20 Setembro 2019
Carla Akotirene, autora de Interseccionalidade, pela Coleção Feminismos Plurais, escreve um artigo especial sobre os 30 anos do conceito.
"O socorro do movimento antirracista vem à procura da raça, ao se deparar com gênero desconsidera a multidimensionalidade do acidente e da vítima mulher. De tal modo, mulher negra gendrificada, é quem produz, sozinha, as condições ancestrais de se levantar contra os impactos coloniais, políticos e jurídicos", escreve Carla Akotirene, pesquisadora e ativista, em artigo publicado por CartaCapital, 18-09-2019.
Há 30 anos a pensadora negra estadunidense Kimberlé Crenshaw não previu o quão longe o seu termo interseccionalidade viajaria nas ciências humanas e pautas identitárias. Ao sistematizar o “conhecimento situado de mulheres negras” como instrumento normativo, propôs a interseccionalidade como uma sensibilidade hermenêutica no campo da teoria crítica feminista de raça, sobre em quais condições jurídicas, estruturais e subjetivas, mulheres negras poderiam ser representadas por si mesmas e compreendidas nos tribunais.
Contudo, a interseccionalidade vem atravessando o século XXI disputada no léxico, em escala global por movimentos identitários, grupos acadêmicos, programas de governos, à revelia da capacidade heurística contestar perdas das garantias fundamentais do grupo particular.
Afinal, é através da interseccionalidade que os Estados-nações assumiriam o compromisso signatário de criar leis e políticas públicas em atenção à Conferência Mundial de Durban, África do Sul, em 2001, para combaterem o racismo, à discriminação racial, às violências correlatas, à intolerância e xenofobia.
Ajustando logo o compromisso decolonial feminista negro ante os epistemícidios projetados do Ocidente frente ao Outro, a meu ver, quaisquer políticas de identidade, necessita, metodologicamente, situar a matriz de poder colonial moderna, manifesta naquela ocupação ilegal, depredação, repartimento do continente africano, tráfico de pessoas, expropriação de riquezas, ódio religioso, violências militar, doméstica e sexual, exploração infantil e nacionalismos, de modo que identidades, são antes, permanências do colonialismo ao qual elas não conseguiriam ser idênticas.
Kimberle Crenshaw, feminista negra que cunhou o conceito Interseccionalidade. (Foto: Divulgação/Wikipédia)
Pautas dos direitos humanos, ou consequente debate a respeito das diferenças que sejam, necessitam compreender que África e seus descendentes na diáspora conhecem mais sobre desumanização de aparências, preconceitos e discriminações, porque vivem o racismo estruturalmente e têm pavimentação discursiva a este respeito.
Má fé pós-moderna, até poderia afirmar, entendendo os deslocamentos epistêmicos da política de tradução, certamente no bojo geopolítico dos conceitos do Norte, vêm subjacentes o repertório afrocêntrico da interseccionalidade, dos anos 2001 para cá. Coincidentemente, período em que os Estados Unidos começaram a guerra contra o terrorismo – após o atentado às Torres Gêmeas – daí a potência sul global terminológica caiu no esvaziamento discursivo financiado pelas agendas ocidentais.
Na conjuntura atual, lutas identitárias emergentes partidas já hegemônicas da Europa e Estados Unidos se articulam anti gordofobia, antibulliny, LGBTIQ brancas, feminismos interseccionais, humanismos ecológicos, absolutamente contra quase todas as subordinações, explorações e iniquidades a que conhecemos, menos contra o racismo patriarcal.
Contrária ao exposto, a jurista empregou a interseccionalidade dispondo-se elucidar a marginalização da categoria raça nas causas de discriminações de gênero e a marginalização de gênero nas discriminações raciais. Em tese, as mulheres negras eram submetidas às perdas dos seus direitos legais, inclusive, nas doutrinas antidiscriminação, pois os movimentos antirracistas e feministas inobservavam a raça aplicável apenas aos homens negros, bem como a categoria gênero às mulheres brancas.
Se o direito informa classe e a justiça é informada por raça teríamos insumos jurídicos falhos por contradição dos próprios movimentos antirracista e feminista, que lutavam um de costas para outro, endossavam os tribunais às recusas das queixas apresentadas por mulheres negras, aonde a discriminação racial sofrida por elas, para ser entendida juridicamente implicaria numa experiência de gênero a que somente brancas poderiam falar.
Tal experiência interseccional da identidade exigia das mulheres negras a decisão de hierarquizar, em separado, as duas causas de racismo e sexismo, invés de articulá-las juntas. O emblemático caso da General Motors responde o porquê de até década de 60 a multinacional alegava improcedência do racismo visto como os homens negros estavam empregados na linha de montagem. A denúncia de sexismo caia no descrédito quando a acusada provava a oferta e preenchimento de vagas por mulheres brancas nos serviços administrativos.
Doravante, a inelegibilidade das mulheres negras às vagas de emprego compunha os argumentos da escolaridade baixa, função específica, perfil corpóreo e salários ofertados, apreciados de modo relevante nas lógicas de reestruturação produtiva, ao contrário do racismo e do sexismo que seguiam institucionalizados para obstaculização do grupo ao mercado de trabalho e posteriores sistemáticas dos tribunais, ausentes da abordagem interseccional, induzindo o direito advogar em prejuízo das vítimas.
A socióloga brasileira Lélia Gonzalez, fundamental pensadora feminista negra. (Divulgação)
Além da proponente, Kimberlé Crenshaw, prefiro as metáforas de acidentes para a aplicação prática da interseccionalidade. Opto “amefricanizar” a retórica análoga à Lélia Gonzalez, usando a encruzilhada como o lugar multideterminado dos trânsitos de raça, classe, gênero, sexualidade, fluxos e sobreposições de acidentes identitários. As mulheres negras são frequentemente vitimadas por estarem mais vezes posicionadas nas avenidas da diferença, interdependência e interação estruturais.
Inevitavelmente, o socorro político da cosmo-visão ocidental agrava o estado social duma vítima enxergada diferente da mulher universal e os seus sentidos de humanidade sequer serem auferidos. A mulher negra na avenida do acidente não pode contar com a assistência feminista, pois que a raça retira as condições do socorro, as ferramentas trazidas são brancocêntricas.
Por sua vez, o socorro do movimento antirracista vem à procura da raça, ao se deparar com gênero desconsidera a multidimensionalidade do acidente e da vítima mulher. De tal modo, mulher negra gendrificada, é quem produz, sozinha, as condições ancestrais de se levantar contra os impactos coloniais, políticos e jurídicos.
Exu, voz ancestral da cultura yorubá, movimenta as avenidas e alimenta-se na encruzilhada, razão dele próprio preferir a oferenda analítica interseccionalidade, essa demonstração cruzada preparada durante as dinâmicas das mulheres negras e na ética de cuidado com os Outros acidentados, também, no trânsito das avenidas e seus respectivos eixos de subordinação sexual, de classe, território e etc.
Publicado em 1989, o artigo Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics, discutiu a marginalização submetida às mulheres negras em sua experiência interseccional, comprovadamente maior que a soma do racismo e sexismo, ou seja, da mera análise de classe trabalhadora. O ressarcimento da intelectualidade ancestral aparece de Kimberlé Crenshaw a Sojourner Truth, pensadora não alfabetizada, pioneira do feminismo negro, cuja leitura interseccional, em 1851, na Convenção dos Direitos da Mulher, Ohio, discursou: “Eu não sou uma mulher?”
Sojourner Truth: ‘Eu não sou uma mulher?’. (Divulgação)
Se os patriarcas racistas impediram o povo negro de ler, jamais conseguiram manipular a voz improvisada da feminista abolicionista Sojourner Truth. Ela antecipou até a filósofa francesa Simone de Beauvoir, em 1949, no livro Segundo Sexo, a propósito da mulher torna-se culturalmente o “outro.” A pensadora interseccional indagou ao público o seu sexo, descredenciando o determinismo e presunções biológicas quanto marcadores fixos da identidade universal das mulheres, heterossexuais, produzidas e interpretadas pela visão branco patriarcal.
A identidade religiosa da oradora desmitificou a onipotência do Deus masculino, segundo o qual, ela disse que à luz coube à mulher. Dezesseis anos antes de Marx teorizar a categoria trabalho, imersa na exploração e devir socialista, brilhantemente, Sojourner Truth tinha sugerido o parto da mulher negra, trabalho produtivo e reprodutivo, somado àqueles pesados, feitos apenas por homens negros e mais a escravização, como significantes do capitalismo, que diga-se de passagem expõe o lucro mediante racismo e sexismo. Afinal, crianças negras foram produzidas, vendidas, retiradas da propriedade da mãe preta e da maternagem obrigatória.
Ao declarar nunca ter sido ‘ajudada a pular poças de lama ou subir nas carruagens’, Sojourner Truth indicou a categoria gênero, antes do movimento feminista escolhê-la como descritiva e analiticamente central, na segunda onda feminista, explicativa das relações de poder entre homens e mulheres isolada da raça, respondendo a opressão patriarcal experienciada pelas mulheres brancas da classe média.
É Sojourner Truth quem sugere articulação de agendas mistas, dizendo-se lutar pelo sufrágio e abolicionismo, clamando norte e sul estadunidenses nos efeitos de libertação política das mulheres e dos negros, marco revolucionário! Lógico, perspectivas anteriores ao termo interseccionalidade nos fazem citar Frances Beal, em 1969; Lélia Gonzalez, em 1983; Glória Anzáldua, em 1984; Angela Davis, em 1981; bell hooks, em 1981; Audre Lorde, em 1984. E o Coletivo Combahee River, em 1974, na lesbianidade das feministas de cor declararem: comprometidas a lutar contra a opressão racial, sexual, heterossexual e classista, e que nossa tarefa específica é o desenvolvimento de uma análise e prática integradas baseadas no fato de que os sistemas maiores de opressão se interligam.
No Brasil, institutos de pesquisa alheios às contribuições interseccionais vêm do contexto anterior, de apagamento epistêmico feminista negro, é preciso admitir; ambos além do mais, movimento feminista e movimento antirracista, juntos, incidem nos altos índices de violência doméstica e feminicídios, haja vista esperam que o Estado crie metodologias aplicáveis à experiência das mulheres negras sem a coparticipação teórico-metodológica destas.
O movimento negro omisso às masculinidades violentas por um lado, as pesquisadoras brancas usando teorias e prestígios acadêmicos na instrumentalidade dos governos sobre gestão, implantação e avaliação de políticas para as mulheres, refletem desleituras sinalizadas em Kimberlé Crenshaw, 30 anos atrás.
A Lei Maria da Penha, instrumento jurídico de 2006, está longe de ser interseccional. Fruto da conquista de gênero articulada pelas feministas brancas homenageia a farmacêutica branca vítima do professor universitário Viveros, reconhecendo obviamente, o patriarcado estruturado, aberto a todas as mulheres, excluindo sua atenção na prática às vítimas em situação de rua.
Grosso modo, aplicar privação de liberdade para agressores de mulheres desconsiderando até que ponto os homens brancos negociam a impunidade com as polícias, ajustam identidades patriarcais diante dos juízes, é perigoso, do ponto de vista epistêmico. Ademais, as mulheres negras têm na prisão a marca da escravização moderna, o encarceramento em massa suficientemente abordado pela pesquisadora Juliana Borges auxilia, entendemos, a biopolítica.
Defensoras da Lei Maria da Penha informada de gênero ignoram a Lei de Execução Penal que foi informada por raça, o inverso é aplicável, também. A saber, a prisão não atravessa a experiência branca por meio de classe, seus ilícitos passam impunes e opostos a gênero racializado, que volta e meia sentencia as mulheres negras nas celas. Dos braços do agressor a vítima vai para os braços do Estado após darem fim à violência doméstica por meio dos homicídios. A polícia interventiva sempre o é atendendo a vítima que não seja moradora de território marginalizado. As mulheres negras sofrem coação, ingressam no tráfico de drogas durante as visitas íntimas, por último, lidam com novos agressores feminizados, leia-se genitálias femininas, impositoras de convivências e afetividades violentas nas celas domésticas e sem direito a medida protetiva de gênero.
Some-se ao fato das produções teóricas sobre violência contra a mulher atravessarem a década de 80, logo quando surgiram às primeiras delegacias especializadas de atendimento à mulher, exclusivamente aportadas às autoras brancas do Brasil, Estados Unidos e Europa Ocidental. Qual o resultado político? Diminuição da vulnerabilidade das mulheres brancas e sobressaltados índices de violência contra as mulheres negras na última década.
Desde 1993 Kimberlé Crenshaw publicou Mapeando as margens: interseccionalidade, políticas de identidade e violência contra mulheres de cor, trazendo a interseccionalidade à presença do direito, proteção, migração, abrigamento e políticas públicas, incorporadas pelas especificidades das mulheres negras em dimensão econômico-política cabível, do antirracismo e do feminismo atuarem, mas em virtude disso a marca da branquitude feminista impede as necessidades serem atendidas, conforme ocorre na luta antirracista marcadamente masculinizada.
Ativistas negros reivindicam o fim da violência policial através da luta coletiva contra o genocídio da população negra. Agora, não questionam as masculinidades hegemônicas decididas a espancar, abusar e violentar suas companheiras, obrigando-as a recorrer a polícia, numa contradição infame pouco resolutiva, se avaliadas as chances delas desistirem da marca colonial do Estado nas suas comunidades criminalizadas por raça, ao mesmo tempo, estarem elas suscetíveis de interromper fluxos de trabalhos com o tráfico de drogas por exemplo, sinalizados paralelamente punitivistas contra quem traz os aparelhos repressivos para dentro das comunidades.
Precisamos compreender às duras penas, quiçá, o instrumento político racionalizado, a interseccionalidade, impõe garantias discursivas aos movimentos políticos e ao Estado por meio de governanças, leis e políticas públicas, a fim de alcançarem experiências de grupos extremamente vulnerabilizados.
Se hoje temos condições de executar a política racial na Educação, Saúde, Cultura, Desenvolvimento Agrário, devemos notar ministérios como a SEPPIR - Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, demográfica redistribuição racial das oportunidades implementada pela esquerda, ancorada nas ações pós Durban; os especialistas foram instrumentalizados pela produção intelectual de Kimberlé Crenshaw – Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero, 2002, engajados na luta antirracista, antissexista, não confessional, finalmente, compreendidos na forma das leis e desenho jurídico de como, quais e por onde as políticas públicas setoriais, transversalmente, são efetivadas.
A ex ministra Matilde Ribeiro (a primeira) e Luiza Bairros em seguida, praticamente já no fechamento ministerial com o golpe da direita, impuseram o pensamento feminista negro antirracista à luz da hermenêutica, ali, gestoras e não militantes, igualmente, aos demais ministros das pastas colaterais que precisaram operacionalizar os anseios identitários da interseccionalidade, sensibilidade da jurisprudência que possibilita o Estado, ente regulador das desigualdades sociais, materializar as expectativas de segmentos humanos promovendo a igualdade racial, atravessando instâncias jurídicas, e cooperação técnica.
O Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial; a Lei 10.639/03, no ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana; a titulação das terras das comunidades remanescentes de quilombos; os programas de combate ao racismo institucional; as reservas de cotas raciais para negro, estatuto da igualdade racial; foram possíveis graças ao argumento jurídico e orçamentário, executado a partir da interseccionalidade, a fim dos impactos e efeitos da política universalizada deixarem a cobertura branca pobre masculina e se comprometerem junto aos direitos humanos universalmente, sem as superinclusões e subinclusões descritas por Kimberlé Crenshaw.
Por outro lado, é inaceitável que os direitos sexuais e reprodutivos continuem pautados, de modo cabal no elemento gênero supondo as mesmas condições de aborto clandestino e violência obstétrica para as mulheres. A interseccionalidade sugere desse modo lermos a condição social das negras: pauperizadas, jovens condicionadas a insegurança, porque sem a ferramenta de luta capaz de nos visibilizar, seremos sempre interrompidas, apagadas como a Vereadora Marielle Franco, pela política, Estado, leis e identidade interseccional revelada na avenida da morte. Encruzilhada é lugar de decisão.
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Ferramenta anticolonial poderosa: os 30 anos de interseccionalidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU