19 Abril 2020
Após a pandemia, como a diplomacia vaticana se moverá? Pode parecer uma pergunta ociosa com uma resposta previsível: “Fará o que sempre fez”. Mas o mundo está mudando rapidamente, tornando mais complicada a resposta.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada em Settimana News, 17-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Pode ser útil sobrepor o exercício de uma liderança moral expressada pelo Papa Francisco nesta conjuntura com a dinâmica das potências mundiais para o exercício de uma nova hegemonia ou para compartilhá-la (em particular entre China e EUA) e traçar algumas indicações sobre o trabalho que os núncios terão nos 183 países que mantêm relações diplomáticas com a Santa Sé.
Um diplomata de longa data me dizia: “Sem qualquer superestimação, é difícil negar uma referência mundial ao comportamento e às palavras de Francisco. Até pela escassa confiabilidade de muitos líderes políticos atuais”.
A pandemia relançou a demanda por uma liderança moral construída pela qualidade das palavras, pela coerência dos gestos e pelo patrimônio dos valores de referência. A pouca qualidade do discurso público, a ocasionalidade dos comportamentos e os interesses do poder econômico e político mostraram a insuficiência dos expoentes de primeiro plano em nível mundial.
Por isso, embora com atitudes muito diferentes (da indiferença ao consentimento, passando pela curiosidade), a história destes meses se cruza com o magistério do papa.
Cito apenas duas passagens da homilia para oração no adro da Basílica de São Pedro no dia 27 de março e uma da mensagem pascal do dia 12 de abril.
“‘Ao entardecer…’ Assim começa o Evangelho, que ouvimos. Há semanas parece que caiu a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e de um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: sente-se no ar, percebe-se nos gestos, dizem-no os olhares. Vemo-nos temerosos e perdidos. (...) O Senhor interpela-nos e, no meio da tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, sustento e significado a estas horas em que tudo parece naufragar.”
A Páscoa “é um contágio diferente, que se transmite de coração a coração, porque todo o coração humano aguarda essa Boa Nova. É o contágio da esperança: ‘Cristo, minha esperança, ressuscitou!’. Não se trata de uma fórmula mágica, que faça os problemas desaparecerem. Não! A ressurreição de Cristo não é isso. Mas é a vitória do amor sobre a raiz do mal, uma vitória que não ‘salta’ por cima do sofrimento e da morte, mas os atravessa abrindo uma estrada no abismo, transformando o mal em bem: marca exclusiva do poder de Deus.”
É difícil pensar que o próximo encontro com o corpo diplomático junto à Santa Sé (janeiro de 2021) poderá se estruturar sobre as viagens realizadas, como ocorreu neste ano.
A densa trama das 39 viagens apostólicas ao exterior realizadas desde 2013 (foram cerca de 50 os países visitados: 17 na Europa, 11 na América, 7 na África, 3 no Cáucaso, 7 na Ásia e 4 no Oriente Médio) se interrompeu. Foi cancelada a viagem para Malta, prevista para o fim de maio; está incerta a viagem prevista para a Hungria para o Congresso Eucarístico Internacional (setembro); e estão sendo avaliadas as viagens previstas para Indonésia-Timor-Papua-Nova Guiné e Montenegro-Grécia-Chipre.
Permanecem ativos todos os temas centrais do seu magistério que, partindo do Evangelho e da fé eclesial, abrem-se para as responsabilidades mundiais: migrações, paz e guerra, multilateralismo, diálogo inter-religioso, reforma de sistema, movimentos populares e defesa dos pobres.
A referência aos migrantes, aos pobres e à necessária mudança no sistema econômico retorna desde o início do seu ministério, enquanto a ênfase no multilateralismo (centralidade da ONU, trabalho diplomático, laços continentais etc.) intercepta tendências crescentes mais recentes, como as propensões populistas e nacionalistas.
“O reaparecimento dessas pulsões hoje está enfraquecendo progressivamente o sistema multilateral com o resultado de uma falta geral de confiança, de uma crise de credibilidade da política internacional” (discurso ao corpo diplomático de 2019).
É acima de tudo a preocupação com a paz diante de novas formas de “guerra em capítulos” e o papel das fés nesse sentido que o leva a diálogos não desprovidos de coragem e de risco. Os focos de guerra, da Síria ao Iêmen, da Ucrânia à Líbia, ao rearmamento atômico da Coreia do Norte e do Irã são sinais de alerta para a manutenção da paz mundial.
O impulso a todos os diálogos de paz entre Israel e Palestina, entre Eritreia e Etiópia, entre Cuba e EUA, na Bolívia e na Venezuela, muitas vezes, cruza os pertencimentos religiosos.
O diálogo inter-religioso visa a erradicar as supostas justificativas de fé nos gestos violentos e agressivos, mas também a lembrar o papel insubstituível das religiões a fim de manter a paz e a comunhão entre os povos. O exemplo mais recente é o Documento sobre a Fraternidade Humana assinado no dia 4 de fevereiro de 2019 em Abu Dhabi, que compromete o Islã e o Cristianismo (estavam presentes numerosas denominações cristãs) com um “futuro melhor para a humanidade, um futuro livre do ódio, do rancor, do extremismo e do terrorismo, em que prevaleçam os valores da paz, do amor e da fraternidade” (mensagem por ocasião do primeiro aniversário anual).
O fato unificador dos muitos fenômenos “telúricos” é o desaparecimento da “centralidade atlântica” e o confronto (que se espera que não seja um conflito militar) em relação à nova hegemonia mundial. Os grandes protagonistas são os EUA e a China, mas um espaço em termos de poder militar deve ser reconhecido à Rússia e, pelo seu significado econômico (ainda não político), à Europa.
Dos conflitos entre navios de pesca no mar da China à reivindicação de ilhotas desabitadas e estratégicas entre a China e o Japão, da presença da frota estadunidense nesses mares, até o choque cada vez mais evidente entre a China e seus vizinhos (do Vietnã ao Japão, às Filipinas), tudo se compõe em torno do império chinês e da vigilância estadunidense.
Os conflitos se tornaram duros confrontos comerciais, desafios voltados às pesquisas científicas e ao uso da rede mundial da web, da nova corrida ao rearmamento convencional, atômico e cibernético, até o reconhecimento do espaço como campo de guerra.
Nesse contexto, a “plataforma de valores” de Francisco tem um papel menor e marginal. Criticada internamente pelo mundo católico tradicionalista estadunidense e europeu, desconfiada externamente por uma parte relevante do mundo neoprotestante, que se inspira na teologia da prosperidade e na direita política, distante das orientações ideológicas do governo Trump e dos poderes financeiros internacionais, ainda estranhos às grandes massas islâmicas, assim como às budistas e hindus, ela ainda mantêm uma capacidade de referência pela sua dimensão internacional, pela força argumentativa em um momento em que as fés entram nas relações políticas mundiais e por uma posição que não se identifica com nenhum dos “poderes fortes”. Mantendo, porém, um canal de diálogo com eles.
A resposta de Stefen Mnuchin, secretário do Tesouro dos EUA a Nancy Pelosi, presidente da Câmara (“Veja, senhora, você ouve a voz do papa, eu, a do mercado”) expressa, ao mesmo tempo, a ausência e a presença da autoridade moral de Francisco no contexto norte-americano.
O pedido do Irã de uma mediação vaticana para aliviar as sanções econômicas estadunidenses nesta emergência, o encontro do ministro das Relações Exteriores chinês, Wang Yi, com o correspondente vaticano, Dom Paul R. Gallagher (14 de fevereiro), o reconhecimento formal chinês da ajuda financeira da Santa Sé para a pandemia e os três encontros de Putin com o papa são todos sinais de reconhecimento da Santa Sé como um “lugar” confiável, um interlocutor confiável. Com uma atenção específica à Europa, peão fundamental para conter os impulsos violentos dos outros atores.
Por isso, após anos de legítimas críticas à ideologia secular de Bruxelas, há hoje um apoio evidente ao papel da Europa. Na mensagem pascal já citada, afirma-se: “Depois da Segunda Guerra Mundial, este continente pôde ressurgir graças a um espírito concreto de solidariedade, que lhe permitiu superar as rivalidades do passado. É mais do que nunca urgente, sobretudo nas circunstâncias atuais, que tais rivalidades não retomem vigor; mas que todos se reconheçam como parte de uma única família e se apoiem mutuamente. Hoje, a União Europeia tem à sua frente um desafio epocal, do qual dependerá não só o seu futuro, mas também o do mundo inteiro. Não se perca a oportunidade para dar uma nova prova de solidariedade, inclusive recorrendo a soluções inovadoras. A alternativa é somente o egoísmo dos interesses particulares e a tentação de um retorno ao passado, com o risco de colocar a dura prova a convivência pacífica e o desenvolvimento das próximas gerações”.
A diplomacia internacional se atualizou progressivamente em relação o papel das fés na política. Não é apenas o caso do fundamentalismo islâmico e do peso da sharia em muitos países de maioria islâmica. Há a inclinação religiosa de Israel, a dimensão identitária hindu da Índia, o peso dos neoprotestantes no Brasil, o crescente papel da ortodoxia na Rússia. Há anos, aparecem com frequência cada vez maior artigos de política religiosa na Foreign Affairs (EUA); a França ativou um “polo religiões” no Ministério das Relações Exteriores, assim como a Noruega, a Suíça e o Canadá. O “poder doce” da Santa Sé pode ser esnobado pela tradição laicista de muitas elites, mas foi e será útil.
Se a pandemia reduziu temporariamente ao mínimo o funcionamento dos escritórios no Vaticano, incluindo a Secretaria de Estado, há mudanças que antecipam o futuro. A criação de uma “terceira seção” dedicada especificamente aos núncios e a mudança do currículo formativo com a exigência de um ano de atividade pastoral para os alunos da Academia Diplomática nas Igrejas missionárias mais expostas indicam as duas direções privilegiadas.
Por um lado, sintonizar a equipe com a vida real das comunidades cristãs, incluindo o deslocamento ao Sul das suas presenças e, por outro, não perder a dimensão profissional e “neutra” que é própria da diplomacia.
Em um estudo de Blandine Chelini-Pont sobre a diplomacia do Papa Francisco, conclui-se recordando todas as oposições em curso com estas palavras: elas “certamente enfraquecem a revolução de Francisco. Mas não podem impedir a constatação de que, com este papa, modificou-se todo o eixo de rotação da Igreja Católica. Ele mudou para tentar condicionar o do planeta” (in Revue internazionale et stratégique, n. 117, 2020).
Mais diretamente, trata-se de acompanhar as mudanças da nova hegemonia mundial, legitimando as expectativas dos novos protagonistas (sobretudo a China), sem ignorar as razões dos outros, disponibilizando um “lugar confiável” de debate. Com a intenção de salvaguardar a liberdade das fés e, acima de tudo, a paz no mundo.
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A diplomacia vaticana e a hegemonia que virá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU