02 Outubro 2019
Interessadas em ocupar um espaço estratégico na arena política sobre crianças e adolescentes, dezenas de igrejas tentarão eleger representantes nas eleições para os Conselhos Tutelares, que ocorrerão em quase todos os municípios brasileiros, em 6 de outubro.
A reportagem é de João Fellet, publicada por BBC Brasil News, 01-10-2019.
Entre os temas que mobilizam as entidades está o controle da abordagem de questões de gênero e sexualidade nas escolas.
A disputa opõe católicos e evangélicos, e espelha o crescimento de igrejas protestantes no Brasil. Uma busca feita no Facebook revela dezenas de candidatos, de todas as regiões do Brasil, que se apresentam como pastores evangélicos — a maioria de igrejas em bairros periféricos. Alguns citam passagens bíblicas no material de campanha.
As eleições são abertas a todos os eleitores. Como o voto é facultativo, candidatos apoiados por organizações capazes de engajar eleitores, como igrejas, saem na frente.
A ofensiva preocupa entidades de defesa de direitos de crianças e adolescentes, que temem a transformação dos órgãos em instâncias religiosas e em trampolins políticos.
Uma das denominações evangélicas envolvidas nas eleições para os conselhos é a Igreja Universal do Reino de Deus. Em 15 de setembro, a igreja publicou em seu site um artigo intitulado "Conselho Tutelar: é nosso dever participar".
"Talvez nunca na história da humanidade crianças e adolescentes tenham precisado tanto de quem defenda seus direitos, que dia a dia são desrespeitados pela mídia que expõe material inapropriado, pelos maiores de idade que os agridem de alguma forma e até pelas próprias famílias que não suprem suas necessidades básicas", diz a Universal.
O texto exorta os fiéis a votar em candidatos "que, acima de tudo, tenham compromisso com Deus".
Procurada pela BBC News Brasil, a Universal não quis responder a perguntas sobre a eleição e questionou se a reportagem também citaria o papel da Igreja Católica no pleito, enviando em anexo um texto do jornal da Arquidiocese de São Paulo.
No texto, publicado em agosto, a coordenadora arquidiocesana da Pastoral do Menor em São Paulo, Sueli Camargo, conclama os católicos a participarem da eleição para frear o avanço evangélico nos conselhos.
"Quando nos ausentamos, deixamos espaço aberto para outras denominações religiosas, como os evangélicos, que estão presentes não só nos conselhos, mas em diversos campos da política e nem sempre estão preparados para ocupar esses cargos", afirmou Camargo ao jornal.
Busca no Facebook revela dezenas de candidatos a conselheiro tutelar que se apresentam como pastores ou usam passagens bíblicas no material de campanha.
Questionada pela BBC sobre a declaração, Camargo diz não se opor à presença de qualquer evangélico nos conselhos. "O problema é quando essa atuação faz o conselho perder sua essência, que é a defesa da criança", afirma. Segundo ela, muitos candidatos evangélicos encaram os conselhos como "trampolim político" para outros cargos eletivos.
Quanto à abordagem de temas sexuais e de gênero nas escolas, no entanto, Camargo afirma que candidatos católicos têm visões parecidas com as dos evangélicos. "Também somos contra essa ideologia que é pregada", diz ela, sem detalhar a que ideologia se refere.
Camargo diz que a Arquidiocese de São Paulo tem incentivado a participação de leigos católicos na eleição, formando candidatos e estimulando o voto dos fiéis. Segundo ela, porém, a Arquidiocese não pede votos para candidatos nem indica padres para os cargos.
Criado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, o Conselho Tutelar é um dos principais órgãos de democracia participativa no Brasil.
Entre suas atribuições está notificar o Ministério Público sobre violações de direitos de crianças e adolescentes, solicitar a troca de guarda familiar e fiscalizar as políticas públicas para menores. Em cada município brasileiro há pelo menos um conselho, composto de cinco membros eleitos.
São Paulo, maior cidade do país, abriga 52 conselhos tutelares, com 260 integrantes ao todo.
O mandato dos conselheiros dura quatro anos, e eles recebem salários definidos pelas Câmaras de Vereadores (cerca de R$ 1,5 mil por mês em média, segundo dados o — hoje extinto — Ministério do Trabalho e Emprego).
Alguns municípios submetem os candidatos a uma prova e exigem experiência no atendimento a crianças e adolescentes. Em muitos outros, porém, basta que os candidatos morem no município, tenham mais de 21 anos e "reconhecida idoneidade moral".
Em vários aspectos, a campanha para conselheiro tutelar se assemelha a uma disputa por cargos legislativos. Candidatos criam páginas em redes sociais para pedir votos, divulgar atividades de campanha e exibir vídeos com apoiadores ilustres.
Muitos que se elegem como conselheiros posteriormente concorrem a vereadores, e é comum que vereadores recompensem cabos eleitorais apoiando-os na disputa para conselheiros. As práticas não são ilegais.
Especialistas em direitos de crianças e adolescentes dizem que conselheiros movidos pela fé ou por interesses políticos podem causar mais danos por omissões do que por ações de sua autoria. Isso porque várias de suas decisões precisam do aval do Ministério Público e da Justiça para serem concretizadas, o que limita o poder dos conselheiros.
Por outro lado, caso deixem de agir em casos que avaliem contrariar suas crenças religiosas — como o de crianças vítimas de homofobia nas escolas —, eles podem perpetuar cenários de violação de direitos. Nessas situações, caso se comprove que descumpriram as funções, os conselheiros podem sofrer sanções e até perder o cargo, embora isso raramente ocorra.
Não há dados sobre presença de religiosos em conselhos tutelares hoje. Entidades que militam em prol de crianças e adolescentes dizem que, embora organizações religiosas tenham sempre participado das eleições, o fenômeno vem se intensificando à medida que igrejas evangélicas expandem sua atuação política e tentam ocupar espaços em vários órgãos públicos.
Valnez de Freitas concorre com o nome Pastor Valnez a uma vaga de conselheiro no município de Pacatuba, na Grande Fortaleza. Formado em Teologia e servidor na área de saúde, ele atua como pastor há 11 anos na Assembleia de Deus Ministério de Sião de Pacatuba.
"Me sinto habilitado para atuar como conselheiro tendo em vista as demandas que surgem dentro da comunidade evangélica em relação a crianças, como denúncias, abusos, violência e evasão escolar", diz o pastor à BBC News Brasil.
Valnez afirma que uma de suas funções será fiscalizar o que as escolas de Pacatuba ensinam sobre sexualidade. "Nós, do segmento evangélico, entendemos que as escolas não devem impor assuntos como ideologia de gênero e sexualidade. Esses assuntos cabem aos pais e à família", ele diz.
O combate à chamada "ideologia de gênero" é uma das principais bandeiras da bancada religiosa no Congresso. O grupo avalia que a abordagem de temas sexuais e de gênero entre crianças pode antecipar a vida sexual dos alunos e estimulá-los a adotar comportamentos que, segundo a bancada, agridem valores cristãos, como a homossexualidade e a transexualidade.
Já defensores da inclusão dos temas os consideram essenciais para conscientizar alunos sobre questões como ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e a gravidez precoce, além de combater a homofobia e a transfobia entre jovens.
Conselheiros que reprovem o conteúdo das aulas podem pedir ao Ministério Público que verifique se a escola está descumprindo o ECA por oferecer conteúdo impróprio. Se houver concordância, a Justiça pode ser acionada para decidir sobre o caso.
O ECA não especifica que tipos de conteúdo se enquadram na categoria de impróprios, mas há o entendimento de que materiais pornográficos ou que promovam a violência são inadequados para crianças e adolescentes.
Juristas ouvidos pela BBC afirmam que as restrições não se aplicam a beijos e demonstrações de afeto entre homossexuais, e que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a homofobia um crime equivalente ao racismo em junho.
Em artigo de 2017 na Revista de Gênero, Sexualidade e Direito, o advogado Sérgio Pessoa Ferro, mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, analisou como conselheiros tutelares de Juazeiro (BA) trataram casos relacionados à diversidade sexual e de gênero em 2010 e 2011.
Ferro diz que muitas famílias acionaram o conselho para reprimir condutas de filhos que destoavam da "moralidade popular cristã". Segundo ele, houve casos em que os pais procuraram conselheiros "para 'curar' os(as) filhos(as) da homossexualidade, do comportamento afeminado ou masculinizado".
O advogado diz que, nessas situações, os conselheiros deveriam identificar que as crianças estavam sendo discriminadas pelos pais e mediar os conflitos familiares. Mas ele afirma que temas que envolvam gênero e sexualidade são vistos como um tabu pelos conselheiros, o que os impediu de encontrar soluções para os casos.
Segundo Ferro, a formação "explicitamente preconceituosa de alguns (conselheiros)" é empecilho "à adoção de uma política de combate às situações de violência por motivo de LGBTfobia".
Em 2017, a apresentação da drag queen Femmenino em um colégio de Juiz de Fora (MG) motivou protestos do conselheiro tutelar Abraão Fernandes, que pediu ao Ministério Público que investigasse o caso. Ele citou um vídeo, gravado dias após a apresentação na escola, em que Femmenino dizia buscar "destruir a família tradicional".
Segundo o conselheiro, no vídeo, a drag queen deixou "transparecer a questão da ideologia de gênero ao dizer que não existe brinquedo de menino e de menina", além de ter ofendido "crianças que são parte de uma família".
O caso teve uma reviravolta um ano depois, quando o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente pediu o afastamento do conselheiro por descumprir normas do cargo e disseminar conteúdo "racista, homofóbico, preconceituoso, machista e político-ideológico" em suas redes sociais.
O Ministério Público encampou a ação. Fernandes foi destituído do cargo e condenado por improbidade administrativa. Em artigos, ele agradeceu "igrejas evangélicas e católicas" que o apoiaram no processo e disse ter sido condenado por "defender crianças do assédio psicológico e da ideologia de gênero".
Para Glícia Salmeron, presidente da Comissão Especial da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), conselheiros que usem os cargos como trampolim político devem ser afastados pela Justiça — assim como conselheiros que, por motivos religiosos, deixem de agir em casos de homofobia ou transfobia contra jovens.
"A gente percebe uma dificuldade de compreensão de que o conselheiro precisa se desvincular de sua função religiosa pra assumir a função de conselheiro tutelar", afirma. Ela diz que igrejas podem indicar candidatos ao conselho, "mas não para ensinar religião ou doutrinar as crianças".
Salmeron menciona outro tipo de omissão ligado a questões religiosas com que já deparou: conselheiros que se recusam a agir para proteger crianças discriminadas por integrar religiões afrobrasileiras. "Não me lembro de nenhuma denúncia feita por conselheiros tutelares com relação à violação de direitos de crianças de comunidades de terreiro", afirma.
Evangélico, Jaziel dos Santos Ferreira é um dos três aspirantes ao Conselho Tutelar da região oeste de Goiânia a adotar termos religiosos na ficha de candidato. Nas cédulas, seu nome aparecerá como Irmão Jaziel — Deus é fiel (os outros candidatos a usarem nomenclatura religiosa são Pastor Julio e Pastor José Roberto).
Em sua página do Facebook, Ferreira divulga vídeos em que pastores de Goiânia endossam sua candidatura. Segundo ele, mais de 60 líderes de igrejas evangélicas estão engajados em sua campanha. Ferreira não é pastor, mas diz que sua família fundou há 34 anos a Assembleia de Deus Faiçalville Ministério Vila Nova, o que lhe deu credibilidade junto a muitos líderes religiosos de Goiânia.
Ele diz ter trabalhado por 20 anos numa ONG que promovia oficinas de informática entre crianças pobres. Como conselheiro, diz que pretende estimular atividades esportivas em comunidades carentes. "Muitos craques saem do campo de terra", afirma.
Ferreira é crítico à abordagem de temas sobre diversidade sexual nas escolas, por avaliar que os conteúdos podem estimular jovens a antecipar sua vida sexual e a mudar de gênero. "A criança está em formação, não se pode incentivá-la", diz.
Mas ele afirma que, se eleito conselheiro, não fechará os olhos para casos de homofobia contra jovens. Negro, Ferreira diz ter sofrido com apelidos racistas na infância, experiência que o sensibilizou para outros tipos de discriminação. "Não é porque um menino é, entre aspas, mais afeminado que ele pode sofrer bullying. Não concordo, temos de respeitar."
Ferreira tampouco concorda com outras pautas caras a setores da direita brasileira, como a do Movimento Escola Sem Partido. Acusado por críticos de promover a censura, o movimento defende controlar o conteúdo político das aulas para impedir que os alunos sejam "doutrinados ideologicamente".
Para Ferreira, porém, não cabe à escola restringir o debate político. "Se Deus que é Deus nos deu o livre arbítrio, na política é da mesma forma: a pessoa vai para onde achar que é melhor", afirma.
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A batalha entre católicos e evangélicos pelo domínio dos Conselhos Tutelares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU