico, compreender que o todo é mais do que a soma das partes e que o todo está em cada uma das partes, tornar realidade uma rede de redes, considerando a organização em rede como um instrumento fundamental na transformação do mundo.
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Elio Gasda: “Os ideais de igualdade e fraternidade são incompatíveis com o capitalismo” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU