27 Novembro 2019
Velha mídia prometia: só Paulo Guedes poderia estabilizar moeda. Mas dólar chega a R$ 4,30, PIB não desencanta, empresas quebram e há exército de desempregados. Até quando o fiel soldado do rentismo será preservado?, indaga Paulo Kliass, economista, em artigo publicado por OutrasPalavras, 26-11-2019.
Façamos girar a roda do tempo e voltemos a pouco mais de um ano atrás. Estamos em meados do segundo semestre de 2018, vivenciando um período de grande efervescência política em nossas terras. Lula, o líder favorito nas pesquisas de intenção de voto, havia sido impedido pelo Poder Judiciário de se candidatar às eleições presidenciais. Bolsonaro avançava no eleitorado do centro e da direita, ao passo que Fernando Haddad tentava se colocar na disputa como herdeiro de Lula. Dois meses antes do primeiro turno, uma providencial facada retira o capitão dos palcos e dos debates.
A partir daí, a estratégia dos representantes dos interesses do financismo e dos grandes meios de comunicação foi consolidada. Aderiram de forma descarada à candidatura do defensor da tortura e da pena de morte, um declarado saudosista dos tempos de chumbo da ditadura militar. Imbuídos da “missão” de impedir o retorno de um eventual governo preocupado com aspectos como a redução da desigualdade e a promoção do desenvolvimento, adotaram a tática suja e desleal do vale-tudo para assegurar a vitória de um extremista de direita.
Dentre os inúmeros recursos utilizados para essa tarefa, vale destacar o arsenal de ampliação e multiplicação das fakenews, um conjunto sistemático de mentiras e inverdades profissionalmente elaboradas pela campanha de Bolsonaro com a assessoria internacional de Steve Bannon. De outro lado, os agentes vinculados ao sistema financeiro encarregaram-se de reproduzir o clima de véspera de catástrofe caso o candidato do PT vencesse as eleições.
Na verdade, é forçoso reconhecer, não foi essa a primeira vez que tal artimanha tenha sido colocada em marcha. Às vésperas das eleições de 2002, o mesmo havia ocorrido com a candidatura de Lula em disputa com José Serra pelo Palácio do Planalto. Ao longo da campanha, o terrorismo artificialmente construído para impedir a vitória do petista chegou a levar que o dólar a ultrapassasse a mitológica barreira de R$ 4,00 no mercado financeiro. O recado era explícito e espalhado pela grande imprensa: se o ex-sindicalista vencesse, o Brasil estaria quebrado no dia seguinte.
Pois as urnas ousaram desafiar as ameaças das nossas elites e a economia brasileira, ao contrário das previsões apocalípticas, retomou um ritmo de crescimento inédito. A cotação do real no mercado de câmbio retornou a níveis adequados e a situação de alguns meses antes revelou-se de uma armação mais do que evidente. Aliás, muito pelo contrário, um fator que acabou prejudicando a economia brasileira na sequência foi um excesso de valorização cambial.
Pois esse mesmo clima de antevéspera do desastre final foi recuperado 16 anos depois. Para esse pessoal pouco importava que o ex-prefeito de São Paulo incorporasse um perfil bem mais conservador do que a imagem genericamente construída de um candidato do PT. Também não era relevante na tarefa desse bombardeio que Haddad tivesse abandonado a atividade de docência na Faculdade de Filosofa da USP em troca de aulas na meca do financismo paulistano – o INSPER. O objetivo era evitar sua vitória a qualquer preço, utilizando de todos os subterfúgios para promover sua demonização.
No campo da economia, surgiu de novo, ainda com mais força, o fantasma da quebradeira da economia. E, para tanto, a narrativa ganharia um destaque todo especial quando recheada do simbolismo fatídico da cotação cambial. A classe média sempre morreu de medo do dólar alto. E, na condição de formadora de opinião, ajuda a cristalizar a inevitabilidade do caos. Os jornalões e as grandes redes de TV se encarregavam de auxiliar na divulgação dos cenários do desastre.
Vejamos algumas das manchetes que circularam à época, aqui selecionadas para ilustrar o argumento:
“Quanto é o “dólar Haddad” e o “dólar Bolsonaro”? Gestora faz os cálculos” (Moneytimes – 24/08)
“Dólar dispara a R$ 4,14 após Ibope mostrar vitória de Haddad sobre Bolsonaro no 2º turno” (Destak – 25/09)
“Haddad no Planalto: dólar alto, investimentos adiados e forte oposição.” (Valor Econômico – 3/10)
“O dólar a R$ 4,15 refletia o temor com a forte ascensão de Haddad e a possibilidade, por menor que fosse, que o PT e a nova matriz voltassem ao governo.” (C. A. Sardenberg – 04/10)
Eis a maneira como a grande imprensa tratava do único candidato que poderia evitar o enorme retrocesso político, econômico, social, cultural, ambiental e civilizatório a que assistimos a partir dos resultados da apuração em 28 de outubro. Afinal, para o seleto grupos de famílias que dominam esse império, Haddad era a personificação de tudo de ruim que poderia acontecer ao país. Um jornalista da Globo chegou até mesmo ao disparate de cunhar a expressão “dólar Haddad”, que teria alcançado a inimaginável cotação de R$ 4,15.
Pois bem, conhecemos muito bem como se deu a evolução da conjuntura a partir de então. O superministro Paulo Guedes foi empoderado de tudo que exigiu e de mais um pouco para que oferecesse aos partidos da base aliada e aos arautos do financismo tudo aquilo que havia prometido durante a campanha. Afinal, tratava-se de um conhecido profissional que conhecia a realidade do mercado do dinheiro como poucos. A desastrada passagem como consultor do governo sanguinário do general Pinochet era apresentada como um verdadeiro cartão de vistas para sua habilidade em promover maldades semelhantes por esses lados da cordilheira andina.
Só que não! O aprendiz de neoliberalismo de botequim está encontrando enormes dificuldades em promover a retomada do crescimento de nossa economia. É bem que verdade que não se esqueceu daqueles que o apoiaram desde as primeiras horas nessa missão que parecia impossível. Tem oferecido todo o tipo de favor e suporte aos grupos que atuam no mercado financeiro. Está caprichando na estratégia de desmonte das políticas públicas e na destruição do Estado brasileiro. Tem se esforçado em apressar o processo de privatização e de entrega do patrimônio público aos grandes conglomerados do capitalismo globalizado.
Mas o desemprego continua na faixa dos 13 milhões de trabalhadores. A subutilização da força de trabalho se aproxima de 30 milhões de pessoas. A falência das empresas continua batendo recordes. O PIB não desencanta. As exportações não deslancham. A paciência parece começar a oferecer sinais de esgotamento.
E agora a notícia que vem do setor cambial ameaça estragar a festa que se planejava para o encerramento do ano. Afinal, como dizem os releases oficiais desesperadamente espalhados pela área de comunicação do Ministério da Economia, a inflação está sob controle e a taxa SELIC em um patamar efetivamente reduzido. Mas isso é pouco e o dólar continua incomodando. A combinação da tensão internacional nas relações comerciais entre China e Estados Unidos vem se somar à falta de perspectivas na retomada dos investimentos por aqui. O capital especulativo dobra sua aposta e exige ainda mais de Paulo Guedes.
É uma tremenda bobagem chamar de “mercado livre de câmbio” um setor dominado por poucos gigantes do mundo das finanças. Os agentes que vendem e compram divisas internacionais por aqui não apresentam nenhuma semelhança com o mercado da batatinha. Utilizam-se de seu poder de fogo e de sua intimidade com o poder para forçar o governo a queimar o estoque de reservas internacionais e facilitar seus ganhos nas operações de compra e venda de divisas. O Brasil chegou a acumular US$ 390 bilhões nessa conta e a incapacidade do governo já queimou quase US$ 25 bi em pouco mais de um mês.
Interessante é ver como essa mesma grande imprensa trata a cotação do câmbio no momento atual. Se fosse uma conjuntura em que o governo estivesse com algum projeto de natureza inclusiva ou desenvolvimentista, já poderíamos imaginar o bombardeio. Mas no caso atual, o ocupante do comando da economia é tratado com enorme condescendência e reverência. Afinal, ele está fazendo o seu dever de casa e não merece nenhuma linha de crítica.
O dólar bate todos os recordes e se aproxima perigosamente de R$ 4,30. Porém, esse fato é tratado com aparente normalidade. Os analistas de plantão inclusive se esforcem ao máximo para tecer loas à capacidade técnica e profissionalismo da equipe de Guedes. Afinal, eles estariam mesmo realizando um esforço hercúleo para impedir que a taxa de câmbio exploda de vez. Afinal, se fosse com Haddad, ela provavelmente estaria acima de R$ 5,00. Uma loucura! Uma mistura de canalhice com desvario.
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Primeiras rachaduras na armadura do ministro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU