06 Julho 2018
As empresas estadunidenses líderes da digitalização expandiram gradualmente sua supremacia global nos últimos 20 anos. No entanto, com a ascensão de algumas importantes empresas chinesas de internet, na atualidade surgem sérios desafios. Estas empresas ocupam lugares chaves em um capitalismo digital com marca chinesa. No país asiático, combina-se uma produção industrial altamente flexível com processos de distribuição e consumo digitalmente controlados, e com uma ampla supervisão estatal.
Abaixo, publicamos o artigo de Florian Butollo e Philipp Staab, que escreveram tendo como base a discussão ocorrida no foro Geopolitik des Internets: Globale Machtverschiebung durch digitale Dominanz? [Geopolítica da internet: deslocamento no poder global pelo domínio digital?], no marco do congresso Digitaler Kapitalismus: Revolution oder Hype? [Capitalismo digital: revolução ou mera publicidade?], que ocorreu nos dias 2 e 3 de novembro de 2017 na Fundação Friedrich Ebert (FES), em Berlim.
O artigo é publicado na versão espanhola pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Maio/Junho/ 2018. A tradução é do Cepat.
A internet comercial ocidental tem permanecido nas mãos de uma pequeníssima quantidade de grupos empresariais gigantes há já bastante tempo. As decisivas “empresas líderes” (1) da digitalização, muitas vezes nomeadas mediante o acrônimo GAFA (Google, Apple, Facebook, Amazon), ampliaram gradualmente seu poder no mercado a partir da explosão da bolha das ponto com, em fins dos anos 1990, e hoje controlam os mercados da internet comercial em grande parte do mundo.
No entanto, caso a visão se restrinja à internet comercial ocidental, são negligenciados aqueles lugares onde o complexo GAFA ainda não alcançou o domínio que possui nos Estados Unidos e Europa. Destacam-se, sobretudo, duas regiões do mundo. Por um lado, na zona de fala russa puderam se firmar no mercado atores que não pertencem ao complexo GAFA, tais como Yandex (originalmente um buscador e hoje um completo ecossistema digital) e grupo Mail.Ru (VKontakte, Odnoklassniki). Por outro lado, na China, grupos empresariais se desenvolveram plenamente – sobretudo o trio conhecido como BAT, formado por Baidu, Alibaba e Tencent (proprietário de Qzone) –, alcançando tecnologicamente os gigantes do Vale do Silício. No âmbito chinês, estes grupos estão ofuscando as empresas GAFA em termos de poder de mercado.
De um ponto de vista analítico, também possuem algumas características especiais. Na economia digital, no plano geoestratégico, as cartas não parecem estar divididas tão unilateralmente em termos de supremacia econômica, como poderia se pensar a partir de uma perspectiva ocidental. O que há por trás do BAT? O êxito destas companhias é o ponto de partida para uma apreciação integral das empresas chinesas? Isto significa que a economia chinesa, que nas últimas décadas desempenhou um papel importante, mas subordinado como banco de trabalho do mundo e em uma escala inferior frente às marcas ocidentais, agora está se tornando finalmente uma superpotência?
Em trabalhos sobre o desenvolvimento da economia digital na costa oeste dos Estados Unidos, a investigação crítica muitas vezes destacou que, diferente do que suporia as descrições surgidas do próprio campo, no auge da economia digital tiveram um papel crucial não apenas as tecnologias “disruptivas” (2) e as personalidades “disruptivas” do empresariado (3), mas, sobretudo, o Estado. Por exemplo, Dan Schiller, em seu trabalho pioneiro sobre o capitalismo digital, demonstrou que os programas de investimentos militar keynesianos, em particular, assentaram as bases para o êxito futuro das empresas digitais líderes (4). Mariana Mazzucato demonstrou de maneira impactante o papel crucial desempenhado pela investigação financiada com fundos públicos, por exemplo, nas patentes chaves do primeiro iPhone (5).
Hoje em dia, na China também existe uma estrutura específica de investimento Estatal que, no entanto, vai claramente além do que se conhece da história do Vale do Silício. A estratégia chinesa de alta tecnologia se baseia em uma política industrial cujo objetivo é a autonomia tecnológica e econômica. É uma expressão do capitalismo de Estado 3.0, que se identificou como uma característica das grandes economias emergentes (6), mas vai além na intensidade do planejamento estratégico e em sua articulação com a política de vigilância autoritária.
O plano decenal Made in China 2025 (MIC 2025), adotado em 2015, tem como objetivo fomentar as empresas chinesas mais sólidas em uma ampla gama de setores industriais. Ao invés de continuar prestando serviços às funções mais baixas das redes mundiais de produção, surgirão novas estruturas de produção centradas na China, que aproveitarão o crescimento dinâmico do mercado interno. Estas cimentarão sua fortaleza em seu próprio poder inovador (7). Neste sentido, MIC 2025 é mais que uma agenda de digitalização e, de modo algum, é uma cópia ruim da indústria 4.0, apesar deste termo ser amplamente adotado na China.
O MIC 2025 chega acompanhado – isto é particularmente relevante para o tema tratado aqui – pela agenda Internet Plus. O plano está focado principalmente em companhias do setor industrial e as respalda no uso de tecnologias de automatização e redes de dados para uma atualização tecnológica. A agenda Internet Plus vai no sentido inverso, ao promover sistematicamente a exploração do papel econômico da internet. Ao combinar os dois enfoques, a China está bem posicionada para se tornar beneficiária da digitalização do capitalismo. O país tem um setor industrial gigantesco, mas ainda pouco tecnologizado e, ao mesmo tempo, possui atores fortes na economia digital. Além disso, diferente da situação em outros países em desenvolvimento, a internet comercial não é dominada por empresas estadunidenses.
Uma combinação de protecionismo econômico e apoio estatal específico para companhias digitais chaves, especialmente do complexo BAT, deu lugar a conglomerados nacionais na internet comercial que chegaram aos postos superiores no ranking das companhias mais valiosas do mundo. Por exemplo, Tencent se tornou a primeira companhia chinesa de internet a se unir ao ilustre clube desses grupos empresariais, com um valor de mercado de mais de 500 bilhões de dólares (8).
O incentivo dado a partir da política às empresas líderes da internet comercial chinesa e a sua conexão com todas as áreas da economia e a vida não segue apenas os cálculos da política econômica. Ao contrário, a internet chinesa passou de ser um lugar de possível subversão para se tornar um espaço utilizado especificamente para assegurar o poder político.
O enorme alcance da vigilância e o controle estatal na conexão do Estado de segurança nacional com as empresas líderes da internet comercial foi demonstrado contundentemente pelas revelações de Edward Snowden, há alguns anos. À luz do que existe ou se está gestando hoje na China, o furor por monopolizar informação por parte das agências de inteligência ocidentais e a disposição a cooperar do complexo GAFA parecem apenas os primeiros ensaios de vigilância estatal-digital no marco da fusão de empresas e aparatos de controle estatais.
Isto não se aplica apenas aos mais de dois milhões de censores – muitos deles, empregados diretamente pelas empresas BAT – que contribuem ativamente para o controle da opinião pública. Ainda mais significativos são dois grandes projetos recentes que reforçam a estreita relação do complexo BAT com os agentes de vigilância e controle estatal. O primeiro deles é a criação de um sistema de pontuação de crédito social. Modelado segundo um sistema de qualificação de crédito privado similar ao da empresa alemã Schufa e desenvolvido por Alibaba, este sistema de pontuação tem como objetivo reunir todos os traços que as pessoas deixam na internet e mostrar em um único índice a qualidade do cidadão e consumidor (9). A correspondente pontuação regula o acesso às oportunidades de vida individuais: o comportamento de cada pessoa, refletido na pontuação individual, decide sobre o acesso ao crédito, à educação formal e ao mercado de trabalho e, inclusive, acerca do direito a tomar voos em linha comerciais ou a usar trens de alta velocidade. O princípio superior deste instrumento disciplinar é: “se a confiança se rompe em um lugar, as restrições se impõem em todas as partes” (10).
Se o sistema de pontuação de crédito social é ainda fundamentalmente uma recopilação de dados na internet, o segundo projeto, uma nova cooperação entre as autoridades estatais e a companhia de internet Baidu (muitas vezes denominada “Google chinesa”) também gira em torno do controle de dados no mundo não virtual. É assim que esta empresa está equipando sistematicamente pontos nevrálgicos do espaço público com câmeras que não só contam com um sofisticado software de reconhecimento facial (11), mas também podem identificar pessoas encapuzadas pela forma como caminham. Não só na rede, mas também no mundo real, todo indivíduo poderá ser rastreado a qualquer momento.
O rosto ameaçador do controle estatal obviamente não muda o fato de que a economia digital pode se tornar um importante impulsionador da revalorização industrial. No entanto, isto não é responsabilidade do complexo BAT em si, mas da combinação dos gigantes da internet com uma política industrial estratégica e um mercado interno em rápido crescimento. Assim, a digitalização se torna a correia de transmissão para o desenvolvimento de empresas de marcas chinesas, que adaptam seus produtos às necessidades específicas dos consumidores locais.
Uma variante deste enfoque está sendo testada por empresas tecnologicamente avançadas na indústria de bens de consumo. Os principais fabricantes de eletrodomésticos, por exemplo, anunciam suas fábricas “em rede” altamente automatizadas, que fazem produtos personalizados seguindo o modelo “indústria 4.0”. Ainda que esta forma de individualização se limita a algumas características externas não essenciais dos produtos, as empresas também podem estabelecer a lealdade do cliente vinculando-se com os consumidores através de plataformas de usuários mediante as quais se compartilham, por exemplo, receitas de cozinha. Os clientes compram mais que um refrigerador, uma máquina de lavar roupas ou um aparelho de ar condicionado. As empresas industriais tiram maior proveito dos dados pessoais de seus clientes mediante seus unique selling points (argumentos diferenciadores de vendas).
Uma variante completamente diferente da personalização do produto também se baseia nas vantagens das plataformas digitais. A força dos grupos empresariais chineses da internet se deveu em parte ao rápido crescimento do comércio online, em particular da plataforma Taobao, de Alibaba, e o aplicativo WeChat, de Tencent, assim como muitas pequenas plataformas especializadas. Uma chave do êxito de Alibaba foi o papel da companhia como plataforma business-to-business (b2b) que vinculava compradores estrangeiros com empresas provedoras chinesas (muitas vezes, escritórios clandestinos). Portanto, também era possível encontrar provedores para os requisitos mais específicos das empresas estrangeiras: outro tipo de produção on demand.
A divisão business-to-consumer (b2c) de Alibaba se baseia nestas virtudes e as torna utilizáveis para o mercado interno. A plataforma oferece inclusive a empresas de um nível tecnológico moderado a possibilidade de receber pedidos. Os chamados povos de Taobao encontraram um amplo eco: trata-se frequentemente, em termos econômicos, de aglomerados atrasados cujos microprodutores e pequenos produtores são sistematicamente conectados à economia digital (12). Portanto, o nível tecnológico dos provedores individuais não é crucial para fazer parte da economia on demand das empresas de plataforma. A diversificada rede cumpre com a flexibilidade necessária e o matching entre empresas e clientes assumido pelas companhias da plataforma, e aqui é precisamente onde radica sua importância para uma gradual valorização tecnológica.
O crescimento do enorme mercado interno oferece as condições prévias essenciais para isso, não só devido aos efeitos de escala que acarreta, mas sobretudo à estrutura de consumidores específica. O mais concorrido é o segmento de qualidade média do mercado, onde as empresas chinesas podem competir com as empresas ocidentais porque oferecem uma qualidade comparável a um preço inferior. A corrida por estes mercados se identificou como o motor da revalorização industrial (13). Com as ferramentas digitais, as empresas chinesas agora podem ampliar ainda mais suas vantagens principais: acesso direto ao mercado e capacidade de entregar de acordo com as necessidades específicas dos consumidores locais.
No entanto, estes impressionantes avanços não devem ocultar os problemas subjacentes da economia chinesa. A fragilidade do sistema de inovação e o atraso tecnológico frente ao Ocidente continuam sendo uma realidade; sem mencionar os crescentes conflitos trabalhistas devido às más condições de trabalho e os desequilíbrios macroeconômicos ocasionados por uma demanda interna ainda (relativamente) muito frágil. Mas, a economia digital é um catalizador com o qual o plano do governo chinês em alcançar o mesmo nível tecnológico dos Estados Unidos e Europa para o ano 2049 não parece ser um sonho sem fundamento.
Para além da integração progressiva e essencialmente digital do mercado interno, surge neste contexto a questão da expansão transnacional das empresas BAT. Especialmente Alibaba e Tencent estão fazendo importantes obras de infraestrutura para o mercado interno chinês e se constituem em pontos nodais decisivos de um modelo digitalizado de consumo interno. No entanto, na área da integração global das empresas chinesas, há um segundo aspecto importante da política econômica chinesa, que se dá no marco de um modelo de crescimento impulsionado pelas exportações. Por exemplo, com a Iniciativa da Faixa e a Rota – o desenvolvimento de rotas terrestres e marítimas transcontinentais -, acaba-se de lançar um grande programa de investimentos com o objetivo de que os produtores chineses estejam integrados diretamente ao mercado mundial.
Ao mesmo tempo, é possível observar como algumas partes do complexo BAT se transnacionalizaram. As três empresas não só listam na Bolsa de Nova York, como também Alibaba e Tencent estão a ponto de se expandir para além de seu mercado nacional. O objetivo dos esforços de expansão são, em particular, os mercados neutros restantes, sobretudo nos países do Sudeste asiático, que possuem semelhanças com a China em relação ao surgimento de novas classes médias com um poder de consumo relativamente elevado. Na Índia, por exemplo, há algum tempo, Alibaba e Amazon travam uma feroz guerra de preços, com a finalidade de conseguir uma porção crucial do crescente mercado de comércio eletrônico.
Caso se leve em conta as características específicas do capitalismo digital chinês, fica claro que as plataformas de internet também desempenham um papel estratégico importante na expansão e integração do modelo de exportação do país asiático. Assim, os clientes alemães dispostos a ele já podem solicitar hardware chinês através de AliExpress, mas precisa aguardar cerca de duas semanas para a entrega. A combinação de investimento público em infraestrutura e o papel internacional cada vez mais gravitante das plataformas chinesas de internet poderão encurtar esse prazo para apenas poucos dias e expandir globalmente o modelo de consumo interno digital da China, por meio de suas empresas digitais líderes. Isto atingiria os interesses econômicos do complexo GAFA e o capital de risco que respalda estas companhias. Até agora, as plataformas da costa oeste estadunidense foram as interfaces decisivas dos processos de consumo digital em grande parte do mundo (14).
No caso da penetração dos grupos empresariais chineses de internet em territórios do GAFA, surgem algumas perguntas: sob que condições, por exemplo, GAFA e BAT cooperarão nos mercados de outros países? Como se avaliam as respectivas relações de forças em caso de conflitos abertos pelo domínio do mercado? Por um lado, o caso do Uber na China demonstrou que a cooperação liderada por esse país é perfeitamente factível: ali, a startup estadunidense avaliada em 70 bilhões de dólares abandonou o campo após uma fase de ruinosa concorrência e de lhe ser oferecida uma enorme participação em sua competidora, Didi (15). Por outro lado, no conflito já mencionado entre Alibaba e Amazon pelo mercado indiano se vê que são possíveis longas guerras de preços. Para a duração e o resultado dessas lutas pelo domínio do mercado será igualmente importante a questão do poder de fogo financeiro das empresas chinesas, estreitamente vinculadas ao Estado e a seus gigantescos fundos soberanos. Por último, surge a não menos relevante pergunta de se a expansão das plataformas chinesas implicará também que o controle dos dados dos usuários de internet de todo o mundo, politicamente sensível, seja transferido da costa oeste dos Estados Unidos à costa leste da China.
(1) Ulrich Dolata: «Volatile Monopole: Konzentration, Konkurrenz und Innovationsstrategien der Internetkonzerne» en Berliner Journal für Soziologie vol. 24 No 4, 2015.
(2) Clayton M. Christensen: The Innovator’s Dilemma: When New Technologies Cause Great Firms to Fail, Harvard Business School Press, Boston, 1997.
(3) Peter Thiel: Zero to One: Wie Innovation unsere Gesellschaft rettet, Campus, Fráncfort del Meno, 2014.
(4) D. Schiller: Digital Depression: Information Technology and Economic Crisis, University of Illinois Press, Champaign, 2014.
(5) M. Mazzucato: Das Kapital des Staates. Eine andere Geschichte von Innovation und Wachstum, Kunstmann, Múnich, 2014.
(6) Tobias Brink: «Blinde Flecken. Zur Makrosoziologischen Analyse icht-Liberaler Kapitalismen im Globalen Süden» en Heinz Bude y P. Staab (eds.): Kapitalismus und Ungleichheit. Die Neuen Verwerfungen, Campus, Fráncfort del Meno, 2016.
(7) F. Butollo y Boy Lüthje: «‘Made in China 2025’: Intelligent Manufacturing and Work» en Kendra Briken, Shiona Chillas,Martin Krzywdzinski y Abigail Marks (eds.): The New Digital Workplace: How New Technologies Revolutionise Work, Palgrave, Londres, 2017.
(8) Bien Perez: «Tencent Poised to Rub Shoulders with Apple and Facebook as China’s First Entrant to Elite us$500 Billion Tech Club» en South China Morning Post, 14/11/2017.
(9) Steffen Mau: Das Metrische Wir: Über die Quantifizierung des Sozialen, Suhrkamp, Berlín, 2017.
(10) Simon Denyer: «China’s Plan to Organize Its Society Relies on ‘Big Data’ to Rate Everyone» en The Washington Post, 22/10/2016.
(11) Stephen Chen: «China to Build Giant Facial Recognition Database to Identify Any Citizen within Seconds» en South China Morning Post, 12/10/2017.
(12) Andreas Rüesch: «Alibaba und die Zwanzig Dörfer» en Neuen Zürcher Zeitung, 17/9/2014.
(13) Loren Brand y Eric Thun: «The Fight for the Middle: Upgrading, Competition, and Industrial Development in China» en World Developmentvol. 38 No 11, 11/2010.
(14) P. Staab: Falsche Versprechen: Wachstum im Digitalen Kapitalismus, Hamburger Edition, Hamburgo, 2016.
(15) Xavier Fontdeglòria: «Uber cede en China por la guerra de precios y se fusiona allí con su rival Didi» en El País, 1/8/2016.
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O modo como a China desafia o Vale do Silício - Instituto Humanitas Unisinos - IHU