17 Junho 2020
Faz algum tempo que o sociólogo francês François Dubet vem pensando uma problemática que de certo modo é muito antiga e, ao mesmo tempo, radicalmente atual: a desigualdade. Fez isso anos atrás, quando pesquisou a marginalidade juvenil de seu país, e também quando pesquisou as múltiplas desigualdades que os sistemas educacionais contêm e as mudanças que afetaram as instituições democráticas nas últimas décadas.
Em La época de las pasiones tristes, livro recentemente lançado em e-book por Siglo XXI, Dubet se pergunta sobre os mecanismos que, em uma época de flagrante desigualdade global, põem na vanguarda das reações sociais a ira, o ressentimento e, muitas vezes, a competição com os mais próximos na escala social.
Mesmo em suas diferenças, nas manifestações dos “coletes amarelos”, naquelas que sacudiram o Chile no ano passado e nas que, uma década atrás, os “Indignados” protagonizaram, Dubet observa uma sequência comum: explosões de fúria que mostram um crescente desconforto, ainda muito difuso, ligado àqueles que nunca foram convidados à mesa dos vencedores da globalização. Mas, na ausência de representações políticas adequadas, essa fúria é condenada a não ser mais que uma repetição de si mesma, sem grandes efeitos na dura estrutura do real.
Após os meses de letargia forçada imposta pelo coronavírus, essa comoção retorna. Com reivindicações ligadas ao conflito racial em Nova York, Paris, Londres e Madri e mais claramente econômicas em Beirute, os protestos dos cidadãos dos últimos dias atualizam o fenômeno analisado por Dubet.
“Essas ondas de protestos que há anos ocorrem em diferentes partes do mundo, em todos os casos, são realizadas fora dos sistemas políticos, sindicatos e movimentos sociais”, explica, durante um intercâmbio por email. “São agregações de cóleras heterogêneas que escapam à lógica política tradicional, que não formulam verdadeiras reivindicações e programas de ação”. Por isso, acredita que os protestos continuarão ocorrendo e até se intensificarão quando, passado o risco sanitário, restarem apenas as consequências materiais desastrosas da pandemia. “Da mesma maneira que ocorrem réplicas de um sismo, ocorrem também réplicas da cólera social”, descreve.
A entrevista é de Diana Fernández Irusta, publicada por La Nacion, 13-06-2020. A tradução é do Cepat.
Em ‘La era de las pasiones tristes’, compara o mundo atual à Europa em meados do século XIX: um continente sacudido por revoltas, com um imaginário ancorado no século anterior e uma realidade política, econômica e social que mudou categoricamente.
As revoltas populares do século XIX eram cada vez mais violentas e desesperadas, enquanto a vida política era dividida entre burgueses conservadores e burgueses republicanos e liberais, e os proletários não tinham voz. Houve uma longa luta política e ideológica até a formação dos partidos que representariam os trabalhadores: trabalhistas, socialistas, comunistas, social-democratas... Essas forças sociais e políticas de esquerda impuseram direitos e políticas sociais e Estados de bem-estar que “domesticaram” o capitalismo.
Hoje, estamos em uma situação semelhante: as esquerdas não representam essa população que se enfurece e acaba se voltando para os populismos de direita e de esquerda. Precisamos reconstruir uma vida política que reivindique novas solidariedades, outras formas de trabalhar, outras relações entre os sexos. Mas também precisamos de movimentos que não escolham a retirada, porque vivemos em um mundo interdependente. Sem dúvida, será necessário um longo trabalho ideológico e político para que a fúria e a indignação resultem em políticas responsáveis por suas consequências.
Você descreve o conjunto que forma a globalização, as finanças, o neoliberalismo e a tecnologia como um “sistema cego e sem atores”. O descrédito da política tradicional pode se dar pela sua dificuldade em lidar com esses fatores de poder tão impessoais?
Em vez de sentir que confrontamos com atores sociais, sentimos que confrontamos com um sistema no qual apenas participamos como consumidores e através de redes sociais. Os governos parecem impotentes, mesmo os populistas (no sentido europeu), que são eleitos pelos pobres e costumam fazer política para os ricos, como Trump, Johnson e Salvini. Esse tipo de governo mobiliza o ódio em vez de mobilizar projetos sociais e políticos.
Acredito que nos próximos meses haverá mais mobilizações, impulsionadas pelo desemprego em massa, o empobrecimento da classe média, a falta de confiança nas elites. Ninguém pode dizer se esses protestos levarão a uma sociedade mais aberta e solidária, ou a políticas cada vez mais autoritárias. Na realidade, pessoas revoltadas que se manifestam em diferentes partes do mundo não têm uma unidade real além da raiva e ódio às elites. E muitas vezes seu ódio por estrangeiros e, cada vez mais frequentemente, pelos pobres.
O risco de autoritarismo é uma ameaça latente?
Hoje, as democracias se enfraquecem de diferentes formas. Parecem impotentes diante das forças tecnológicas e econômicas, enquanto o poder parece ser reservado às elites econômicas e tecnocráticas. Em todos os lugares há uma rejeição à democracia representativa e um gosto por “homens fortes”. Mas a democracia não pode ser mais do que representativa e constitucional, deve dar direitos a indivíduos e minorias e aceitar desacordos.
De fato, precisamos renovar e expandir a democracia representativa, aceitando que a sociedade está dominada por conflitos e desacordos, mas também que os governos devem ser capazes de agir. Na crise atual, a política será decisiva para os cidadãos escolherem se querem solidariedade, equidade, defesa do meio ambiente ou mais mercado, mais brutalidade, mais desigualdade.
Em relação à Covid-19, o medo estaria se somando ao que você chama de “paixões tristes”?
Não se sabe o que vai acontecer. Muitas sociedades experimentarão uma explosão de desemprego e pobreza. Será necessário compartilhar os sacrifícios, não apenas benefícios. Diante da pandemia, a primeira reação foi solidária, houve uma “descoberta” da grandeza e utilidade de profissões pouco valorizadas: enfermeiras, caixas, caminhoneiros. Pudemos sonhar com um mundo mais solidário e ecológico.
Mas com a crise econômica, observa-se um aperto nas tensões sociais: cada categoria social se considera mais vítima que as outras e retorna a hostilidade de todos contra todos... Como a pandemia obriga a arbitrar entre a saúde, a atividade econômica e a liberdade dos indivíduos, os governos sempre fazem “más escolhas”. É provável que a crise sanitária leve a mais conflitos. Obviamente, meu desejo é que a saída da crise seja a favor da solidariedade e da equidade, mas nada é menos seguro do que isso.
A pandemia poderia aprofundar uma certa noção de que no mundo existe uma “população sobrante”?
Não penso que a Covid-19 seja a mão de Deus, nem a mão do diabo. Nada de novo aparece com o vírus. As populações mais frágeis são as mais afetadas: os idosos porque são menos resistentes e os pobres porque são menos protegidos e menos assistidos sanitariamente. A lição que devemos tirar dessa crise diz respeito às “pequenas” desigualdades sociais que assumem uma importância enorme quando enfrentamos situações críticas. A Covid-19 não tem moral, não criou novas desigualdades. Apenas revela as que já existiam.
Realmente não acredita que em algum lugar desta crise está o germe de um possível futuro melhor?
O problema reside em ver como os gestos de solidariedade e civilidade podem derivar em forças sociais e políticas. Nesse sentido, jornalistas, intelectuais, militantes, mulheres e políticos têm uma responsabilidade particular, porque muitas vezes nossas críticas e reflexões não pertencem a este, mas ao “velho mundo”.
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“A Covid-19 não tem moral, não criou novas desigualdades. Apenas revela as que já existiam”. Entrevista com François Dubet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU