07 Mai 2020
Alta taxa de mortalidade levou o povo Kokama a divulgar uma dramática carta pública. Sepultamentos fora da tradição aumentam a dor de familiares.
A reportagem é de J. Rosha, publicada por CIMI, 04-05-2020.
Com a morte de nove indígenas, sendo dois na aldeia Sapotal, no município de Tabatinga (AM), as lideranças do povo Kokama estão apreensivas quanto à velocidade com que o número de casos aumenta. Somente nas aldeias Sapotal e São José existem 30 casos confirmados, de acordo com informação de um servidor da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
“Nós estamos aqui perdendo vários Kokama, estamos sofrendo muito com tantas perdas. Nenhum órgão estava preparado para essa pandemia”, aponta Edney Samias, cacique geral dos Kokama do Alto Solimões. Somente na família dele, dois tios foram a óbito na última semana de abril em decorrência de infecção por coronavírus. A alta taxa de mortalidade entre o povo motivou uma carta pública de alerta (leia abaixo).
“Tio Anselmo morreu e a família só foi saber depois de dois dias. Ele foi registrado como “pardo” porque os funcionários do hospital em Tabatinga não sabem quem é indígena ou não”, diz Edney. “Eles não avisaram a família, mesmo com os filhos diariamente esperando notícias. A Sesai não destacou assistente social para acompanhar esses casos”, acrescenta o cacique Kokama.
Outra preocupação para as lideranças daquele povo é o fluxo intenso de indígenas entre as aldeias e as cidades. Em Tabatinga existem pequenas comunidades Kokama, como Guadalupe e Luís Ferreira, onde as pessoas plantam verduras e frutas e vendem na feira da cidade para obter recursos para sobrevivência.
“Existem recomendações do Gabinete de Gestão Integrada de Fronteira (GGI-FRON – formado por órgãos dos governo Federal, Estadual e Municipal), acatadas pela Prefeitura Municipal de Tabatinga, proibindo a entrada de pessoas nas aldeias. Mesmo assim, eles entram para comprar banana, artesanato, farinha e outros produtos dos indígenas”, relata Edney Samias.
Além disso, muitos têm se deslocado para a cidade para receber o auxílio emergencial, formando aglomerações, em contato com não indígenas. “É assustador porque lá não tem ninguém controlando o espaço. Não tem ninguém acompanhando os indígenas. Muito descaso que está acontecendo aqui”, protesta Samias. Até sábado, o município de Tabatinga apresentava oficialmente 113 pessoas infectadas.
Documento de denúncia enviado pelos Kokama ao MPF. Reprodução
Após diálogo com autoridades municipais de Tabatinga, representantes do povo Kokama conseguiram que uma ala do cemitério criado para sepultar as vítimas do covid-19 fosse destinada aos indígenas. No dia 30 de abril foi protocolado no Ministério Público Federal (MPF) uma solicitação para que o órgão e a Fundação Nacional do Índio (Funai) atuassem no sentido de assegurar a disponibilização de uma ala no cemitério para a realização dos funerais indígenas de acordo com a tradição de cada povo.
Edney Samias explica que “com muita luta conseguimos assegurar no cemitério uma área onde fosse respeitada a nossa privacidade, os nossos costumes. A gente quer acender uma vela, quer colocar um prato de comida em cima da tumba e ficar rindo, segundo nosso costume e, para isso, precisamos de privacidade”. Para os Kokama, uma forma de enterrar os mortos com dignidade.
Comparando com os não indígenas, eles apontam que os “brancos” têm carros para levar os familiares falecidos. Eles dizem que encontram dificuldade maior quando precisam fazer os sepultamentos. “É longe para levar para enterrar, o caminho é cheio de lama e nenhum desses órgãos (Sesai, Funai, Secretaria Municipal) dá os carros para levar alguém da família para se despedir. É muito dolorido”, explica Edney.
Com a pandemia do novo coronavírus, os Kokama passaram a ter medo de ir para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) ou para o hospital e morrer longe dos familiares. Muitos estão dizendo que querem morrer em cassa. “Meu tio Idelfonso Tananta morreu na casa dele porque ele não quis ir para a UPA, ele se recusou. Morreu perto da família. Por volta de uma hora conseguiram levar o corpo para congelar e esperar a hora de ser enterrado”, relata Edney Samias.
Na região do Alto Solimões, formada por oito municípios, os Kokama vivem em 120 aldeias e sua população é de aproximadamente 16 mil indígenas morando nas aldeias e 30 mil nas cidades, conforme levantamento da Sesai.
São nove óbitos Kokama por COVID 19 nestas últimas semanas. Quem irá se fazer responsável pelas perdas de nossos anciãos e professores?
Nós povo Kokama habitantes originários deste extenso território do Alto e Médio Solimões viemos através desta DENUNCIAR para a mídia nacional e internacional e os órgãos públicos o descaso do poder público frente o combate do COVID 19 nesta região.
As cidades de Tabatinga, Benjamin Constant e Santo Antônio do Iça, Estado do Amazonas, Brasil encontram-se declarada a contaminação comunitária.
O prefeito de Tabatinga e o DSEI do Alto Solimões comunicaram que a situação está fora de controle. E nós povo Kokama estamos registrando óbitos todos os dias. Estamos aflitos e desesperados.
Nós estamos indignados devido a negligência, descaso e omissão do poder público a nível Federal, Estadual e Municipal, apesar deste último já fizeram o possível para conter a propagação do virus.
Por ser uma região de fronteira com Peru e Colômbia de grande mobilidade terrestre e fluvial, as ações das autoridades se tornam insuficientes.
O sistema de saúde público encontra-se sobrecarregado e sem os equipamentos necessários para responder a demanda de casos confirmados por este vírus.
Este maligno invisível chamada “gripezinha” está acabando com a vida de nossos parentes, nosso POVO KOKAMA.
Ainda o Estado, através da SESAI insiste em fazer diferença entre o atendimento de parentes que vivem na cidade e os que estão na aldeia.
Deixando o nosso povo ainda mais exposto para o contágio deste vírus.
Estamos sofrendo com a falta de atendimento, despreparo das equipes médicas e falta de estruturas hospitalares, Unidade de Pronto Atendimento – UPA e Unidade de Terapia Intensiva – UTI para receber os pacientes.
Soma-se ao descaso das unidades de saúde o desconhecimento no trato com os povos indígenas, negando a nossa identidade. De fato, o Hospital Militar HGUT de Tabatinga tem insistido em registrar na Declaração de Óbito do nosso parente como “pardo”.
Queremos deixar claro a todos que RANI não faz a gente indígena! E sim, o reconhecimento de nossos líderes e representantes natos KOKAMA.
Nós SOMOS INDÍGENAS ANCESTRAIS! Além das dores o que é perder um parente, os médicos aspirantes precisam estarem cientes dos fatos das ocorrências juntamente com Assistência Social.
Pois, fomos comunicados dos óbitos 24 horas após o falecimento. Sabemos da dificuldade dos profissionais de saúde, ao transferir um paciente faz-se o necessário o intercâmbio da totalidade da vida do estado do paciente, onde ocorreu o descaso com o nosso parente, nossa família o professor ANCELMO. A UPA não repassou os dados completo do nosso primo para HGUT, e agora a culpa é de quem?
Estamos indignados por essa fatalidade! Não tem mais respeito com NÓS indígenas! Independente de quem for pois todos são pessoas humanas.
Ressaltamos o apreço da compreensão de todos.
EXIGIMOS QUE FUNAI, SESAI, MPF atuem de forma URGENTE para o fortalecimento das unidades hospitalares nos municípios do Alto e Médio Solimões onde o vírus está se propagando com rapidez e matando os nossos parentes.
EXIGIMOS que se tomem as medidas necessárias para o isolamento social com mais vigor!
PEDIMOS que as autoridades SESAI e FUNAI disponibilize transporte para deslocar os familiares de nossos parentes falecidos.
EXIGIMOS um mínimo de dignidade aos povos indígenas nessas horas difíceis e de dor.
Apesar de nosso ente querido fazer a travessias para a vida espiritual sem dor, eles continuam a nos apoiar nessa luta!
Lembramos de nossos parentes falecidos por COVID 19:
Augustinho Samias – Aldeia Sapotal e falante materno
Idelfonso Tananta de Souza – Aldeia Sapotal
Lindalva de Souza Moura – Manaus
Anselmo Rodrigues Samias – professor da Aldeia Sapotal
Antônio Vela Sammp – Sapotal
Antônio Castilho – Manaus
Alberto Guerra Samias – Aldeia Sapotal
Assinamos esta carta os representantes legítimos do povo Kokama:
Glades kokama Rodrigues
Presidenta/ TWRK
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Eladio Kokama Curico
Presidente / OGCCIPK
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Edney Kokama Samias
Patriarca Tradicional
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Órgãos governamentais não sabem como atender os indígenas na pandemia, diz liderança Kokama - Instituto Humanitas Unisinos - IHU