26 Mai 2020
Alteração Primata.
Como o mundo que criamos nos está a mudar
Publicamos a resenha, editada por Giulio Pennacchioni, do livro Il corpo dell’Antropocene. Come il mondo che abbiamo creato ci sta cambiando (publicado em português com o título Alteração Primata. Como o mundo que criamos nos está a mudar), de Vybarr Cregan-Reid, Codice Edizioni (2020). Trata-se da tradução italiana de Primate Change: How the world we made is remaking us, lançado em 2018 pela Octopus Publishing Ltd.
A informação é de Alice Dal Gobbo, publicada por Effimera, 21-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Vybarr Cregan-Reid, o autor, atualmente leciona na Universidade de Kent, Inglaterra. Ele trabalha para a BBC e escreve para o Guardian, o Washington Post e outros jornais. Antes desta obra, ele publicou em 2016 Footnotes. How Running Makes Us Human e seus estudos tendem a investigar a relação entre as mudanças no mundo externo em que o ser humano vive e as consequentes transformações ou hábitos que seu corpo sofre. Especificamente, Alteração Primata é a tentativa de mostrar as novidades de nosso próprio corpo exatamente a partir dessa era geológica chamada antropoceno.
A resenha é editada por Giulio Pennacchioni e a informação é de Alice Dal Gobbo, publicada por Effimera, 21-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
A aparência do ser humano e a maneira como ele se move e realiza várias atividades na vida cotidiana mudaram profundamente desde que o Homo sapiens colocou os pés no planeta, provavelmente mais de 300.000 anos atrás. Desde então, não houve nenhum processo de evolução substancial, mas muitas atividades humanas se desenvolveram e, enquanto isso, foi o ambiente externo que mudou o Homo sapiens. Em particular, chegamos a uma época histórica que se distingue cada vez mais pelo enorme impacto que a nossa espécie causa sobre o meio ambiente que o cerca.
As épocas geológicas foram definidas no século XIX, embora na época não fosse possível prever quanto o desenvolvimento tecnológico nos permitiria voltar no tempo. Especificamente, com a descoberta da datação radiométrica no início do século XX, a história geológica do nosso planeta tornou-se muito mais longa, estendendo-se a 4,5 bilhões de anos atrás. No entanto, continua sendo difícil definir com precisão em que época geológica estamos vivendo hoje; melhor: a resposta não é uma só.
A primeira, mais tradicional, é que, desde o final da última era glacial, cerca de 11.700 anos atrás, estamos vivendo no Holoceno. Esta época é uma fase relativamente estável e quente da história da Terra, que se seguiu a um período glacial que, como Vybarr Cregan-Reid aponta, durou 100.000 anos. Um dos elementos que precisa ser entendido é que, por Holoceno, entende-se um período de tempo relativamente breve; a era anterior, o Pleistoceno, durou 2,5 milhões de anos. O autor destaca como, em particular, a última glaciação teve significativos efeitos no corpo humano: houve pelo menos vinte ciclos de congelamento e aquecimento e, em média, as temperaturas globais foram cinco graus mais baixas que as atuais. O planeta era mais árido e havia muito menos água na atmosfera, pois a maioria estaria presa nas espessas calotas polares. Era um ambiente difícil para o Homo sapiens e, se não fosse por essas condições, talvez ainda existissem no planeta hoje outras espécies humanas diferentes da nossa.
A segunda possível resposta é que estamos vivendo no Antropoceno (do grego anthropos, "humano" e kainos, "recente" ou "novo"). O termo foi cunhado pelo ganhador do Nobel Paul Jozef Crutzen, químico atmosférico [1] (embora, já em 1873, o geólogo italiano Antonio Stoppani tivesse usado uma palavra semelhante ao falar da era antropozoica). O nome está a um passo do reconhecimento oficial. Os estudiosos que determinam que tempos e nomes devem ser admitidos, são os membros da International Union of Geological Sciences (IUGS), fundada em 1961, com o objetivo de iniciar a cooperação internacional no campo da geologia.
Em 2009, foi criado um grupo de trabalho a quem foi solicitado coletar provas da peculiaridade do Antropoceno. O grupo de trabalho estabeleceu que há evidências inequívocas de que o planeta, sua atmosfera, oceanos e natureza foram permanentemente modificados pelos seres humanos. A partir desta nova época, pode ser observado no planeta um pico repentino de novos minerais e, além disso, foram encontrados em todos os lugares isótopos radioativos derivados de numerosos testes nucleares e os níveis perigosamente altos de fosfatos e nitratos nos solos constituem uma prova adicional (como no filme Erin Brockovich, de Steven Soderbergh).
O efeito de nossa atividade no sistema Terra, no entanto, não se limita a isso, mas também atua na direção oposta: em direção ao nosso corpo. Vybarr Cregan-Reid mostra como o corpo humano do Antropoceno mudou, não como resultado da evolução, mas em resposta ao ambiente que ele mesmo criou. Com as novas descobertas científicas, experimentos in vivo, diferentes modalidades de trabalhar, transformações do panorama social e inúmeras outras mudanças, melhorias e inovações, o mundo que foi modificado, por sua vez, silenciosamente nos mudou.
Essa obra mostra como as revoluções que marcaram a história da humanidade na Terra (cognitiva, agrícola, científica [2]) mudaram o ambiente externo, mas também o nosso modo de vida teve profundas mudanças, que introduziram ou aceleraram significativamente muitas das patologias existentes:
"Se o ambiente criado pelo homem é responsável por uma ampla variedade de problemas de saúde, como obesidade, doenças mentais e mortes prematuras, chegou a hora de parar de atribuir a culpa individualmente a quem que não tem grandes possibilidades de escolha, talvez porque viva em contextos patogênicos e obesogênicos. É hora de olhar mais de perto o mundo que produzimos, pensar em como o usamos e reconsiderar o que esperamos disso e de nossos corpos; também é hora de mudar para poder desfrutar um pouco mais de todos os benefícios que as grandes florestas da Terra anteriormente prontamente nos ofereciam. "[3]
Toda a obra, portanto, se desenvolve como uma viagem original (bastante insólita) na história da humanidade, mas do ponto de vista do nosso corpo, mostrando todas as mudanças sofridas por ele. Distinguimos estas fases:
– De 500.000.000 a.C. a 30.000 a.C.: nesse período, se passa do aparecimento dos primeiros cordados (os ancestrais mais antigos dos vertebrados de hoje) aos fósseis mais antigos do Homo sapiens, descobertos no Marrocos em 2017;
– De 30.000 a.C. a 1700 d.C.: nesse intervalo, há uma passagem das mudanças físicas produzidas pelos primeiros desenvolvimentos de experiências como o cultivo de plantas e a consequente sedentarização, até o século em que se estima que o arado de aiveca foi inventado, capaz de cortar e virar torrões de terra;
– De 1700 a 1910: nesse período, temos a invenção do automóvel a motor, em 1885, e em 1903, os seres humanos voam com o primeiro avião pilotado por um ser humano;
– De 1910 até hoje: em 1989, Tim Berners-Lee cria a World Wide Web e em 2007 a empresa americana Apple Inc. lança o iPhone, vendendo mais de um bilhão de exemplares. Aconteceu o que Vybarr Cregan-Reid chama de revolução sedentária.
Em resumo, a natureza do trabalho para a humanidade no Antropoceno se simplificou à medida que nossa tecnologia se tornou mais engenhosa e eficiente; a energia mecânica derivada de combustíveis fósseis substituiu nosso consumo calórico, mas tudo isso não permaneceu estranho ao nosso corpo. Embora exista uma certa variedade ecológica, nessa economia não é mais expressa fisicamente.
Em Alteração Primata é descrita a discrepância entre o nosso corpo e o mundo moderno em que vivemos, e é oferecida uma série de dicas sobre como "conviver com ele". O que emerge, portanto, é uma linha de criticidade do ser humano contemporâneo, incapaz de "sobreviver" ao que ele mesmo criou (particularmente do ponto de vista físico).
Friedrich Engels, que estudou a classe trabalhadora de Manchester em meados do século XIX, escreveu sobre as pessoas que haviam trabalhado a terra no século anterior e que, no fundo, tiveram bastante sorte, pois:
"elas vegetavam bastante confortavelmente e levavam uma vida boa e tranquila com toda devoção e respeitabilidade; sua posição material era muito melhor do que a de seus sucessores"[4].
De tudo isso, emerge fortemente que os modernos são incapazes de serem “contemporâneos" de si mesmos e isso leva a pensar em um autor como Bruno Latour que, em Nunca fomos modernos [5] considera como sinal de criticidade da modernidade manter separadas duas atividades: a "tradução" e a "depuração".
Com a primeira referimo-nos à produção de uma mistura entre tipos de ser completamente novos, híbridos de natureza e cultura.
Com a segunda, por outro lado, nos referimos àquela produção de áreas ontológicas completamente distintas (precisamente): aquela dos "humanos" e aquela dos "não-humanos". A modernidade "depura" o que a "tradução" criou: as redes. As redes são as conexões e mediações entre as áreas ontológicas que consideram tudo o que não é apenas cultura ou natureza: os híbridos. A depuração moderna obstina-se em considerar separadas essas duas áreas. Não é mais possível manter separadas a natureza e a sociedade, porque os híbridos (basta pensar no aquecimento global) obrigam a considerar uma nova perspectiva, que deve subverter a atual (ainda de separação, justamente).
Em Alteração Primata, tudo isso é mostrado, mas do ponto de vista das mudanças sofridas pelo nosso corpo. Portanto, a obra se insere perfeitamente naquela perspectiva que, precisamente, tenta superar essa dicotomia (criada a partir do Iluminismo) tipicamente moderna. O próprio Lévi-Strauss [6], em Pensamento Selvagem, realiza a mesma operação (se preferir, subversão), assim como Viveiros De Castro, Philippe Descola [7] ou Tim Ingold.
Nos últimos duzentos anos, o impacto da humanidade sobre o meio ambiente foi enorme, a ponto de a época em que vivemos ter sido rebatizada de Antropoceno. Todo esse progresso trouxe vantagens inquestionáveis e maravilhosas (da medicina à tecnologia), mas não podem mais ser ignorados alguns elementos problemáticos. Por um lado, nosso corpo evoluiu e se adaptou em dezenas de milhares de anos para caçar, correr quilômetros, escalar e coletar; em uma palavra, para se mover continuamente. Por outro lado, o estilo de vida sedentário que foi criado não permite nada disso. O resultado? Dor nas costas, miopia, obesidade, diabetes, ossos mais finos e músculos mais fracos são os sinais inequívocos de uma mudança que já está ocorrendo.
A oposição que quer a natureza de um lado e a cultura de outro está se mostrando incapaz de dialogar com a realidade e não pode mais representar os dois polos com os quais se orientar no mundo:
“Fomos modernos. Perfeito. Não podemos mais sê-lo da mesma maneira. Continuamos a acreditar nas ciências, mas, em vez de tomá-las em sua objetividade, em sua verdade, em sua frieza, em sua extraterritorialidade (características que nunca tiveram, se não na reelaboração arbitrária da epistemologia), nós as aceitamos pelo que sempre tiveram de mais interessante: sua audácia, experimentação, incerteza e calor, sua mistura incongruente de híbridos, a insana capacidade de recompor o vínculo social. Não lhes tiramos nada além do mistério do nascimento e do perigo que sua clandestinidade fazia correr à democracia. [8]
Em conclusão, essa obra se coloca (através de um ponto de vista biológico) naquela luta pela superação da divisão tipicamente moderna de natureza e cultura. Devemos nos tornar "híbridos" para sobreviver ao "corpo" de utilidade que, separando-nos da natureza, domina a nossa criatividade (o nosso tornarmo-nos "híbridos") e a encerra em um depósito de energia dedicado exclusivamente a alimentar o projeto da modernidade (causando-nos dor nas costas). É preciso entender o próprio corpo para subverter o presente.
[1] Paul J. Crutzen, Benvenuti nell’Antropocene. L’uomo ha cambiato il clima, la Terra entra in una nuova era. Sagrate. Mondadori. 2005.
[2] Yuval Noah Harari, Sapiens. Breve história da humanidade. LPM. 2015.
[3] Vybarr Cregan Reid, Il corpo dell’Antropoene. Come il mondo che abbiamo creato ci sta cambiando. Codice Edizioni. Torino. 2020, p. 335.
[4] Friedrich Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Segundo as observações do autor e fontes autênticas, Boitempo, 2008.
[5] Bruno Latour, Jamais fomos modernos, Ed. Rio de Janeiro, 1994.
[6] Lévi Strauss, O pensamento selvagem, Papirus, 1989.
[7] Philippe Descola Par-delà nature e culture,, Gallimard. Paris. 2005.
[8] Bruno Latour, Jamais fomos modernos, Rd. Rio de Janeiro, 1994.
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