05 Março 2019
O STF está prestes a julgar antiga ação do PSL para liberar a apreensão de crianças e adolescentes em situação de rua para “averiguação”, escreve Rodrigo Martins, jornalista, em artigo publicado por CartaCapital, 04-03-2019.
Passado o Carnaval, o Supremo Tribunal Federal vai debruçar-se sobre uma peculiar ação movida pelo PSL, o partido do presidente Jair Bolsonaro, contra dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecido pela sigla ECA. Apresentada em 2005, a petição solicita que a Corte declare inconstitucionais os artigos 16 e 230 da Lei nº 8.069/90, justamente aqueles que impedem a detenção de menores para averiguação ou por motivo de perambulação nas ruas.
Numerosas entidades de defesa dos direitos humanos, como Conectas e Fundação Abrinq, pediram para participar do julgamento na condição de amicus curiae. À época, tal mobilização talvez fosse desnecessária. Desde o nascedouro a ação parecia fadada ao fracasso, uma vez que as prisões para averiguação, tão comuns na ditadura, não são admitidas pela Constituição de 1988 nem mesmo para enquadrar os adultos, que só podem ser detidos em flagrante de crime ou por expressa ordem judicial.
O tempora, o mores! Diante dos recorrentes ataques ao Estado Democrático de Direito no Brasil, é preciso pôr as barbas de molho. Quem se levantaria contra a legalização de uma nova arbitrariedade? Na Justiça paulista, felizmente, dois promotores e uma juíza desempenharam esse papel após o Shopping Pátio Higienópolis, reduto de paulistanos endinheirados, pleitear o direito de apreender crianças e adolescentes desacompanhados dos pais para entregá-los ao Conselho Tutelar ou à Polícia Militar. Não que os estudantes dos colégios particulares da região estivessem a perigo. Os alvos eram bem definidos: menores em situação de rua, que pediam esmola ou praticavam atos de vandalismo, furtos e “intimidação aos frequentadores”.
Em seu despacho, a promotora Maria Fernandes de Lima Esteves, da Vara da Infância e da Juventude, manifestou-se pela extinção da ação. Segundo ela, a apreensão de crianças e adolescentes é competência da polícia, não pode ser delegada a terceiros. Se constatada a prática de um ato infracional, bastaria chamar a autoridade policial para tomar as providências. Ao analisar o caso, a juíza Monica Gonzaga Arnoni acrescentou:
“Considerando que o pedido de autorização para apreensão também engloba os menores que não estejam na companhia de seus pais ou responsáveis e que estejam se colocando em situação de risco, bem como os frequentadores ou, ainda, esmolando nas dependências do empreendimento, objetiva o autor, em verdade, um salvo-conduto para efetivar no estabelecimento uma genuína higiene social”.
A magistrada tem razão. Nenhuma autoridade judicial se arriscaria a ordenar a apreensão de um menor por mendicância, que não é crime, muito menos ato infracional. Se o fizesse, estaria desrespeitando o direito constitucional de ir e vir, além de cometer um delito previsto no artigo 230 do ECA, transcrito a seguir na íntegra: “Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita de autoridade judiciária competente. Pena: detenção de seis meses a dois anos. Parágrafo único: Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais”.
É justamente esse ponto que o PSL deseja suprimir do ECA, uma espécie de salvaguarda para os seguranças de estabelecimentos comerciais que precisam lidar com os “ameaçadores” garotos. “Se o shopping quisesse tratar a questão com seriedade, poderia fazer parcerias com organizações sociais para que educadores realizassem a abordagem dessas crianças e encaminhamentos em conjunto com os Conselhos Tutelares, Varas da Infância e Juventude, Secretaria Municipal de Assistência Social, visando o estabelecimento dos vínculos familiares, frequência escolar e em programas de educação por tempo integral, para que saiam da situação de risco, de exclusão social e de trabalho infantil”, detalha o advogado Ariel de Castro Alves, integrante do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo. “Da forma como desejam atuar, o objetivo parece ser mesmo o de marginalizar e excluir esses garotos, o de ‘limpar’ o shopping. A juíza deu uma aula de Estatuto da Criança e do Adolescente.”
Após o episódio, o Ministério Público de São Paulo instaurou um inquérito civil para verificar a formação dos seguranças de empresas privadas de vigilância, com vistas à efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes. “Temos relatos de abusos praticados contra menores em outros shoppings. Não podemos permitir a repetição da tragédia que aconteceu no Rio de Janeiro”, afirma o promotor Eduardo Dias de Souza Ferreira, em alusão à morte de um jovem por um segurança da rede de Supermercados Extra. Ele também abriu um inquérito para apurar a efetividade da política municipal de assistência social direcionada para as crianças e adolescentes em situação de rua, mas não consegue conceber a legalização da prática de apreender menores para averiguação ou por motivo de perambulação. “Desde 1988, ninguém pode ser detido para averiguação porque a Constituição, em seu artigo 5º, veda tal prática. O problema da população infantil em situação de rua é sério, mas fruto da absoluta ineficiência dos órgãos de proteção e acompanhamento.”
Ao se manifestar sobre o assunto, o Pátio Higienópolis pediu “sinceras desculpas por gerar qualquer tipo de interpretação contrária à intenção de proteger os menores desacompanhados”. O shopping, vale relembrar, já foi acusado de racismo há dois anos, quando o jornalista Enio Squeff, branco, tomava chá com o filho Raul, de 7 anos e negro, e foi interpelado por uma funcionária, que lhe perguntou se o garoto “estava incomodando”. À época, o estabelecimento lamentou o ocorrido e disse que “reorientou a colaboradora envolvida”.
O PSL, por sua vez, mantém firme a determinação de facilitar a apreensão de menores por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) interposta há 14 anos. “Entendemos que toda criança precisa ser repreendida quando faz algo errado”, justificou o partido, em recente nota enviada ao jornal O Globo. Um erro como pedir esmola ou vagar pelas ruas? Embora Bolsonaro não estivesse filiado ao partido em 2005 e não tenha defendido publicamente a iniciativa, seria uma grande surpresa se ele se manifestasse contra. Em plena campanha presidencial, ele chegou a dizer que o ECA deveria “ser rasgado e jogado na latrina”. “É um estímulo à vagabundagem e à malandragem infantil”, acrescentou o então candidato, defensor da redução da maioridade penal para 14 anos. Conforme a agenda proposta pelo ministro Dias Toffoli, o julgamento da Adin está previsto para 13 de março.
Esse não é, porém, o único indicativo de como o atual governo pretende lidar com os indesejáveis. No início de fevereiro, o Ministério da Saúde publicou uma nota técnica que abre brechas para o retorno dos manicômios e seus medievais procedimentos terapêuticos. Com novas diretrizes para as políticas de saúde mental, o documento prioriza as internações psiquiátricas em detrimento dos serviços ambulatoriais de base comunitária, além de permitir a volta do eletrochoque. Libera ainda a internação de crianças e adolescentes nos mesmos espaços destinados aos adultos.
Na prática, esse novo documento aprofunda as diretrizes lançadas em 2017 pelo governo Temer. Já naquela época, o ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, juntou-se a outros colegas para divulgar um manifesto contra a reformulação. “Por trás desse pensamento, bastante disseminado na sociedade, há uma visão distorcida, da loucura como ameaça. Quem sofre algum distúrbio psíquico é visto como um desvio da norma, alguém que precisa ser afastado do convívio social”, disse à CartaCapital, lembrando que os hospitais psiquiátricos funcionavam como verdadeiros depósitos humanos até serem desativados pela política antimanicomial. “Ainda prevalece uma visão bastante preconceituosa, semelhante àquela que vemos contra pacientes com hanseníase ou tuberculose. Mas a solução não é encarcerar os indesejáveis.”
Não bastasse, o “pacote anticrime” apresentado por Sérgio Moro, ministro da Justiça de Bolsonaro, propõe o recrudescimento das penas e cria obstáculos para a progressão penal. O projeto estabelece que, se o condenado por qualquer crime for reincidente, o regime inicial da pena será o fechado. Isso também valerá para os sentenciados por crimes como peculato, corrupção e roubo. Os sentenciados por crimes hediondos também não têm direito a saídas temporárias, salvo para tratamento médico ou em caso de morte de parente – direito recentemente negado em duas instâncias ao ex-presidente Lula, vale registrar.
O Supremo, no entanto, já declarou inconstitucionais regras semelhantes previstas na Lei de Crimes Hediondos, aprovada em 1990. Um dos parágrafos desta lei estabelecia que a pena para condenados por crimes graves deveria ser cumprida integralmente em regime fechado. Relator de um habeas corpus sobre o tema, o ministro Marco Aurélio Mello apontou que a obrigatoriedade do regime fechado conflita com a garantia da individualização da pena, prevista no artigo 5º, XLVI, da Constituição. Desde 2006, a regra não tem mais validade.
Pesquisas do Instituto Sou da Paz demonstram que cerca de 40% dos projetos apresentados a cada ano pelos deputados federais com o objetivo de melhorar a segurança pública buscam tipificar um novo crime ou aumentar a pena de um já existente. “O resultado observado não é a diminuição da violência, mas sim a superlotação e a perda de controle dos presídios de todo o País”, diz a ONG. De fato, se cadeia resolvesse, o Brasil seria uma das nações mais seguras do mundo. O número de detentos passou de pouco mais de 90 mil, em 1990, para 726,7 mil em junho de 2016, segundo o último levantamento divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional. Trata-se da terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
O encarceramento em massa não foi capaz, porém, de trazer pacificação social. Apenas em 2017, o País registrou 63.880 mortes violentas, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número é quase 17 vezes superior aos 3.804 civis mortos no Afeganistão no ano passado, segundo um balanço recém-divulgado pelas Nações Unidas. Os talebans e insurgentes do Estado Islâmico precisariam de uma década para produzir o mesmo número de cadáveres contabilizados no Brasil em apenas um ano.
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Partido de Bolsonaro quer mudar ECA para liberar apreensão de menores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU