12 Fevereiro 2020
“Como se pode observar, os traços característicos do espaço que constitui a multidão, como um todo aberto e dinâmico, atravessado por uma heterogeneidade radical, embora com a capacidade de propor alguns objetivos comuns, forçam a pensar a questão da organização interna do movimento ou movimentos”, escrevem Miquel Martínez e Josep Artés, professores de filosofia, em artigo publicado por El Salto, 07-02-2020. A tradução é do Cepat.
A primeira parte do artigo pode ser lida aqui.
Tomando como ponto de partida a afirmação de que “não sabemos do que a multidão é capaz quando se reúne em uma assembleia”, em sua última obra, Hardt e Negri apresentam a necessidade de se produzir as condições necessárias para liberar o poder criativo de todas aquelas expressões subjetivas de caráter subversivo. Como já apontamos na primeira parte deste texto, os autores desenvolvem esta tese seguindo dois eixos principais: o da organização interna dos movimentos políticos e sociais e o da instituição das formas de vida geradas à margem do modelo neoliberal.
Nesse sentido, a noção de assembleia faz alusão ao espaço em que a tomada de decisões ocorre, a partir da horizontalidade e com base nos princípios da democracia absoluta, mas também no conjunto de dispositivos que cabe colocar em funcionamento para conseguir, tanto a destituição do poder constituído, como a constituição de uma nova articulação das relações no campo social. Dessa forma, se os processos de destituição e constituição se definem, em sentido estratégico, como o principal objetivo em torno do qual pensar as lutas no contexto atual, os autores apontam para a organização e a instituição como as vias mais adequadas para colocar em prática tal aspiração.
Em sua produção anterior, Hardt e Negri falam de maneira farta sobre as formas de articular a multidão. Em Assembly, os autores expõem de maneira explícita o problema da organização das revoltas que ocorreram nos últimos anos. Cabe recordar, por esse lado, que estamos em um contexto caracterizado não apenas pela existência de centros de poder disseminados, o que faz com que fique difícil propor um combate focalizado e com objetivos claros, como também, em muitas ocasiões, em um marco em que se destaca a ausência de líderes, o que em princípio poderia implicar dificuldades na hora de decidir a estratégia a seguir nas lutas. Nesse sentido, em Assembly se aborda a questão de como tomar a iniciativa, por parte dos movimentos políticos e sociais, quando o esquema tradicional de uma vanguarda dirigente que representa os interesses da massa deixou de ser, em boa medida, operacional.
A partir dessa perspectiva proposta pelos autores, o proletariado é atualmente formado por todas aquelas e todos aqueles capazes de gerar uma riqueza em termos coletivos e que, nesse sentido, sofrem de uma maneira ou outra a exploração capitalista, tanto no que diz respeito à produção estritamente material, como à (re)produção imaterial expressa na criação de formas de vida. O espaço amplo e heterogêneo da multidão conta, assim, entre suas fileiras, com as expressões subjetivas que escapam do padrão patriarcal, heteronormativo e racista.
Da mesma forma, juntamente com os setores que compõem a classe trabalhadora tradicional, a multidão é formada através do que os autores chamam de o proletariado intelectual ou o cognitariado, as e os estudantes, a mão de obra do setor terciário e os setores produtivos não tradicionais. Em termos de Deleuze e Guattari, com a multidão, na atualidade, se expressa o devir minoritário do mundo inteiro.
Os autores incidem, assim, em um dos pontos centrais de sua obra. Tanto na linha dos movimentos autônomos italianos dos anos 1970, como das outras lutas que ocorrem por volta do ano 1968, em diferentes partes do mundo, em As verdades nômades (1985) se apresenta a necessidade de articular os chamados movimentos minoritários que, cada vez mais, ocupam um espaço central na hora de dinamizar as lutas.
Neste texto, surgido de uma troca de cartas entre Negri e Guattari, quando o primeiro estava na prisão de segurança máxima de Rebibbia, os autores começam rejeitando a organização centralista das lutas. Em seu lugar, reivindicam um multicentrismo funcional com a capacidade de neutralizar os efeitos do capitalismo e, ao mesmo tempo, articular as lutas dos movimentos que enfrentam o poder constituído. Da mesma forma, os autores propõem a possibilidade de chegar a uma coimplicação multivalente entre a classe operária tradicional e as trabalhadoras e os trabalhadores do setor terciário, assim como como as precárias e os precários. Esses elementos constituem o duplo eixo do que os autores definem como um método de agregação molecular, em referência às lutas que ocorrem por baixo do âmbito da representação política.
Dessa maneira, avançam-se também alguns dos elementos que Negri tratará posteriormente em títulos como La fábrica de la estrategia (2004), na perspectiva de renovação do aparato conceitual marxista que apontamos na primeira parte desta análise. A partir do exemplo oferecido pela tomada de poder por Lenin, ainda que situados agora no contexto do capitalismo pós-industrial, Negri procura caracterizar a emergência de uma nova subjetividade coletiva - os sovietes do novo século - em torno de dois elementos principais.
Em primeiro lugar, a necessidade de organizar as lutas, bem como as relações sociais em seu conjunto, com base nas tomadas de decisões coletivas e diretas. Em segundo lugar, as possibilidades que por esta parte oferecem os processos produtivos baseados no avanço dos dispositivos tecnológicos, sobretudo na medida em que tais dispositivos possam contribuir para uma atividade mais autônoma, ou seja, desligada dos processos capitalistas de atribuição de valor, por parte das novas figuras produtivas.
Como se pode observar, os traços característicos do espaço que constitui a multidão, como um todo aberto e dinâmico, atravessado por uma heterogeneidade radical, embora com a capacidade de propor alguns objetivos comuns, forçam a pensar a questão da organização interna do movimento ou movimentos. Nesse sentido, o dilema sobre a necessidade ou não de uma organização para as lutas expressa, na opinião dos autores, um falso problema: não há dúvida de que os ciclos de lutas e os movimentos que os protagonizam precisam propor alguns objetivos e a orientação mais apropriada para obtê-los.
Em todo caso, isso não significa que é preciso recuperar as lideranças caracterizadas pela concentração de funções e a direção vertical, de cima para baixo, com as quais se exerce o poder. São os próprios movimentos, de dentro e em sentido horizontal, que devem decidir para onde e como as lutas se orientam. Nesse sentido, se com a noção de liderança se faz alusão à possibilidade de organizar ações de maneira eficaz, regular e massiva, com capacidade para comover as relações em todos os níveis, mais que eliminar essa possibilidade, trata-se de levar a liderança ao lugar da inteligência coletiva que se manifesta no interior dos próprios movimentos. Não se trata, portanto, de rejeitar a noção de liderança, mas de eliminar seu caráter transcendente e, portanto, separado do movimento.
A proposta de Assembly passa, assim, por inverter o plano em que a tradição marxista elaborou boa parte da análise das lutas contra o capital. Como apontam os autores, agora se trata de dominar as duas partes do centauro, de maneira que a parte pensante e, nesse sentido, as decisões e o poder executivo sobre a estratégia a seguir se abriguem na base, nas mãos da militância e do movimento. Reservando também a possibilidade, em sentido tático e provisório, de abstrair uma parte do movimento para que se encarregue de tarefas de tipo representativa.
Em vez de manter o esquema segundo o qual o proletariado deve se tornar uma classe em si e para si através da mediação e a organização de uma cúpula dirigente, os autores reivindicam a possibilidade de organizar as lutas sobre um plano de imanência, na medida em que é o próprio movimento que pode projetar, por meio de suas ações, um princípio forte e compartilhado de articulação coletiva.
Igualmente, Assembly alerta para o perigo de reproduzir as relações que ocorrem no interior do sistema capitalista, quando se trata de organizar as lutas. O que, dito assim, pode parecer uma evidência, não é tanto se levamos em conta o contexto biopolítico em que nos movemos. Dessa maneira, se é o caso de combater o poder de comando capitalista, o tipo de organização que o próprio movimento dará a si deve prefigurar e constituir um ensaio - ainda que em dimensão reduzida - do conjunto de relações às quais busca dar vida, com cada novo ciclo de lutas. Nesse sentido, pode servir como base e exemplo o potencial produtivo da multidão, que pulsa rebelde sob as redes da exploração capitalista.
Uma vez que foram dadas algumas chaves para pensar a organização das lutas nas mãos dos movimentos, resta apontar como é possível concretizar os efeitos de tais lutas mediante a criação de um processo institucional de caráter aberto e inacabado, ainda que duradouro e estável. Com essas duas linhas, seguindo a leitura de Maquiavel, que os autores não abandonam ao longo de sua obra, teríamos garantidas para os movimentos e seus ciclos de lutas a virtù (que se concentra nas capacidades estratégicas da multidão) e a fortuna ( que se expressa, como veremos a seguir, através da criação institucional do comum).
Para começar, o caso de se instituir as relações da multidão se dá porque Hardt e Negri não rejeitam a tomada de poder como via para construir uma nova ordem social. Isto é o que leva os autores a abandonar a terminologia que haviam utilizado até o momento, em referência à tensão que se produz entre a capacidade produtiva da multidão e a capacidade de absorção do capitalismo.
Nos títulos anteriores, seguindo a distinção spinoziana entre potestas e potentia, os autores definiam o poder imperial, próprio do capitalismo na atualidade, mediante o termo biopoder, reservando a noção de biopolítica para a potência criativa da multidão. Agora, em Assembly, Hardt e Negri utilizam o mesmo termo - poder - para se referir à gestão da propriedade capitalista (Poder) e à articulação do espaço do comum (poder), embora utilizando a maiúscula ou a minúscula para a letra inicial em cada caso.
Sendo assim, talvez de forma mais clara do que em qualquer outro lugar de sua obra, os autores incidem em Assembly sobre este ponto: da mesma maneira que não se trata de abandonar o espaço da organização e da liderança, mas, sim, de dotá-lo de um conteúdo libertador e eficaz para as lutas coletivas no contexto atual, trata-se agora de tomar o espaço de poder não apenas de outro modo, mas, sobretudo, com alguns objetivos diferentes daqueles propostos pelo sistema capitalista. Em resumo, trata-se de criar um espaço estável para as relações autônomas da multidão e, portanto, para a construção e defesa da riqueza que emerge do comum.
Nesse sentido, se - como já apontamos no texto anterior - até agora os autores haviam utilizado a noção de êxodo, em Assembly, por outro lado, essa estratégia do poder dual, que se expressa de dentro e contra o sistema, se complementa tomando elementos de outras duas vias que não rejeitam, neste caso, a tomada de poder institucional: a do reformismo antagonista e a da hegemonia.
Mediante a noção de êxodo, trata-se de prefigurar, em pequena escala e partindo da organização dos próprios movimentos, a futura articulação de um amplo e estável espaço de relações à margem do sistema capitalista. Entre os exemplos atuais oferecidos pelos autores, encontramos os centros sociais ocupados da Itália, nos anos 1970, e, mais recentemente, os acampamentos surgidos em torno do ciclo de lutas de 2011. A segunda via trata de se infiltrar, por meios eleitorais, nas instituições, com o objetivo de transformá-las por dentro. Projetos de caráter municipalista e partidos como Podemos ou Syriza - embora neste caso constitua um exemplo do fracasso da hipótese baseada no reformismo antagonista -, estariam entre as propostas desse tipo.
Por último, a estratégia da hegemonia propõe a destituição mais ou menos rápida da ordem estabelecida, sem subestimar a via eleitoral, que deve ser seguida pela construção de um novo espaço institucional em todos os níveis. As experiências que ocorreram em alguns países da América Latina, durante as últimas duas décadas, podem constituir uma amostra disso. Nesse sentido, seria o caso de fazer confluir as três linhas - as três faces de Dionísio para o (auto)governo da multidão, como apontam os autores - com o propósito de levar para além do alcance, geralmente relativo, e de fortalecer a capacidade de resistência, muitas vezes frágil, dos projetos de caráter prefigurativo.
Sendo assim, o novo espaço institucional deve impugnar a propriedade capitalista em favor da produção cooperativa do comum. Ao mesmo tempo, a nova criação institucional deve exceder os limites impostos pela soberania e sua materialização no seio do aparato estatal. Decai, assim, igualmente, o peso dos mecanismos de representação na esfera do político. Superar a soberania quer dizer, neste caso, que não se aceita nem a abstração que supõe um sujeito unificado como o de povo - ou o de nação -, nem a alienação da capacidade de decisão que, sobre esse corpo político, acaba exercendo o modelo representativo.
Como apontam os autores, o objetivo de diminuir a distância entre governantes e governados deve constituir, por essa parte, um dos motores do novo espaço institucional. Nesse sentido, o comunismo é reivindicado a partir da possibilidade de colocar em prática processos de produção, circulação e atribuição de valor, bem como de expressão e participação política, que nem caiam nas redes do Mercado, nem se encontrem fechados nos limites do estado. Por esse lado, como indicam os autores, experiências como o confederalismo democrático curdo ou as comunidades autônomas zapatistas oferecem um exemplo de boa parte dos aspectos implicados na construção de um novo espaço institucional.
Como dissemos inicialmente, Assembly constitui, por essa parte, um espaço no qual desenvolver e concretizar, no qual colocar para trabalhar conjuntamente as principais ferramentas conceituais que Hardt e Negri forjaram com sua obra nos últimos vinte anos.
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Hardt e Negri: “Assembly” ou como articular as lutas da multidão (II) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU