27 Mai 2020
O professor Michael Baxter conversou sobre as transformações causadas pela pandemia de covid-19 e os cenários apocalípticos, para ele "hoje, quatro meses depois, estamos todos familiarizados com a realidade da Covid-19: máscaras faciais, distanciamento social, achatamento de curvas, folgas, perda de empregos, fechamento de escolas, conferências via internet, aumento do número de pessoas infectadas e mortas. Faz sentido perguntar: O que mais não estamos vendo? Porque essas revelações repentinas, estes cenários apocalípticos, ocorrem regularmente".
Michael J. Baxter ensina estudos religiosos na Universidade Regis, universidade jesuíta, em Denver, EUA. Atulamente está escrevendo um livro intitulado Blowing the Dynamite of the Church: Radicalism Against Americanism in Catholic Social Ethics, a ser publicado pela Cascade Press.
A entrevista é de Charles C. Camosy, publicada por Crux, 26-05-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Recentemente, você brincou comigo dizendo que falar sobre cenários apocalípticos, que é sua tendência natural, faz mais sentido hoje. Pode nos falar mais sobre esse assunto?
Apocalíptico significa “revelação”. O que supomos ser real mostra-se ilusório, e a realidade é chocante e perturbadora. No Livro do Apocalipse, Roma parece controlar o mundo, mas, à medida que vêm à tona certos eventos assustadores, o Império e seus deuses acabam reconhecidos como falsos, enquanto o verdadeiro poder e a autoridade do universo são revelados como sendo o Cordeiro que fora morto.
Nesses últimos dias, com inúmeras certezas tornando-se repentinamente irreais, a resposta racional é não termos tanta certeza quanto às nossas suposições e perguntarmo-nos, repetida e reflexivamente, o que realmente está acontecendo.
Após ler as primeiras reportagens sobre o coronavírus, pensei: “que situação terrível”, e me perguntei: “Onde exatamente fica Wuhan?” e fiquei aliviado. Mas, depois, me preocupei com o que acabamos vendo. Não mais fiquei aliviado. Ninguém de nós ficou.
Hoje, quatro meses depois, estamos todos familiarizados com a realidade da Covid-19: máscaras faciais, distanciamento social, achatamento de curvas, folgas, perda de empregos, fechamento de escolas, conferências via internet, aumento do número de pessoas infectadas e mortas. Faz sentido perguntar: O que mais não estamos vendo? Porque essas revelações repentinas, estes cenários apocalípticos, ocorrem regularmente.
Dê outros exemplos de cenários apocalípticos?
Vejamos o dia 06-11-2016. Quem poderá esquecer do momento em que vimos que Donald Trump seria, de fato, o presidente dos Estados Unidos? Para os que acompanharam a sua eleição, ela representou um terremoto no cenário político. Para os progressistas, foi uma derrota totalmente inesperada. Há um esquete postado na internet (no canal “Saturday Night Live”, do YouTube) zombando dos conservadores brancos que se viram surpresos na noite da eleição, quando souberam que muitos, nos EUA, são racistas.
Outro exemplo: a crise financeira de 2008. Ninguém a viu chegar. Os economistas de Wall Street, no governo e nas universidades, todos achavam que o mercado imobiliário jamais entraria em colapso. Mesmo com os sinais de uma crise iminente, ninguém dava atenção – exceto um punhado de figuras cuja história é retratada no filme “A Grande Aposta”. A certa altura, o personagem principal exclama: “Escuta aqui: é o fim do capitalismo! É como a idade das trevas, voltando mais uma vez!” Em seguida, o personagem é zombado por um repórter do Wall Street Journal por achar que era o apocalipse. Na verdade, foi um apocalipse aos milhares que perderam suas casas, empregos, economias.
A lição é que não podemos ter muita certeza do que é real. Em dezembro de 2019, os economistas do Goldman Sachs disseram que a economia é “praticamente à prova de recessão”. Disseram isso, apesar de uma guerra comercial com a China, de curvas de produtividade invertidas para títulos públicos e de um aumento de 40% no mercado de ações em apenas três anos.
Não acredito quando economistas e consultores financeiros dizem que uma outra Grande Depressão é impossível de acontecer. O que eles querem dizer é que historicamente algo do tipo não aconteceu desde então, o que é uma afirmação muito diferente.
Vê analogias entre as coisas como estão hoje e aquilo que foram nos anos 30?
Com certeza. Como muitos já apontaram, estamos vendo os piores números de desemprego desde a década de 1930. Uma parcela equivalente a 40% das famílias que ganham anualmente 40 mil dólares ou menos perderam o emprego. Em abril, as vendas no varejo caíram 16%. O número de inadimplências nos financiamentos da casa própria e nos empréstimos empresariais aumentará. Isso levará a uma pressão de liquidez nos bancos. Isso tudo pode conduzir a outra Grande Depressão, exceto que agora o governo já empregou várias opções. Nos níveis estadual e local, a receita tributária cairá drasticamente, levando a mais desemprego, mais inadimplências e assim por diante.
Juntamente com essa desaceleração econômica haverá um aumento no tipo de nacionalismo e populismo que vemos, já faz alguns anos, nos Estados Unidos e na Europa: Trump, é claro, juntamente com o Brexit e Boris Johnson na Inglaterra; Salvini e a Liga Norte, partido na Itália; o partido Alternativa para a Alemanha; o Partido da Liberdade da Áustria. Essas tendências políticas estavam em andamento antes da pandemia de Covid-19, mas vão aumentar à medida que as condições econômicas se agravarem.
O que a Igreja pode fazer para abordar a situação? A Igreja está em posição de fazer a diferença nessa altura da história?
A Igreja pré-pandemia reduziu a sua própria capacidade de fazer a diferença. Por um lado, há essa crise de abusos sexuais. Por outro lado, há a oposição obsessiva ao casamento homoafetivo que é estranha e irrelevante aos olhos da maioria dos católicos mais jovens. Em seguida, há uma guerra cultural entre católicos progressistas e conservadores, que continua e não mostra sinais que desaparecerá tão cedo.
E hoje temos a própria pandemia, que paralisou a vida da Igreja em muitos aspectos. As missas de domingo, os batismos e outros sacramentos, os encontros religiosos, todos foram suspensos ou precisam ser feitos sob sérias restrições. O dano econômico às paróquias, dioceses e à própria Conferência dos Bispos Católicos dos EUA promete ser devastador: demissões, cancelamentos de programas, redução dos serviços prestados.
Mas talvez a maior ameaça seja o apagamento da percepção da natureza irredutivelmente social do catolicismo. Os católicos oram como membros de um corpo. Ter que orar sozinho ou no contexto reduzido da família pode levar as pessoas a remodelarem suas sensibilidades próprias em uma direção individualista.
Pensemos na imagem do papa a presidir a liturgia da Sexta-feira Santa, de pé na Praça São Pedro, sozinho, em uma igreja vazia e escura. Imagem assombrosa. Tão contrária àquela imagem das multidões em pé, aguardando a longa Narrativa da Paixão, em filas para venerar a cruz, com fiéis ajoelhados em oração, pondo-se de pé novamente, perfilados, para a Sagrada Comunhão. Só podemos esperar que os católicos da era pós-pandemia apreciem mais profundamente o caráter comunitário da crença e da prática católicas.
Por outro lado, a vida familiar está sendo mais comunitária do que nunca. Li, recentemente, um artigo que dizia que “hoje somos todos monges”. Entendo o sentido buscado pelo autor: os monges têm algo a nos ensinar sobre o florescimento na solidão.
Mas viver em quarentena com crianças não se parece nenhum pouco com uma “vida monástica”. (Neste momento, enquanto escrevo, Annie, minha filha de 4 anos, veio até mim chorando porque Jack, meu filho de 6 anos, não a deixa brincar de Guerra nas Estrelas com ele, então ela quer que eu leia um livro para ela.)
Nesse sentido, a vida em família está sendo mais comunitária do que nunca. Além disso, é claro, o fato de tomarmos precaução devido à Covid-19 é, em si, um ato comunitário consumado, de solidariedade e responsabilidade social.
Mas praticar solidariedade através do serviço direto aos outros pode facilitar a disseminação do vírus. Onde você se coloca no debate sobre o que o Evangelho pede aos cristãos num momento como este?
Fico do lado do Dr. Anthony Fauci, do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas. Acredito na medicina e na saúde pública baseadas em evidências como o melhor caminho para atravessarmos a crise de Covid-19. As igrejas devem tomar as precauções recomendadas ao realizarem os seus trabalhos.
Na igreja que frequento, em Denver, por exemplo, um grupo nosso mudou a forma de trabalhar: em vez de distribuirmos o habitual sopão comunitário em uma longa fila, passamos a entregar as refeições preparadas em sacolas de papel. É arriscado, mas menos arriscado do que a abordagem de antes. Tudo se resume a probabilidades, afinal de contas. Com isso, diminuímos as chances de contaminação e, então, pomos fé em Deus. É uma fé racional e razoável, posta em ação.
O ensino católico é especialmente útil nesse sentido. De acordo com o Vaticano I, fé e razão são dois caminhos para a verdade. Eles não se contradizem. Aquilo que conhecemos pela fé não entra em conflito com a razão. As palavras e as ações do papa foram exemplares aqui. O mesmo se aplica à maioria dos bispos, padres e lideranças leigas.
Por outro lado, quando pregadores anunciam pomposamente que não temem realizar as celebrações de domingo porque acreditam em Jesus, esta noção de fé contradiz a razão. Eles falam como manipuladores de cobras. O importante é exercitar o raciocínio prático (para Aristóteles, phronesis; para Aquino, prudentia) para discernir se se deve ou não – ou em que medida e de que maneira é preciso – interagir com as pessoas necessitadas. Aliás, Fauci formou-se na Regis High School, em Manhattan, nos anos 50, então provavelmente ele aprendeu isso tudo já na adolescência.
Você falou sobre sua paróquia e trabalho com os desabrigados. Há outros exemplos de católicos que estão descobrindo como se ajustar às condições atuais durante a pandemia?
Um dos melhores exemplos que li a respeito é que as casas [do movimento de leigos chamado] O Trabalhador Católico [The Catholic Worker] estão abordando “o trabalho”, como costumam dizer, com coragem e imaginação. As circunstâncias atuais exigem uma reversão das práticas usuais: pedir que os voluntários não se ponham a ajudar, pedir às pessoas que permaneçam em seus quartos em vez de participarem das atividades comuns, incluindo o momento da janta. Mas, como já disseram, vivemos tempos estranhos e urgentes, e provavelmente permanecerá assim por meses. O Trabalhador Católico, no entanto, nasceu no contexto da Grande Depressão, por isso deve estar se sentindo em casa.
Sendo que surgiu do contexto da Grande Depressão, devemos voltar o nosso olhar para O Trabalhador Católico na busca da superação do atual momento?
O Trabalhador Católico já trabalha para atender às necessidades de hoje. Dezenas de casas, dezenas de propriedades rurais buscam dar conta das necessidades atuais. Nós só precisamos de mais dessas comunidades.
Frank Cordaro, da comunidade O Trabalhador Católico, na cidade de Des Moines, no Iowa, expressou-se bem quando disse que não queremos que todos os católicos se unam ao movimento; queremos apenas que 1% dos católicos americanos se juntem ao grupo. Pelos números atuais, seríamos cerca de 700 mil pessoas.
A questão é que já temos os recursos para atender às necessidades. Basta reajustarmos nossas vidas para tanto. Uma coisa que aprendemos é que temos os meios para reajustar nossas vidas. E estamos fazendo, ao dirigir menos, consumir menos, vivendo de maneira mais simples – coisas que julgávamos impossíveis ou apenas para grupos periféricos e que acabavam sendo taxados de extremistas. É o caso do “homeschooling”, a escolarização domiciliar. Temos visto capacidades que nem sabíamos que tínhamos, elas podem expandir a nossa visão do que é possível.
Novos grupos podem nascer em meio à crise?
Suponho que sim. Mas o mais provável, creio eu, é que os grupos já formados encontrem um propósito renovado, como aconteceu com as Irmãs da Misericórdia, as Filhas da Caridade, os Irmãos de La Salle e outras ordens religiosas durante a epidemia por gripe espanhola, de 1918.
Podemos esperar ver uma onda maior de interesse nas profissões médicas à medida que o trabalho destes profissionais, de servir aos outros, emerge com mais clareza. Médicos, profissionais de enfermagem e assistentes correm o risco de adoecer na busca por salvar os pacientes: um trabalho heroico que vai atrair os jovens. A bondade é assim: tem uma atração intrínseca. Na Universidade Regis, onde leciono, as faculdades de enfermagem e farmácia têm mostrado um aumento acentuado no número de matrículas.
Por falar em educação superior, esta pandemia criou grandes desafios às universidades e faculdades católicas. Como nós, que trabalhamos na educação católica, devemos pensar sobre o futuro das nossas vocações?
Os maiores desafios que as instituições de ensino superior católicas enfrentam já existiam muito antes da pandemia: o baixo número de docentes católicos, a desagregação dos currículos básicos (core curricula), a marginalização da teologia e da filosofia, e assim por diante. No entanto, esses desafios vão ficar ainda maiores com o colapso econômico. As maiores instituições de ensino católicas irão sobreviver, mas as outras poderão falir.
A tentação será, cada vez mais, focalizar a formação para o trabalho em detrimento do ensino da visão intelectual católica e de demonstrar como ela fala à atual crise. Nossa vocação é perguntar aos alunos: Como devemos viver?
Na Universidade Regis, essa questão é como um mantra. Por melhor ou pior que seja, é ela a questão que buscamos trabalhar. Esta crise nos trouxe doença e morte, conquanto trouxe respostas heroicas também.
A dinâmica destas realidades era bem conhecida por Inácio de Loyola. Foi enquanto esteve acamado por uma doença que ele entendeu, pela primeira vez, os movimentos do Espírito. Ele instou os que o seguiam a considerar suas vocações imaginando-se, cada um, em seu próprio leito de morte: O que gostariam de decidir neste momento? Eis um cenário apocalíptico também. Não sabemos o dia, nem a hora. A educação superior católica deve ajudar os alunos no discernimento de suas vocações à luz de tais verdades.
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A Igreja deve estar pronta para lidar com cenários ‘apocalípticos’ pós-covid. Entrevista com Michael J. Baxter - Instituto Humanitas Unisinos - IHU