28 Julho 2020
"Por una diplomacia de la modestia" é como se chama o ensaio de Juan Gabriel Tokatlian, incluído no e-book La vida en suspenso, que Siglo XXI organizou para baixar em seu site online. Coube a Tokatlian, especialista em relações internacionais e vice-reitor da Universidade Torcuato Di Tella, nesta série de escritos urgentes, refletir sobre o papel que aguarda a Argentina em um mundo que não será mais o mesmo.
Doutor em Relações Internacionais pela Universidade John Hopkins, Tokatlian viveu 18 anos na Colômbia e conhece profundamente as questões políticas da particularidade latino-americana no mapa global. Para esboçar o cenário enfrentado pela Argentina, sua análise parte das promessas não cumpridas do período pós-Guerra Fria, que a pandemia colocou em fatal evidência.
Tokatlian propõe um programa "maquiavélico" de moderação e flexibilidade para restaurar a relação com o Brasil, que avalia como o desafio urgente da política externa de Alberto Fernández. Uma política que embora não tenha tido tempo para se desenvolver, julga como sóbria. A esse respeito, afirma: “Não é tempo para reações exageradas, nem há espaço para ingenuidade".
A entrevista é Fernando García, publicada por La Nación, 25-07-2020. A tradução é do Cepat.
Quais são as prioridades internacionais da Argentina em um contexto de pós-pandemia?
A Argentina enfrenta três grandes desafios. O primeiro tem a ver com essa transição de poder que ocorre gradualmente e se intensifica entre os Estados Unidos e a China. Até alguns anos atrás, os componentes da competição e da colaboração eram a nota predominante e, nessa área, as possibilidades para países como a Argentina eram amplas. Agora, vemos um país que declina agressivamente como os Estados Unidos e outro que sobe assertivamente como a China. A forma como gerenciar essa relação em um espaço cada vez mais estreito vai exigir um alto grau de sofisticação.
O segundo desafio tem a ver com o que poderia ser considerado o DNA da política externa argentina, que teve historicamente três componentes. Um forte apoio ao direito internacional, um alto compromisso com o multilateralismo e uma ênfase no regionalismo. E esta Argentina se encontrará na pós-pandemia com um direito internacional cada vez mais corroído pelo comportamento das grandes potências, com um multilateralismo desgastado e com um regionalismo fragmentado, onde os níveis de cooperação e concertação internacional são baixíssimos. Então, aquele que era o DNA da Argentina encontrará grandes limites para sua projeção e exercício.
O terceiro desafio, o que pode ter mais consequências no curto prazo, é a deterioração das relações com o Brasil. Após os acordos nucleares, os acordos comerciais e o Mercosul, passamos a uma relação de amizade incipiente para agora entrar em um híbrido. Será uma relação muito complicada para a Argentina, que me parece transcender a diplomacia tradicional, a diplomacia do Estado, e exigirá um alto componente da diplomacia cidadã para reconstruir laços, vínculos, entrelaçamentos com a sociedade civil e política brasileira.
Como se organiza essa diplomacia cidadã, como se canaliza?
É preciso ter em mente que muitos dos líderes que construíram aquele grande momento em que foram compostos os pilares da relação hoje são, de ambos os lados, parte de uma geração que está abandonando a política. E se observa há vários anos um baixo nível de interação entre políticos argentinos e brasileiros. Aqueles que tínhamos antes tinham uma relação muito próxima e mobilizavam seus setores. Os da esquerda tiveram contato com seus pares, o mesmo à direita. Havia uma estrutura muito sólida e que respondia a uma situação geracional que viu o nascimento da democracia nos dois países e que gerou a base da interdependência recíproca. Hoje, percebo que somos órfãos de tais tipos de políticos.
Até quando diria que se sustentou esse intercâmbio?
Até há uma década, havia uma empatia e um nível de contato intenso, que vinha diminuindo nos últimos anos. Mas havia também uma comunidade muito grande de cientistas, no campo nuclear, por exemplo, com projetos conjuntos e iniciativas compartilhadas. Afinal, Argentina e Brasil eram dois dos três países que mais investiam em ciência e tecnologia na região.
Mas houve um desmantelamento recíproco nessa frente nos dois países. Na medida em que as economias se tornaram mais primárias, o peso específico dos setores industriais nos dois países foi diminuindo acentuadamente. E essa grande aspiração de cadeias produtivas conjuntas também foi se enfraquecendo, porque esses setores primários não estimulam projetos concorrentes, nem possuem projeções estratégicas semelhantes. Cada um tenta vender mais para a China e aí termina.
Isso se complicou com a chegada de Jair Bolsonaro e o retorno do peronismo ao poder?
Isso já era observado no segundo governo de Dilma Rousseff, muitas das ações e decisões de Bolsonaro são anteriores à chegada de Alberto Fernández. O fato de ter buscado uma relação muito próxima com os Estados Unidos e ter conseguido um status de aliado extra-OTAN aconteceu durante o governo Macri. Devemos repensar como lidar com essa relação, sem dúvida.
Acredito que a iniciativa deve continuar vindo da Argentina, que deve mostrar a centralidade desse vínculo quando o Brasil, mais uma vez, colocar a hipótese da ideia de conflito na América do Sul. Quando se vê o dispositivo militar brasileiro, sabe que esse eixo não é para o sul, mas aponta para a Venezuela. Mas retomar a linguagem do conflito deve chamar a uma reflexão profunda, em uma região com gravíssimos problemas não resolvidos.
Uma saída política e negociada na Venezuela, a ascensão do crime organizado, a importância de não permitir que a América Latina se torne um local de disputa entre os Estados Unidos e a China. São temas em que a histórica ação conjunta da Argentina e do Brasil seria uma âncora de estabilidade.
Você escreveu que a diplomacia argentina deve ser caracterizada por um viés de modéstia e flexibilidade no futuro. Quais ações caracterizariam esse perfil?
Esta não é uma época para exagerar na ação, ou tomar decisões categóricas ou definir políticas a partir de uma lógica amigo-inimigo ou de confrontação. É necessária a modéstia, no sentido de conceber um lugar positivo e ativo do país para deter os níveis de fragmentação da região. O grande paradoxo hoje é que a América Latina é menos gravitante mundialmente, mas, ao mesmo tempo, é um ponto de crescente disputa entre os Estados Unidos e a China.
Quando digo flexibilidade, quero dizer que a Argentina não tem um histórico de gerenciar transições de poder globais com a ductilidade, com a arquitetura institucional necessária para essas transições. Ficamos muito envolvidos na relação com a Grã-Bretanha, enquanto ascendiam os Estados Unidos. Líamos o mundo de uma certa maneira durante a Guerra Fria, o que poderia ser consistente com nossos requisitos, mas cometemos erros que resultaram em fracassos: Malvinas, por exemplo.
Eu postulo uma política externa maquiavélica, porque uso Maquiavel para dizer, como ele, que modéstia, prudência e flexibilidade são elementos virtuosos. Há uma característica que destaco da política externa desse governo, após muitos anos. Pode parecer pequeno para alguns, mas acho interessante que não tenhamos que refundar a política externa ou reinserir a Argentina, nem nada disso. É verdade que essa crise não lhe deu tempo ou opções para agir, mas pelo menos essa intenção não esteve no discurso. Nota-se certa sobriedade e conhecimento dos limites do país.
Conjecturava-se que Mauricio Macri vinha para nos reinserir no primeiro mundo...
Sim, mas a chuva de investimentos se tornou uma tempestade de dívidas. Uma das peculiaridades do governo Macri, desde o início, era uma visão muito otimista do mundo. Ingênua, quase. Confiava na globalização sempiterna, confiava na desregulamentação total e que um papel mais residual do Estado tornasse a Argentina mais atraente no mundo. Tenho a impressão de que quando chega o governo de Alberto Fernández, há um reconhecimento de que o mundo está em uma situação mais complicada, mesmo antes da pandemia. Não há mais espaço ou tempo para ser ingênuo.
Você diz que a pandemia expôs a fraqueza hegemônica da ordem neoliberal. Deveríamos voltar a um modelo de Welfare State?
Desde o final dos anos 1970, vem ocorrendo um processo de desmantelamento do Estado de Bem-Estar no Ocidente. Isso se acelerou com o fim da Guerra Fria, não foi interrompido pela crise de 2008 e se refletiu finalmente em áreas específicas: educação e saúde.
A condução dessa pandemia em muitos países ocidentais, como Grã-Bretanha, Itália, França, Espanha, Estados Unidos e até Canadá, mostra-nos como esse desmantelamento pode se tornar catastrófico, acompanhado por um crescimento da desigualdade.
Em meio a isso, é impossível reivindicar ao mercado, e reaparece a importância do Estado, mesmo em países que anularam seu alcance e penetração. O neoliberalismo está em xeque, mas não morto, embora eu não ache que se torne a fênix que se perpetua em seu voo.
O fim da Guerra Fria abriu uma nova possibilidade para o mundo, cujas promessas acabaram desaparecendo. Acredita que o mundo perdeu uma oportunidade naquele momento?
A ordem pós-Segunda Guerra Mundial se fez com duas potências supremas e tinha como um componente vital a estabilidade. Quando a Guerra Fria termina, o que está colocado no debate é que àquela ordem sejam adicionados componentes que lhe deem maior justiça. Essa foi a agenda inicial: a cúpula do meio ambiente do Rio, em 1992, a cúpula das mulheres, a cúpula de direitos humanos criada pelo Tribunal de Direito Internacional. Viu-se um esforço para que, além da estabilidade, houvesse igualdade, justiça e redistribuição.
Acredito que essa foi a oportunidade perdida para o Ocidente. Os países não moderaram suas ambições, voltaram à lógica dos jogos de poder convencionais e, em 1998, simbolicamente com Kosovo, já se via que a agenda de justiça e igualdade havia sido adiada. A possibilidade de uma ordem que refletisse a ascensão do Sul global foi frustrada. A possibilidade de uma maior equidade foi se evaporando. A maior expectativa de uma justiça internacional se fragilizou quando ficou claro que as ações humanitárias eram estratégias das grandes potências.
Existe margem política e econômica para retornar a um Estado de Bem-Estar Social, como foi concebido em sua origem?
Bom, é uma grande dúvida. Porque as democracias enfraquecidas têm muito pouca capacidade de moldar capitalismos extremos. Hoje, o capitalismo financeiro está em crise, mas não encontra substituto. E a democracia está se deteriorando, mas também não encontra substituto, pois não há muitas alternativas. Este é um caminho muito perigoso, porque não se reconstrói o Estado de Bem-Estar Social, nem se melhora o capitalismo e não se aprofunda a democracia. Estamos entrando em um território no qual proliferam regimes que possuem componentes autoritários misturados às formalidades da democracia. Não percebo que as condições estejam dadas para outra coisa agora.
Dado que a China controlou a pandemia de maneira mais eficaz do que os modelos de liberdade individual, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, pode acontecer que seu modelo político baseado na vigilância seja exportado?
A questão tão ou mais interessante que esta é olhar para os países que se saíram um pouco melhor. A China agiu bem, mas também a Coreia do Sul, que tem um regime menos draconiano. A Nova Zelândia agiu bem, mas não tanto a Austrália. A Alemanha agiu bem, mas não a Grã-Bretanha. O Canadá se saiu um pouco melhor e os Estados Unidos foram péssimos. O que esses exemplos refletem para mim? Que a importância está no regime político ou nos países que foram capazes de desenvolver melhores capacidades estatais?
Quanto menor a deterioração do Estado Social, melhores resultados foram observados. Essa pandemia vai deixar sociedades com grande desconforto, partidos políticos deslegitimados e líderes muito questionados, que vão provocar choques nas democracias. Mas menos por causa da influência do poder chinês, do que por causa da gestão que fizeram dessa crise.
Como sua análise começa no final da Guerra Fria, como avalia o surgimento da palavra “comunismo” nas manifestações antiquarentena?
Que na Argentina ainda exista esse tipo de expressão não é excepcional. Basta ler o comunicado do chanceler brasileiro, no final do ano, dizendo que o principal problema da América do Sul é o comunismo. Também ouvimos isso durante as manifestações no Chile, quando foi dito que faziam parte da vingança do comunismo. Ninguém pode honestamente acreditar que exista um ressurgimento do comunismo no mundo, mas são ideias profundamente enraizadas na América Latina, que foi um laboratório muito forte para o anticomunismo na Guerra Fria. Esses tiques ainda estão presentes.
Algo assim como o Homem do Saco?
Sim, claro. Que também sempre volta.
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“A América Latina é um ponto de disputa entre os Estados Unidos e a China”. Entrevista com Juan Gabriel Tokatlian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU