16 Julho 2020
“Ainda que a emergência do Capital tenha sido necessária para que a capacidade de transformação do Anthropos alcançasse definitivamente o nível geológico, é certo que os processos humanos com decidido poder geológico não foram imediatos ao surgimento do capitalismo, nem tampouco foram completados até o momento. Nem todos os poderes do Anthropos são dominados pelo Capital. Persistem muitas forças culturais que se opõem a ele e que podem mitigar ou (imaginemos) inclusive reverter seu poder destrutivo”, escrevem Raúl García Barrios e Nancy Merary Jiménez Martínez, do Centro Regional de Pesquisas Multidisciplinares da Universidade Nacional Autônoma do México - UNAM, em artigo publicado por Nexos, 13-07-2020. A tradução é do Cepat.
Se como muitos sugerem, as crises sanitária, econômica e climática atuais nos colocam muito perto do fim do mundo conhecido e demonstram com agudez que estamos em um sistema completamente interconectado e fragilmente articulado, refletir sobre os conceitos Antropoceno e Capitaloceno é útil. Por um lado, para alertar que é necessário ajustar a relação entre a forma de vida humana imperante e a natureza, por outro, para especificar como denominar esta etapa da história planetária e atribuir as devidas responsabilidades. A quem culpar pelo desastre: ao Homo sapiens ou ao modo de produção capitalista? Antropoceno ou Capitaloceno?
O conceito de Antropoceno se refere ao poder que a atividade humana adquiriu até se tornar uma força ambiental destrutiva em escala geológica. Ganhou muita importância, formando um campo de debate no qual se discutem quando e como apareceu este poder. Como resultado deste debate, surgiu outro conceito, o Capitaloceno, que pretende substitui-lo. Neste caso, considera-se que o poder destrutivo não provém da atividade humana em abstrato, mas de sua organização capitalista.
Eugene Stoermer e Paul Crutzen empregaram o termo Antropoceno pela primeira vez para descrever as rápidas mudanças que a Terra experimentava devido à presença humana [1]. Alguns anos depois, os membros da União Internacional de Ciências Geológicas votaram de forma unânime pelo reconhecimento oficial do Antropoceno como uma época geológica na história do planeta. Desde então, a comunidade científica das Ciências da Terra utiliza o conceito para se referir às mudanças geológicas, morfológicas e climáticas, produto do domínio da humanidade sobre os principais processos do planeta, sendo este domínio de tal dimensão que conduziu à formação de um novo estrato no registro geológico.
Desde seus inícios, o conceito foi debatido, inclusive por seus partidários que não conseguiram o consenso sobre sua data aproximada de início. Os autores originais sugeriram o nascimento na Revolução Industrial, com a invenção da máquina a vapor na Inglaterra e sua posterior proliferação no mundo, ao que depois se acrescentou a expansão do uso de combustíveis fósseis.
Outros autores, no entanto, destacaram que a contagem do impacto humano deve remontar à revolução neolítica no Oriente Próximo, pois a transição das sociedades nômades para sociedades agrícolas deixou pegadas no registro geológico. E outros autores apontam que foi após a Revolução Industrial, quando ocorreram os impactos humanos mais importantes e a Grande Aceleração [2] permitiu o desenvolvimento da bomba atômica, do plástico, da agricultura industrializada e da mudança climática, ou seja, os fatores técnicos que deram lugar aos sinais estratigráficos permanentes, distinguíveis e medíveis – os cravos dourados –, que identificam e caracterizam o Antropoceno do restante do registro geológico.
Mas o debate sobre o Antropoceno alcançou níveis ainda mais profundos. O que estava originalmente circunscrito a um grupo de cientistas da Terra levantou questionamentos éticos a partir das ciências sociais e as humanidades, pois se pensou que nomear um intervalo da história em referência a uma só espécie – a humana – poderia estimular o antropocentrismo.
Neste contexto, destacou-se que a posição idealista adotada pelos geólogos, ao colocar o Homem (Antrophos) no centro do conceito, reduzia um processo tremendamente complexo a um modelo que homogeneíza a humanidade e abusa da simplicidade. Por outro lado, era preciso reconhecer que nós, seres humanos, somos seres complexos, interna e externamente diferenciados, e em constante desenvolvimento por meio de múltiplas contradições no poder e na (re)produção das diferentes formas de vida. De outro modo seria impossível elucidar quais pessoas ou grupos humanos, e quais tipos de práticas, modelos ou estruturas são responsáveis pela crise que nos conduziu ao Antropoceno.
Mesmo assim, persistiu entre muitos cientistas, tanto naturais como sociais, uma posição que chamaremos ‘acrítica’, que destaca que o Antropoceno é o conceito mais decisivo produzido até agora como alternativa às noções do moderno e da modernidade, e deu a enorme contribuição de colocar diferentes setores acadêmicos em diálogo. Aderem esta visão acrítica aqueles que promovem o Bom Antropoceno [3], que concebe a possibilidade de aumentar o controle humano virtuoso sobre a Natureza.
Pertencem a esta posição:
1.- a agenda do Capitalismo Verde, uma proposta tecnocrata-moral que reinstitucionaliza e reorganiza tanto a natureza humana, como a extra-humana, por meio do desenvolvimento econômico;
2.- os defensores da Geoengenharia, uma tecnociência dirigida primeiro a manipular intencional e em grande escala o clima da terra e depois a transformar, sem nenhum limite, a Terra e tudo o que nela habita.
Acompanhando por estas propostas, um grupo de cientistas sociais considera o Antropoceno como um problema exclusivamente tecnopolítico a ser resolvido no nível global, no marco dos regimes institucionais internacionais, com a governança global e as redes civis transnacionais de defesa ambiental.
Às posições ‘acríticas’ se contrapõem outras, que chamaremos de ‘críticas’, que destacam que as primeiras têm o risco de instrumentalizar o meio ambiente e concentrar o poder e aumentar a desigualdade na resolução da crise ambiental. Para elas, delinear políticas planetárias sem entender os mecanismos de formação e diferenciação das agências e a distribuição do poder entre elas é um chamado à governança de elite, a que surjam tendências profundamente autoritárias e despolitizadoras, e a que se reforcem as desigualdades globais a partir de novas leis internacionais e cosmopolitas.
No marco desta polêmica também ressurgiu o debate pela origem do Antropoceno. A interpretação dominante – ‘acrítica’ – o localiza na Revolução Industrial e na combustão de fósseis. Para os ‘críticos’ isso supõe que o mundo anglo-saxão foi a origem dos processos de transformação do mundo e que as soluções virão daí. Além disso, reforça o viés tecnológico no qual a inovação técnica é o motor da história, a origem da crise e o único mecanismo de solução. Como consequência, insistem em que o início do Antropoceno se localize na década de 50 do século XX, pois só após a Segunda Guerra Mundial se generalizou o modelo de crescimento industrial baseado na combustão fóssil e iniciou a etapa de globalização do capitalismo com impactos decididamente planetários.
O Antropoceno, ao propor uma reflexão da crise ecológica contemporânea sem considerar com cuidado suas mais profundas causas históricas, separa o crescimento econômico de sua base organizacional e omite uma reflexão sobre o capitalismo. Por isso, Moore sugere substituir o termo Antropoceno pelo de Capitaloceno [4], que descreve melhor os impactos humanos concretos sobre a geologia da Terra e reconhece que foram as sociedades capitalistas – baseadas em uma nova forma de organizar a natureza e as novas relações entre o trabalho, a reprodução e as condições de vida – as que desenvolveram as externalidades ambientais mais notáveis da história do planeta.
Um componente central do Capitaloceno é que as condições do desenvolvimento capitalista não podem ser reduzidas ao desenvolvimento tecnológico, nem ao mercado mundial, nem a separação dos meios de produção da força de trabalho como tal. Ao colocar a natureza no centro do pensamento sobre o trabalho e o trabalho no centro de nosso pensamento sobre a natureza, o Capitaloceno permite pensar a crise ecológica mundial de uma maneira mais clara e profunda.
Não convém, no entanto, declarar uma vitória conceitual categórica em favor do Capitaloceno. Ainda que a emergência do Capital tenha sido necessária para que a capacidade de transformação do Anthropos alcançasse definitivamente o nível geológico, é certo que os processos humanos com decidido poder geológico não foram imediatos ao surgimento do capitalismo, nem tampouco foram completados até o momento. Nem todos os poderes do Anthropos são dominados pelo Capital. Persistem muitas forças culturais que se opõem a ele e que podem mitigar ou (imaginemos) inclusive reverter seu poder destrutivo. Enquanto isto ocorrer, o termo Antropoceno manterá seu valor, inclusive para as perspectivas críticas. Talvez (tomara) o futuro imediato veja o crescimento desses poderes e, pelo mesmo, a falta de concretização plena do conceito de Capitaloceno.
[1] Crutzen, Paul J. y Eugene F. Stoermer, “The Anthropocene”, Global Change Newsletter, No. 41, (2000) 17-18.
[2] Steffen, Will., Wendy Broadgate., Lisa Deutsch., Owen Gaffney y Cornelia Ludwig, “The Trajectory of the Anthropocene: The Great Acceleration”, The Anthropocene Review, Vol. 2, No. 1 (2015) 81-98.
[3] Bai, Xuemei., Sandervan der Leeuw., Karen O’Brien., Frans Berkhout., Frank Biermann., Eduardo S. Brondizio., Christophe Cudennec., John Dearing., Anantha Duraiappah., Marion Glaser., Andrew Revkin., Will Steffen., James Syvitski. “Plausible and Desirable Futures in the Anthropocene: A New Research Agenda”. Global Environmental Change, Vol. 39, (2016) 351-362.
[4] Moore, Jason W., Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism, Oakland: PM Press, 2016.
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Antropoceno ou Capitaloceno? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU