26 Julho 2019
Quando o Facebook anunciou a sua irrupção no mundo das moedas digitais com o lançamento de sua criptomoeda chamada 'libra', ele fez no domínio .org um espaço virtual ligado a ambientes e organizações sem fins lucrativos. Ele também fez isso com a ideia de "promover uma comunidade de código aberto", que é um modelo de inspiração colaborativa. Além disso, em sua plataforma, a libra.org lançou uma declaração crítica sobre o atual modelo financeiro, sua fraca adaptação à globalidade e fez um chamado para "transformar a economia global".
Mas será que a mega corporação de Mark Zuckerberg, em associação com outras 27 transnacionais, como Master Card, Paypal, Visa, Uber e outras, decidiu virar a casaca e revolucionar o mundo?
O artigo é de Irene León, socióloga e comunicadora, publicado por Internet Ciudadana, 23-07-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Ou será que, através de uma das maiores encenações já vista, corporações transnacionais, alegando ser parte do mundo associativo, estão movendo suas fichas para não deixar nenhum flanco exposto em seu esforço de controlar o mundo, sem ter que se preocupar com políticas nacionais, pessoas, fronteiras ou órgãos de controle?
Claramente se trata de um movimento desse poder fático decidindo por e para si mesmo, por fora de qualquer consideração democrática, instância ou país; buscando receitas para a reconfiguração financeira mundial, desafiando a banca e até mesmo estabelecendo uma data de vencimento, mas ao mesmo tempo incentivando os bancos centrais a oferecer respaldo à liquidez, especialmente no caso de uma possível corrida global [1] .
Este caso, que contém elementos para grandes reflexões econômicas, é um ótimo exemplo para visualizar a magnitude da batalha política, econômica e geopolítica presente neste contexto de transição para um novo modelo de acumulação capitalista, marcado pelo rearranjo geoeconômico que resulta da influência da inteligência artificial [2] e o estabelecimento de um novo padrão financeiro, materializado pelo dinheiro virtual.
De um ponto de vista sociopolítico, este exemplo também destaca vários aspectos das relações de poder na globalidade, onde transnacionais como o Facebook e suas 27 corporações amigas querem se posicionar como uma frente com capacidade de vencer no contexto de uma “guerra fria tecnológica”, considerada como decisiva para o controle desse novo modelo de acumulação. Assim, sabendo da relevância dos 'big data' para a realização deste novo modelo, percebe-se que além da especulação e comercialização dos dados, busca-se utilizar a influência de ter informações e contatos para se colocar no mercado no pico do poder.
Tanto a inteligência artificial quanto o novo modelo financeiro dependem dos dados e para legitimar a apropriação deles, o consórcio associativo de Libra fala de um “nós”, de um projeto comum com seus entornos “para empoderar bilhões de pessoas” através da reinvenção do dinheiro, argumentando que, por essa via poderá reduzir a pobreza, criar empregos e outros.
Em outras palavras, enquanto o campo da inteligência artificial e mesmo da indústria 4.0 parece beneficiar a China, aqui está um compromisso com o outro pilar do novo modelo de acumulação: finanças globais digitais, o que é possível com o uso de dados de seres humanos, cujo consentimento é cortejado com intensidade.
Agora que foi evidenciado que a transição para um novo momento do capitalismo global está indissoluvelmente ligada a este modelo tecnológico, a disputa sobre o domínio do modo de produção relacionado e a propriedade do espaço satélite, minerais e outros bens, bem como por hegemonia na produção de conhecimento.
Da mesma forma, agora que já é inquestionável que a lógica da expansão digital coincide com a consolidação do novo modelo de acumulação e que os dados têm caráter estratégico, após tê-lo evitado por anos, está aberta a oferta pelo controle e o preço dos dados: "... dados do usuário são mercadorias com preço" [3], chegou a sugerir o fundador do Facebook, Mark Zuckerberg, enquanto eles começam a fazer público aplicativos para que os usuários do Facebook possam vender ou mercantilizar dados [4].
Nesse cenário, se torna praticamente irrefutável a afirmação de Julian Assange de que nessas dinâmicas de coleta e comercialização de dados, e sob esse modo de gestão tecnológica no mercado, "as pessoas que usam o Google são elas mesmas o produto" [5] .
De modo que, para permanecer humano e não um produto, se levantam vozes em defesa da privacidade dos dados, evidencia-se pressões para que as políticas sejam adotadas para sua proteção e, num contexto altamente dependente da expansão digital, também há quem busque desenvolver modelos tecnológicos confiáveis, baseados na humanidade e nas pessoas, não contra eles.
É preciso dizer que esta nova geração de defensores dos direitos reivindica o direito humano de as pessoas não serem comercializadas, traficadas ou vendidas. São posições éticas, comprometidas com a integridade do ser humano, por respeito ao livre arbítrio, pela liberdade de pensamento, opções pessoais, sociabilidade e outros aspectos intrínsecos à humanidade que não podem ser vistos como um negócio simples.
Essa diferença de pontos de vista entre aqueles que postulam a comercialização de dados humanos versus aqueles que defendem o respeito por sua dignidade e integridade, é um dos aspectos-chave para entender os “motivos” do ataque contra estes últimos, porque aqueles que defendem o direito à privacidade e a não comercialização de dados pessoais são classificadas como entidades anti-sistema perigosas. Sem mencionar a batalha desses "nativos digitais" [6] que, depois de nascer e crescer dentro desse modelo tecnológico, eles identificam esse recurso como seu próprio território para expressar seus compromissos e desentendimentos, não mais com 'curtidas', mas buscando reverter algoritmos baseados em pessoas e não lucratividade. É uma disputa pelo direito de desenvolver conhecimentos e tecnologias para a vida em sociedade e não contra ela, como afirmam as iniciativas de conhecimento livre ou software livre.
E sendo essa uma questão de poder entre as pessoas comuns e as potências globais reais que lutam pelo controle do mundo, através da mercantilização de tudo, já há muitos caídos e perseguidos.
Um dos casos mais populares de perseguição no mundo é protagonizado pelo Equador, pela entrega de Julian Assange, um jornalista australiano-equatoriano, premiado internacionalmente por suas iniciativas sobre transparência na informação, bem como pioneiro na compreensão do papel que desempenha a 'big data' para este novo modelo de acumulação e, portanto, defensor dos direitos de privacidade na internet. Assange foi entregue por seu país de adoção ao governo britânico, conhecendo o perigo humanitário de sua extradição iminente para os Estados Unidos, onde ele corre o risco de ter a pena de morte por ter divulgado informações sobre crimes de guerra cometidos por aquele país.
Mas a entrega de Assange também representa uma conformidade com a ordem corporativa no negócio de dados, porque em um mundo dominado pelo mercado ninguém pode evitar a venda de informações pessoais, necessárias para a rentabilidade do capital, muito menos com argumentos de 'direito à privacidade” e outros direitos humanos. Segundo Assange “…nossa desgraça não é a 'tecnologia' ou apenas a vigilância estatal. Estamos caminhando para um mundo de rede de ‘vigilância total’ marcado pelo gerenciamento de dados e pela disposição de controlar conjuntamente grandes governos e grandes corporações”. [7] Paradoxalmente, Assange, acusado de espionagem, opera na direção oposta, já que um dos pontos centrais de sua abordagem é tornar visível como a Internet se tornou "uma monumental máquina de espionagem a serviço do poder" e defende que ela se torne um motor de transparência para o público e não apenas para os poderosos.
Em pouco tempo, o Equador voltou a aparecer internacionalmente com a prisão arbitrária de Ola Bini, um programador e desenvolvedor de software que trabalha com privacidade, segurança e criptografia, depois de ser acusado de ser amigo de Assange e de ser um hacker comprometido com supostas ações de desestabilização do país. Ele já foi libertado, mas um processo legal contra ele continua, apesar de nenhuma acusação formal.
Localmente, esses eventos emblemáticos constituem precedentes intimidantes para aqueles que defendem o livre conhecimento, em um país dominado pela destruição que o governo desencadeou contra iniciativas anteriores de soberania comunicacional, tecnológica e digital, e pela distorção do sentido das instituições de controle do poder de mercado e telecomunicações, cujas instâncias são mantidas, mas para defender sua antítese: os interesses do mundo corporativo.
O exemplo do consórcio de empresas transnacionais libra.org que se envolveu no espaço associativo, com linhas de enredo pseudo-humanistas e de inclusão econômica, mostra uma vontade de simular uma comunidade de interesses com seus usuários, para expandir e fortalecer seu papel no poder global.
As corporações estão quebrando sua aparência de despolitização para se aventurarem abertamente na disputa sobre o conteúdo da "mudança" neste contexto de transição para um novo modelo de acumulação capitalista, usando as aspirações coletadas em seus bancos de dados para disputar simpatias e adesões.
Assim, encenando as propostas da libra.org podemos incluir consumidores, opa, desculpe!... os amigos do Facebook e às vinte e sete transnacionais associadas ao projeto Libra, ecoando as supostas manifestações de rebelião em face da política, da burocracia ou do mundo comercial convencional que ela convoca. Podemos imaginá-los levantando os punhos como um sinal de fortalecimento e pressionando muitos "likes" em apoio ao anúncio do nascimento de Libra, a nova moeda nativa do ambiente digital, apoiada por suas próprias fórmulas matemáticas.
Como experiência anterior, diferentes países do mundo já sabiam como a segmentação de dados pessoais, sua manipulação de propaganda e sua comercialização para fins eleitorais, levaram a resultados contrários às expectativas populares. O que será quando até as informações mais íntimas que as pessoas depositarem nas redes forem gerenciadas para propósitos nebulosos a partir de um único espaço virtual, que será tanto uma rede, instituição financeira, espaço cultural, organizador de comportamento e vendedor de tudo isso? Alerta nativos digitais, ciborgues e conectados de todos os tempos, o capitalismo digital é um cavalo de Tróia.
[1] Katharina Pistor, ‘Hay que frenar la Libra de Facebook’, https://www.project-syndicate.org/commentary/facebook-libra-must-be-stopped-by-katharina-pistor-2019-06/spanish
[2] Sally Burch, Geopolítica de la inteligencia artificial e integración digital, América Latina en Movimiento, Nº 534, 07/2018 https://www.alainet.org/es/articulo/194455
[3] Evgeny Morozov, ‘Facebook va-t-il casser la finance?’, Le Monde Diplomatique, 02-07-2019 https://blog.mondediplo.net/facebook-va-t-il-casser-la-finance
[4] Kari Paul, ‘Facebook launches app that will pay users for their data’, The Guardian, 12-06-2019, https://www.theguardian.com/technology/2019/jun/11/facebook-user-data-app-privacy-study
[5] James Camp, Julian Assange: ‘When you post to facebook you’re being a rat’, The Guardian, 25-09-2014 https://www.theguardian.com/books/2014/sep/25/julian-assange-eric-schmidt-google-wikileaks
[6] Refere-se a quem nasceu na era digital.
[7] The Conversation, Julian Assange on Google, surveillance and predatory capitalism, 05-07-2015, https://theconversation.com/julian-assange-on-google-surveillance-and-predatory-capitalism-43176
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Simulações, encenações e lutas pelo conhecimento livre no capitalismo digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU