27 Agosto 2019
Independentemente do que pensemos sobre Pell, estaremos em desvantagem para avaliar a sua culpa ou inocência e o melhor que fazemos é manter um discreto silêncio.
O comentário é de Michael Kelly, padre jesuíta e CEO da Union of Catholic Asian News – UCAN, agência de notícias católica asiática, publicado por UCA News, 26-08-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O julgamento do dia 21 de agosto dado pelo Tribunal de Apelação Victoriano para o pedido do Cardeal Pell que buscava reverter a sua condenação criminal foi tema de inúmeras manchetes, grande parte das quais bem desinformada.
Os leais defensores de Pell na Austrália – poucos em número, mas bastante barulhentos – ou se uniram contra a condenação ou, como fez o arcebispo de Melbourne Dom Peter Comensoli, apenas professaram a descrença de que o amigo poderia ser culpado de tais crimes.
Internacionalmente, a reação foi ampla, desde comentários razoáveis em alguns círculos a um exagero puro e simples, como no caso de John Allen, de Roma, quem, com pouca ou nenhuma prova vinda da Austrália, aponta para uma “faixa considerável da opinião católica, compreendendo tanto amigos quanto inimigos de Pell, que considera profundamente implausíveis as acusações sobre as quais ele foi condenado”.
Estas opiniões são um tanto problemáticas em se tratando de realidade. E o que considero mais desanimador é o quanto uma negação ficou evidente após o anúncio da decisão do Tribunal de Apelação.
A opinião que tenho é simples: quanto mais tardarem para dar a decisão, mais certeza tenho de que a apelação de Pell será indeferida.
Se o Tribunal de Apelação fosse manter o recurso e considerá-lo inocente – e a primeira coisa que os juízes concordam após terem ouvido a apelação é conversar com quem, entre eles, mantém ou não o pedido –, por que o deixariam na prisão por quase três meses caso achassem que seria libertado?
A questão de fundo é que Pell foi condenado, por unanimidade, diante de um júri. Ou aceitamos que isso é o melhor que o nosso sistema jurídico pode oferecer, ou jogamos fora o júri. E isso não irá acontecer.
O Tribunal de Apelação não pode julgar uma pessoa condenada. Seu único objetivo é ver se há questões de direito cuja violação invalida a condenação ou se a decisão do júri foi “insegura” ou “desarrazoada” com base nas provas produzidas. Todos os três não encontraram questões de direito que tivessem sido violadas e dois não encontraram provas para sustentar uma avaliação “insegura” do veredito.
No artigo intitulado “After the appeal: The tragedy of Cardinal George Pell” (Após a apelação: a tragédia do Cardeal George Pell), disponível no site ABC.net, podemos ver o que o competentíssimo professor Patrick Parkinson tem a falar sobre o processo.
Por razões que considero insondáveis, muitos estão a negar aquilo que são apenas fatos. George Pell é um criminoso condenado.
Junto de muitos outros, me surpreendi quando o condenaram. Conheço-o há 35 anos e nunca o superestimei em sua integridade ou motivações. Mas nem eu achava que a sua depravação se afundasse tanto.
Mas então – ao lado de cada comentador irado com o veredito –, eu nunca ouvi o depoimento em que Pell foi condenado; o juiz, o júri e o advogado ouviram.
O mínimo que podemos fazer, independentemente do que pensemos de Pell, é admitir que estamos em desvantagem para avaliar a sua culpa ou inocência e o melhor que podemos fazer é manter um discreto silêncio.
A negação nas reações de muitos me lembra de uma experiência anos atrás quando fui abordado pelo bispo da Diocese de Maitland-Newcastle, ao norte de Sydney.
Me convidaram para palestrar num encontro diocesano em Newcastle quando a diocese constituía um reduto dos escândalos sexuais clericais e o bispo me pediu para falar sobre “Para onde vamos?”.
Desafiado a saber o que dizer, lancei mão dos cinco estágios que Elizabeth Kubler Ross usou em seu famoso livro “Sobre a morte e o morrer” para abordar a recepção de um diagnóstico terminal.
Propus que a única maneira de superar o primeiro estágio – o da negação – era aceitar que as pessoas que fazem estas coisas são criminosas.
Assim que disse isto, um padre se levantou e falou que eu estava chamando os seus amigos de criminosos, ao que respondi: “Sim, e o fato de você não aceitar justifica o que estou dizendo sobre a negação”.
O abuso infantil resume-se a um abuso de poder e, até onde sei pessoalmente, o cardeal é capaz de recusar o seu poder de um jeito destrutivo. E atesto por experiência pessoal que o cardeal pode agir com indiferença para com a verdade.
O que é abuso infantil? O abuso de poder, as mentiras e o acobertamento para evitar a sua exposição.
Chocado como fiquei com a condenação do cardeal em dezembro passado e com o anúncio em fevereiro, ao refletir sobre o assunto a notícia não me pareceu surpresa. Pode-se ficar chocado sem estar-se surpreso. Mas a minha falta de surpresa se baseava tão só numa convergência de probabilidades.
Uma convergência de probabilidades não é a culpa além da dúvida razoável e isto é o que uma condenação criminal exige. A conclusão a que o júri alcançou com as provas e o depoimento precisa ser uma conclusão além da dúvida razoável.
Uma outra queixa de seus apoiadores diz que Pell estava sendo condenado com base nas provas de uma única pessoa acusadora, ao que a acusação diria que toda condenação por estupro se baseia nas provas e argumentos apresentados por uma única pessoa também.
E é aqui onde os comentadores entram em apuros. Ninguém senão o júri, o advogado e os juízes viram ou ouviram as provas incriminadoras da vítima.
Por que só estas pessoas – juiz, júri e o advogado – viram e ouviram as provas? Por dois motivos: na maior parte para proteger a privacidade da vítima, mas também porque, no momento de prestar depoimento, o Cardeal Pell provavelmente estava enfrentando outras acusações e a promotoria viu que revelar provas demais prejudicaria as suas chances de ter um julgamento justo nos demais assuntos.
A consequência deste processo para nós observadores é simples: ou aceitemos o sistema de júri que pode receber uma apelação (e, neste exemplo, a apelação falhou) ou jogamos fora o sistema de júri.
Como padre australiano, tenho plena consciência das consequências disso tudo entre os fiéis. Cheguei à conclusão de que o melhor que posso fazer é ajudá-los a aceitar a realidade.
Para os padres, isso acontece na cabeceira das camas quando as pessoas estão morrendo. Acontece quando as pessoas são assaltadas pela culpa do que fizeram. Acontece quando os relacionamentos terminam e as pessoas ficam consternadas.
A única tônica é aceitar a realidade brutal.
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A difícil questão do Cardeal George Pell - Instituto Humanitas Unisinos - IHU