22 Agosto 2019
Um painel de três juízes na Austrália confirmou o veredito de culpa contra o cardeal George Pell. Em duas das reivindicações apresentadas por Pell para anular a sentença, os três juízes foram unânimes. Sobre a terceira alegação – a questão-chave da dúvida razoável – a votação foi de dois contra um. Pell já está cumprindo uma sentença de seis anos por abusar de um menor.
A reportagem é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 21-08-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ao anunciar sua decisão, os juízes enfatizaram que acharam confiável o acusador de Pell. No sistema legal anglo-saxão, dá-se uma grande deferência à avaliação de credibilidade do júri. Um tribunal de apelações pode anular uma decisão de primeira instância com base em uma questão de lei, mas raramente reverteria uma condenação com base na avaliação de credibilidade de um júri.
Mas, os juízes foram mais longe, afirmando positivamente que concordavam com o júri em considerar confiável o acusador. Eles também criticaram os advogados de Pell, que queriam apresentar uma animação da cena que os juízes rotularam como “tendenciosa ao extremo”.
O outro fato que ficou óbvio nas declarações dos juízes foi que esses casos de abuso sexual raramente têm uma testemunha corroboradora. Não é assim que o abuso sexual funciona: o perpetrador sempre tenta esconder o crime. O júri quase sempre se depara com uma situação “ele/ela disse”. Raramente há uma arma fumegante que ofereça evidências forenses.
Aqueles entre nós que nunca foram grandes fãs de Pell não podem se deliciar com essa decisão: a tragédia do abuso é cancerígena e afeta não apenas a vítima, mas também outros padres que não abusam de crianças, e também o Corpo de Cristo, mas me parece óbvio que o perpetrador sempre é uma pessoa triste e doente, que deve ser tanto lamentada quanto punida.
Este caso, assim como o do ex-cardeal Theodore McCarrick, deixou os amigos de Pell arrasados. Muitos deles não conseguiram acreditar naquilo que 12 jurados consideraram como confiável. Talvez eles nunca acreditarão.
Depois que o julgamento foi concluído em fevereiro passado, George Weigel, amigo de longa data de Pell, afirmou que é o sistema de justiça criminal australiano que está sendo julgado, e não o cardeal, porque “o caso contra Pell tem sido repleto de implausibilidade e de imperfeição desde o início”. Weigel não ressaltou que ele não estava presente no julgamento em sua totalidade e, mesmo se estivesse, no sistema australiano, a imprensa não tem permissão para ver todas as evidências: apenas o júri, o juiz e o advogado veem todas as evidências.
Agora podemos acrescentar os juízes da apelação, que viram os vídeos dos testemunhos que nenhum dos outros viu. O cardeal ou os seus advogados, contudo, contaram tudo a Weigel, e ele confia neles completamente. A esse respeito, Pell tem sorte: todos nós deveríamos ter um amigo tão leal quanto Weigel.
Weigel não está sozinho. A EWTN – tanto em seu programa “Nightly News” quanto no programa de Raymond Arroyo – mostrou australianos que insistiam que Pell é inocente e que a animosidade pública contra a fé católica era tamanha que a sentença de culpa era tão inevitável quanto injusta.
O editor do LifeSiteNews, John-Henry Westen, pediu uma novena pelo “bem-estar espiritual e temporal e pelas intenções de Sua Eminência George Cardeal Pell”.
Eu espero que Pell nunca tenha feito as coisas de que ele foi acusado, mas a incredulidade de seus amigos se enraíza na sua crença de que a principal causa do abuso sexual clerical é a falta de fidelidade. Se alguém acredita no que a Igreja ensina sobre sexo e age de acordo, então não haverá nenhum abuso sexual. Mas, então, se todos fossem fiéis ao Evangelho, não haveria roubo, nem coerção, nem guerra, nem malícia.
Em certo sentido, obviamente, uma falta de fidelidade está envolvida no abuso sexual clerical – assim como em toda a pecaminosidade humana – mas falta um valor explicativo, e, no caso de Pell, isso não é motivo para lançar críticas ao sistema judicial australiano. Esse sistema é classificado como o 11º melhor do mundo segundo o índice Rule of Law. Os EUA ocupam o 20º lugar. A Austrália não é a Somália.
Com certeza, os defensores de Pell perceberam que muitas das características que admiram em Pell – sua ortodoxia ostensiva, seu vigor indiscutível, seu compromisso com a visão eclesial do Papa São João Paulo II, sua disposição de rejeitar publicamente os críticos e aqueles que são menos apaixonados do que ele pelo catolicismo “muscular” –, todos esses traços também eram evidentes na vida do Pe. Marcial Maciel Degollado.
Os católicos conservadores foram rápidos em abraçar as acusações levantadas contra McCarrick, mesmo sem a sentença de um julgamento. Weigel, por exemplo, nunca deu o benefício da dúvida a McCarrick, a quem ele reconheceu como culpado de “depredações sexuais em série”. Por que ele aceitou as acusações contra McCarrick tão prontamente, enquanto defendia a inocência de Pell?
Nenhum de nós sabe com absoluta certeza o que aconteceu entre Pell e o jovem que alegou que Pell o abusou. É pesado demais pensar que alguém que você admirava fez algo tão maldoso quanto abusar de uma criança. Os amigos de Pell estão experimentando agora o que os amigos de McCarrick experimentaram no ano passado: primeiro, o autoquestionamento sobre por que o mal não foi detectado, seguido pela incerteza na alma de que o fracasso em ver isso faz da pessoa um cúmplice. Essas respostas emocionais não fazem sentido, mas ocorrem de qualquer maneira.
O que aprendemos como Igreja é que o abuso infantil foi perpetrado por aqueles que são conservadores, assim como por aqueles que são liberais, por aqueles que subiram na carreira hierárquica e por aqueles que permaneceram como párocos, por padres altos e baixos, por magros e obesos, que a doença afligiu muitos padres em muitas situações diferentes.
Aprendemos, também, que passos devem ser dados para proteger as crianças e que passos devem ser dados para acabar com a cultura do acobertamento que permitiu que o câncer se alastrasse por tanto tempo.
Meu coração vai ao encontro dos amigos de Pell, mas eles precisam aceitar a realidade: é praticamente impossível, agora, acreditar que Pell seja inteiramente inocente das acusações feitas contra ele. Isso não é nenhuma acusação contra a sua eclesiologia. Isso não tira nada das suas realizações. Mas o mesmo pode ser dito sobre McCarrick. A hipocrisia de tratar esses dois homens de maneira diferente deve parar.
Em vez disso, cabe a todos nós convidar alguns estudiosos em estudos jurídicos comparativos para examinar como sistemas e normas judiciais diferentes interagem com a questão do abuso sexual clerical. A natureza do crime, o fato de a vítima muitas vezes não conseguir admitir o que aconteceu durante anos ou mesmo décadas exigiu que algumas jurisdições pusessem de lado uma pedra angular da jurisprudência do direito comum: a prescrição.
Que outras mudanças na jurisprudência são necessárias? Existem aspectos do modo de funcionamento do sistema australiano que beneficiariam o sistema de justiça dos EUA? Poderia haver melhores práticas que protejam os direitos da vítima e do acusado?
É um dia triste, sem dúvida. Não há vencedores nesses casos horríveis. Devemos esperar que um homem inocente não tenha sido condenado erroneamente. Devemos controlar a arrogância em relação ao sistema e à cultura judiciais australianos e aceitar que a sentença pode ter sido justa. Esse veredito não restaurará a inocência à vítima nem a dignidade a ninguém.
Mas, a menos que haja novas evidências em contrário, e evidências que sejam persuasivas, ou Pell decida recorrer à mais alta corte do país e que ele ganhe o caso lá, devemos aceitar que a justiça foi feita.
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A sentença sobre o caso Pell: vários tons de justiça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU