01 Março 2019
Na quarta-feira, 27, o cardeal George Pell, da Austrália, até recentemente uma das mais altas autoridades do Vaticano, passou sua primeira noite na prisão, após ser condenado em dezembro por quatro acusações de atos indecentes com um menor de 16 anos e de uma acusação de penetração sexual de uma criança. Embora sua sentença final não chegará até o dia 13 de março, e seus advogados estejam recorrendo da condenação, o cardeal decidiu retirar seu pedido de fiança, acreditando que “é apropriado que ele espere pela sentença”.
O comentário é de Jim McDermott, SJ, publicado em America, 28-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Isso ocorre depois que seu principal advogado, Robert Richter, surpreendeu um tribunal lotado durante uma audiência inicial de condenação ao parecer diminuir a gravidade dos atos pelos quais o cardeal Pell foi condenado. Richter disse que, se os atos realmente aconteceram, eles duraram “menos de seis minutos” e constituíram “nada mais do que um mero caso de penetração sexual” (afirmou-se que as pessoas na sala do tribunal se sobressaltaram diante dos comentários de Richter).
Existem elementos no julgamento do cardeal Pell que não se traduzem facilmente para o contexto dos EUA. Até que a notícia da sua condenação fosse divulgada pela imprensa internacional em dezembro, poucos na Austrália sabiam que o julgamento estava acontecendo. Embora grande parte dos procedimentos fosse aberta ao público, os jornalistas foram proibidos de escrever sobre o julgamento de qualquer forma, até mesmo de mencionar que ele estava em andamento, como parte de uma ordem de supressão para impedir que isso afetasse o julgamento dos jurados que acompanham esse caso e o segundo caso de denúncia de abuso que viria a seguir (o segundo caso acabou sendo dispensado no início desta semana, o que levou à suspensão da ordem de supressão e à audiência pública da condenação do cardeal Pell).
Eu passei uma semana em Melbourne no ano passado presente no julgamento; além de um punhado de jornalistas, não havia mais ninguém na plateia, exceto um dia em que um grupo de adolescentes com seus uniformes escolares entrou inesperadamente durante o exame de uma testemunha. Eles se sentaram silenciosamente em uma fileira do pequeno tribunal, e a sua presença foi um lembrete assombroso para todos nós das muitas crianças que foram vitimadas por padres católicos. Eles saíram tão abruptamente quanto chegaram.
O acusador do cardeal Pell nunca esteve presente no tribunal; e o seu nome ou o nome da outra vítima, já falecida, também não são do conhecimento público. O testemunho do homem foi dado via vídeo em uma sessão fechada do tribunal, cujas transcrições não foram – e talvez nunca sejam – divulgadas. Esse é um ponto que vale a pena lembrar; qualquer detalhe que você possa ler sobre como o acusador e seu amigo, ambos com 13 anos em 1996, foram atacados em uma sacristia pelo então arcebispo Pell imediatamente após uma missa dominical na Catedral de São Paulo, em Melbourne, foram obtidos apenas das perguntas feitas a outras testemunhas. pela acusação e pela defesa.
Ninguém além do júri, do juiz, dos promotores e dos advogados de defesa ouviram ou leram o testemunho real da vítima. Na verdade, o júri que condenou o cardeal Pell em dezembro só estava vendo uma repetição do testemunho e das perguntas apresentadas a um júri anterior no caso, que foi dispensado no fim de setembro depois de não ter alcançado uma decisão de 11 contra 1 sobre a culpa do cardeal Pell (a jornalista australiana Louise Milligan publicou um livro sobre o cardeal que inclui um relato dos ataques; um trecho pode ser encontrado aqui [em inglês]).
Nos dias em que a ordem de supressão foi suspensa e a condenação do cardeal Pell foi relatada na imprensa australiana, foram levantadas questões sobre a decisão do júri, dados certos detalhes deduzidos do testemunho contra ele.
Entre eles: o cardeal supostamente abriu suas vestes para se exibir às vítimas (as vestes litúrgicas, de fato, não são abertas, mas são tiradas pela cabeça); ele correu de volta à sacristia imediatamente após a missa dominical, ao contrário da prática padrão de ficar cumprimentando os paroquianos, e fez isso sem a companhia dos sacristães que normalmente estão com ele em todos os momentos; e a porta da sacristia estava escancarada enquanto as crianças estavam sendo atacadas, mas, apesar da movimentação na catedral após a missa, não houve testemunhas do ataque.
Alguns comentaristas na Austrália chamaram o cardeal Pell de “um bode expiatório” da indignação da nação após uma recém-concluída comissão nacional de cinco anos sobre o abuso sexual infantil que trouxe à tona milhares de histórias horríveis de encobrimento e de abuso dentro da Igreja Católica australiana.
Nos Estados Unidos, George Weigel (que revelou que é amigo do cardeal Pell) escreveu no National Review que “o veredito não poderia ser racionalmente alcançado com base nas evidências” e questionou o caso pela falta de uma testemunha que corroborasse a o relato do acusador.
Frank Brennan, SJ, diretor executivo da Catholic Social Services Australia, passou muitos dias no julgamento e escreveu no periódico católico Eureka Street: “Fiquei muito surpreso com o veredito. Na verdade, fiquei arrasado (...) O júri, no entanto, deve ter pensado – como a recente Comissão Real discutiu – que crianças que são sexualmente violadas nem sempre se lembram de detalhes de tempo, lugar, vestuário e postura. Embora o acusador tenha errado todos os tipos de fatos, o júri deve ter acreditado que Pell fez algo terrível com ele”.
Pensar que um júri possa achar difícil levar em consideração o cardeal Pell de modo objetivo não está além de qualquer dúvida. O cardeal esteve ligado a questões de abuso sexual e de acobertamento desde os seus primeiros dias como pároco. No início dos anos 1970, ele viveu com um dos pedófilos em série mais famosos da Austrália, o Pe. Gerald Ridsdale, e participou de uma comissão diocesana que supervisionou a transferência do Pe. Ridsdale para novas paróquias por quatro vezes em cinco anos, mas afirmou que nunca soube de nada dos crimes do Pe. Ridsdale (mais tarde, o Pe. Ridsdale seria condenado por abuso e agressão de 65 crianças).
Nos 1990, como arcebispo de Melbourne, em vez de se unir à resposta nacional da Conferência dos Bispos da Austrália aos abusos, o cardeal Pell anunciou seu próprio programa algumas semanas antes, chamado de “Melbourne Response”. A Comissão Real sobre Respostas Institucionais ao Abuso Sexual Infantil determinou que a "Melbourne Response" desencorajava as vítimas de irem até a polícia, tinha conflitos de interesse que a impediam de atender às necessidades das vítimas e colocava um limite na reparação que o programa da Conferência não tinha, criando uma situação em que não havia coerência de reação em todo o país.
Como arcebispo de Sydney, o cardeal Pell também criaria a “Ellis Defense”, que argumentava que os bens de uma diocese não podiam ser alvo de indenização por abuso perpetrado por qualquer indivíduo. Em um depoimento em 2014 perante a Comissão Real, o cardeal Pell reafirmou a defesa, dizendo: “Se um motorista de caminhão der carona a uma senhora e a molestar, eu não acho que seja apropriado – por ser contrário à política – que o proprietário, as lideranças dessa empresa sejam responsabilizadas”.
Em 2002, o então arcebispo Pell foi acusado de ter molestado um menino de 12 anos em um acampamento da Igreja quando era seminarista. Um inquérito sobre a acusação não encontrou evidências suficientes para acusar o arcebispo Pell, mas o juiz afirmou que, embora o arcebispo “tenha dado a impressão de ser verdadeiro”, ele também descobriu que seu acusador parecia “falar honestamente a partir de uma lembrança real”.
Mais tarde, o Papa João Paulo II elevou o arcebispo ao nível de cardeal. Em 2014, o Papa Francisco promoveu-o ao cargo de prefeito da Secretaria para a Economia, nomeando-o como um de seus assessores no Conselho dos Cardeais em 2013.
O próprio advogado do cardeal Pell disse aos jurados antes de suas deliberações: “Vocês têm que viver na Lua para não terem consciência [da reputação do cardeal Pell]. O arcebispo Pell foi retratado como o Darth Vader da Igreja Católica”. Antes de se retirar para suas deliberações, o júri também foi instruído pelo juiz Peter Kidd: “Esta não é uma oportunidade para fazer do cardeal Pell um bode expiatório pelos fracassos da Igreja Católica”.
Mas simplesmente supor que o veredito contra o cardeal Pell é o resultado de uma tendenciosidade significa partir dos mesmos pressupostos de privilégio que se tornaram um câncer na Igreja. Supõe-se que os membros de um júri, presumivelmente incluindo leigos, não sejam capazes de compreender os detalhes dos assuntos internos da Igreja ou de julgar um alto clérigo com justiça.
Enquanto eu estava na Austrália, fiquei impressionado com o fato de que aqueles com quem eu conversava rejeitavam muito veementemente qualquer suposição de dar um veredito de culpa para punir o cardeal pelo seu pobre tratamento de longa data às vítimas de abuso e suas famílias. Até mesmo as pessoas que eu sabia que eram fortes oponentes do cardeal Pell insistiam que uma falsa condenação não seria uma forma de justiça.
Nada disso serve para dizer que o júri pode não ter entendido errado. Um especialista australiano diz que o cardeal Pell tem uma boa chance de ganhar o recurso.
Enquanto isso, a condenação do cardeal é outro lembrete amargo dos muitos católicos como o seu acusador que passaram décadas lutando para sobreviver – e de outros, como o amigo do acusador e também vítima, que depois morreu de overdose de drogas, fato que sua família acredita que estava ligado ao seu abuso.
Como se tivesse sido escolhido para a ocasião, o Evangelho da terça-feira falava sobre até onde a Igreja ficava aquém do caminho de Jesus: “Jesus sentou-se, chamou os doze e lhes disse: ‘Se alguém quiser ser o primeiro, que seja o último de todos e aquele que serve a todos!’ Em seguida, pegou uma criança, colocou-a no meio deles, e abraçando-a disse: ‘Quem acolher em meu nome uma destas crianças, é a mim que estará acolhendo. E quem me acolher, está acolhendo, não a mim, mas àquele que me enviou’” (Mc 9, 35-37).
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Contexto e história do veredito do cardeal Pell - Instituto Humanitas Unisinos - IHU