20 Junho 2020
"As pessoas negras insistem em (r)existir (existir, reexistir, resistir), tomando um último fôlego e gritando: vidas negras importam!", escreve Alexandre Magalhães, professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFRGS e Pesquisador do Dicionário de Favelas Marielle Franco, em artigo publicado por CEE-Fiocruz, 11-06-2020.
Nas últimas semanas estamos acompanhando a repercussão mundial da onda de protestos em diferentes cidades dos EUA em decorrência do caso George Floyd, um homem negro asfixiado até a morte por um policial branco de Minneapolis enquanto seus colegas assistiam à cena macabra sem nada fazerem. Enquanto era morto, Floyd repetia uma frase que vem ecoando nos protestos e mundo afora: “não consigo respirar”.
No Rio de Janeiro, no dia 18 de maio, o adolescente João Pedro Mattos Pinto, de apenas 14 anos, foi morto dentro de casa durante uma operação conjunta realizada pelas polícias Federal e Civil na região do Complexo do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, região metropolitana do estado.
No último dia 2 de junho, na cidade de Recife (Pernambuco), Miguel Otávio Santana da Silva, de apenas cinco anos, caiu do nono andar do prédio onde a sua mãe trabalhava e morreu momentos depois. Nesse instante, sua mãe estava passeando na rua com o cachorro da patroa, que supostamente teria ficado responsável pelos cuidados da criança.
No cenário da pandemia, os últimos dados têm demonstrado não somente que o novo coronavírus vem se espalhado por favelas, periferias e interiores, mas atingido principalmente a população negra. Hoje, no Brasil, a proporção de mortos entre pessoas negras é maior do que entre as brancas.
O que todos esses fatos têm em comum? Qual a linha que os conecta de alguma forma? O que eles dizem sobre nós, enquanto sociedade?
Historicamente, é possível afirmar que as pessoas negras são os alvos preferenciais das polícias, assim como são as que se encontram mais expostas a infecções e contaminações de todos os tipos. São também a maioria entre os desempregados, subempregados e no trabalho informal.
As denúncias e notícias relacionadas tanto aos casos de violência policial quanto aos cuidados que dizem respeito aos impactos do novo coronavírus, bem como a morte do menino Otávio nos revelam algo acerca do racismo estrutural, institucionalizado e culturalmente enraizado que organiza as relações sociais no Brasil.
Revelam também como a escravidão ressoa ainda hoje em múltiplos domínios, desde relações interpessoais até medidas governamentais mais amplas (como aquelas relacionadas à ação da polícia e de combate à pandemia). O racismo estrutural e institucionalizado regula práticas, estabelece relações, conforma subjetividades e produz as condições de vida e morte de uns e outros.
No caso da violência policial, considerando os dados oficiais do primeiro semestre de 2019 no estado do Rio de Janeiro, 80% dos mortos pela polícia eram negros, em sua maioria homens, jovens e moradores de favelas. Em pesquisa realizada na PUC-Rio, segundo os dados oficiais consultados, chegou-se à conclusão de que pessoas negras de baixa escolaridade morrem quatro vezes mais pela covid-19 do que pessoas brancas com ensino superior. Mesmo quando se leva em consideração a mesma escolaridade, negros e negras apresentam uma proporção de mortes 37% maior em relação aos brancos. Atualmente, em plena subida da curva de contágio, pessoas negras correspondem a 57% dos mortos pelo novo coronavírus enquanto os brancos 41% (segundo dados do Ministério da Saúde).
Estamos aqui lidando com uma exposição contínua dos corpos negros à morte. De um lado, no caso da ação policial, para que a maquinaria de guerra funcione (com a justificativa da chamada “guerra às drogas”) é fundamental a construção de uma alteridade radical, territorializada e racializada. No cenário das grandes cidades brasileiras, esse Outro da cidade, a imagem do medo, localiza-se no corpo favelado (em sua maioria negro). Um corpo que precisa ser supliciado e, no limite, exterminado para que uma determinada ordem (violenta e desigual) se reproduza.
De outro lado, é visível que os impactos do novo coronavírus não são os mesmos em todos os lugares e para todas as pessoas. Diferenças de geração, classe, gênero, raça e lugar de moradia demarcam as possibilidades de cuidado e de acesso aos serviços médico-hospitalares (e também assistenciais), já que tanto aquelas possibilidades quanto o acesso a estes serviços são distribuídos desigualmente tendo em vista recortes raciais e de classe.
É notório também, de acordo com inúmeros levantamentos, que a população negra é aquela que habita áreas com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), com maior número de pessoas morando em um mesmo domicílio, onde o saneamento básico é precário e o acesso a serviços de saúde limitado.
Em relação a estes últimos, segundo pesquisa do Ipea, 67% das pessoas negras dependem do Sistema Único de Saúde, o mesmo sistema que vem sofrendo com desfinanciamento e sucateamento cada vez mais acelerados nos últimos tempos. Ou seja, o desfinaciamento e o sucateamento atingem diretamente a população negra e por isso podem ser considerados uma das manifestações institucionais do racismo estrutural e da violência estatal direcionada a esta população. Além disso, essa população é a que mais sofre com o desemprego, especialmente as mulheres negras, nesse momento da pandemia.
Diante de um cenário como esse, como garantir que pessoas negras, em geral moradoras de favelas e periferias, fiquem em casa quando para boa parte delas a possibilidade de obtenção da renda que sustenta suas famílias depende da circulação pela cidade? Elas representam uma multidão de trabalhadoras domésticas, informais, camelôs que precisam se movimentar para conseguir o pão de cada dia.
Quando observamos os casos de violência policial, a incidência da Covid-19 entre as pessoas negras e o trabalho precarizado em meio à pandemia podemos ter uma ideia de como operam os mecanismos de precarização e de exposição das vidas negras em uma sociedade extremamente desigual, hierárquica, racista e violenta. Enquanto alguns conseguem se cuidar e evitar o contágio, outros precisam sair de suas casas na periferia, levar seus filhos (que não têm onde ficar) para trabalhar nas áreas nobres. E correr o risco de ver o seu filho, por negligência, morrer ao cair do 9° de um prédio de luxo. Ou se sentir a salvo do avanço do coronavírus dentro de casa numa comunidade, mas não das balas das armas dos fuzis das polícias.
Essa configuração nos traz novamente para a frase símbolo dos protestos nos EUA: “não consigo respirar”. Reconstruir muito brevemente o cenário de vida da população negra no Brasil nos aponta para a consideração de uma experiência que se dá no limite da existência, de uma vida constantemente exposta, vulnerável, asfixiada e sufocada. Sufocada literalmente nas mãos da polícia, mas também em função das precárias condições de moradia, de acesso à trabalho, à saúde, assistência social e também pelo não reconhecimento de sua humanidade. Tratados como quase humanas ou simplesmente como não humanas (em geral são animalizados, o que historicamente justifica a ação violenta por parte do Estado), as pessoas negras insistem em (r)existir (existir, reexistir, resistir), tomando um último fôlego e gritando: vidas negras importam!
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Sobre racismo estrutural no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU