18 Julho 2019
"Há um genocídio indígena em gestação no Brasil, embora se relute em lançar mão deste termo. Não há que se dourar a pílula. Cientistas sociais, ativistas e povos indígenas estão denunciando, mas temo pelo pior, que ainda está por vir", escreve Leonardo Barros Soares, psicólogo, Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Coube ao agora duas vezes ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o general da reserva Franklinberg de Freitas, resumir de forma bastante eloquente o balanço dos seis primeiros meses da (anti)política indigenista do governo Bolsonaro: “ele saliva ódio contra os indígenas”, afirmou aos funcionários da instituição reunidos no auditório da sede em Brasília, referindo-se ao Secretário Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Nabhan Garcia. Disse ainda, num arroubo de candura desnecessária, que as pessoas que assessoram o presidente Jair Bolsonaro na questão indígena são “mal informadas”, como se o desmonte da política indigenista brasileira, sobre a qual discorrerei a seguir, fosse questão de desinformação e não de um projeto político deliberado com raízes profundas na subjetividade do atual presidente da república.
O livro escrito pelo filho “zero um” do capitão – sim, ele mesmo, Flávio Bolsonaro – sobre a vida de seu pai, brilhantemente intitulado “Jair Bolsonaro: mito ou verdade?” (ou seja, se é mito, não é verdade), deixa claro que o entrevero com a questão indígena vem de longe. Já no início do texto – que de tão mal escrito, só pode ter sido feito por ele mesmo, já que não creio que algum ghost writer profissional seria capaz de fazê-lo de forma tão desleixada –, Bolsonaro filho ecoa o sentimento de seu pai de que a cidade em que este se criou, Eldorado, localizada no Vale do Ribeira, tem seu potencial turístico e industrial reduzido devido à demarcação da Terra Indígena Pindoty/Açá-Mirim, terra de ocupação tradicional em que vivem 84 indivíduos do grupo Guarani Mbya, índios que teriam sido “trazidos do Paraguai” para se estabelecer na foz do rio Taquari. A cidade estaria condenada eternamente a uma economia baseada na bananicultura, uma vez que as Terras Indígenas, incluindo a Amba Porã, no município de Miracatu, apresentariam jazidas de minerais valiosos, especialmente o já anedótico grafeno. A inclusão do saber tradicional dos pajés no processo demarcatório é ridicularizada, com a finesse intelectual que caracteriza os membros da família Bolsonaro: “vai catar coquinho!”, brada diante da ideia de que a mobilidade do grupo indígena é orientada pelos sonhos de suas lideranças espirituais.
Além disso, relembra Flávio Bolsonaro que o então deputado federal neófito foi o único parlamentar a tentar sustar a demarcação da Terra Indígena Yanomâmi, a maior do país, conseguida após muita pressão internacional sobre o governo Collor. Em 25 de junho de 1992, o jornal O Globo noticiava que Bolsonaro tinha aprovado, na Comissão de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, um projeto de decreto legislativo visando extinguir a recém-criada Terra Indígena Yanomâmi. Abelardo Lupion, um dos ruralistas mais renhidos do país, relator do projeto à época, dizia ter sido a aprovação “a vitória do bom senso contra uma decisão demagógica tomada às vésperas da Rio-92” e que a terra seria “incompreensivelmente extensa para abrigar não mais que dez mil indígenas”. Vale lembrar, o drama do povo Yanomâmi ganhara repercussão internacional poucos anos antes, após a malfadada decisão do então presidente da FUNAI – o onipresente e, desde 2016, onisciente Romero Jucá – de abrir a região para garimpeiros em busca de ouro, o que levou ao massacre de centenas de índios e à contaminação dos rios com metais pesados. Felizmente, o projeto não foi adiante. Entretanto, este fato demonstra de forma cabal que Jair Bolsonaro está disposto a ir às últimas consequências para, se possível, extinguir os direitos dos povos indígenas brasileiros às terras tradicionalmente ocupadas.
Por fim, destaca-se, como um atestado do caráter especialmente delirante e sexualizado do pensamento bolsonarista – que, no limite, leva as pessoas a acreditarem em “mamadeira de piroca” e “kit gay” – um trecho do livro em que o autor utiliza como exemplo de uma prática indevida de “aproximação” (!) de adultos e crianças nuas um jogo tradicional do povo Kalapalo. Em determinado momento da obra são reproduzidas uma série de páginas de livros escolares que, supostamente, respaldariam sua percepção de que o governo petista queria transformar a homossexualidade “numa coisa normal” e, dentre elas, uma página de um livro escolar em que se apresenta um jogo chamado “gavião”. Este consiste na organização de uma fila de crianças, da maior para a menor, que devem permanecer abraçadas e resistir contra a investida do “gavião”, uma criança que deve tentar “arrancar” a criança menor da fila e levá-la para o seu ninho.
Pois bem. Onde qualquer ser humano com um mínimo de sanidade mental enxerga apenas uma brincadeira entre crianças relacionada ao seu dia a dia nas aldeias, a família Bolsonaro enxerga pedofilia. Não acredita? Pois cito in verbis a maluquice publicada (p.154): “a brincadeira de gavião, sugerida na página 73, é uma forma sorrateira de estimular o contato físico entre crianças e adultos semi-nus (sic). Abusam da inocência das crianças para estimular a sexualidade, precocemente e sem o conhecimento dos pais (...) se isso não é um estímulo à pedofilia, nada mais o é”. Verdade seja dita, Jair Bolsonaro é um político anti-indígena “raiz”, muito antes de esta ser a tendência dominante no parlamento brasileiro.
Assim sendo, não é surpresa constatar que, após seis meses de seu mandato como presidente, a centenária política indigenista republicana brasileira esteja em franco processo de desmonte. Na sequência desse texto, apresenta-se, ainda que brevemente, os dois principais eixos que, a meu ver, concentram as principais ações do governo Bolsonaro que concorrem para o que creio ser o objetivo final deste governo com relação aos povos indígenas do país: o colapso da estrutura de atendimento aos povos indígenas e, em última análise, a desconstitucionalização dos seus direitos encrustados na Carta Magna de 1988.
Em primeiro lugar, no eixo que chamaremos institucional, verifica-se o ataque central à FUNAI como o mais dramático movimento no sentido da desconstrução aqui apresentada. É forçoso reconhecer que a FUNAI já vinha mal das pernas antes do governo Bolsonaro, com financiamento capenga, crônica falta de recursos humanos e parco desempenho na demarcação de terras indígenas desde o primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff. Todavia, a mudança da Fundação do Ministério da Justiça – seu “habitat” natural desde a redemocratização – para o recém criado Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos e a retirada de sua principal atividade-fim, a demarcação de terras indígenas tradicionalmente ocupadas, foram dois lances que levaram a precarização desde antes observada a um novo nível. Hoje, a paralisia decisória e o caos reinam na instituição cuja missão estatutária é a de garantir aos 305 povos indígenas o pleno gozo de seus direitos como cidadãos pertencentes a grupos etnicamente distintos que fazem parte da sociedade brasileira. A reiterada afirmação de Jair Bolsonaro de que em seu governo não seria demarcada “nem um centímetro a mais” de terras indígenas é provavelmente a única promessa de campanha de Bolsonaro cumprida integralmente por seu governo até aqui.
Ainda nesse sentido, merece destaque a lembrança da histeria, já nos primeiros dias do governo Bolsonaro, causada pela existência – assim diziam as fakenews que se espalharam por meio das redes sociais aos montes naqueles dias – de uma “criptomoeda indígena” que poderia servir para o “projeto de independência” das comunidades indígenas, que seriam prontamente reconhecidas pelas potências estrangeiras, colocando em perigo a soberania nacional! O desenvolvimento da tal “criptomoeda”, na verdade, fazia parte de um projeto de desenvolvimento institucional mais amplo celebrado entre a Universidade Federal Fluminense e a FUNAI, que previa um conjunto de ações estruturantes que certamente dariam mais alento ao combalido órgão indigenista. Sustado sob alardeadas suspeitas de irregularidade, o projeto não prosperou. Assim, tudo continuará na mesma, o que corresponde a dizer que a instituição não contará com um processo de renovação que poderia atualizar seus parâmetros de atuação e mitigar algumas de suas falhas de desempenho.
Um segundo eixo de desmonte da política indigenista brasileira diz respeito às políticas públicas não diretamente coordenadas pela FUNAI, tais como educação e saúde. Esta última parece ser a “bola da vez” do governo Bolsonaro. Em primeiro lugar, é importante salientar que, sim, a política de saúde indígena, levada a cabo pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), tem sido alvo de frequentes denúncias de corrupção e malversação de verbas ao longo dos anos, que devem ser devidamente apuradas pelos órgãos competentes. A infeliz constatação dessas ocorrências, no entanto, não deve obnubilar o fato de que a construção de uma política de saúde responsiva às especificidades dos povos indígenas brasileiros é uma conquista da sociedade como um todo e, em especial, dos movimentos indígenas que se organizaram e pressionaram os governos para que suas demandas fossem atendidas de forma adequada. O estabelecimento dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIS) busca dar conta das especificidades culturais e logísticas de atendimento às populações indígenas e, em que pese as muitas deficiências de sua implementação, estes fazem parte de uma lógica de abordagem de saúde coletiva condizente com o princípio de acesso universal do Sistema Único de Saúde e, portanto, devem ser aperfeiçoados, e não simplesmente descartados.
Em paralelo à política de demarcação territorial, não é exagero dizer que a política de saúde é provavelmente aquela que detém a importância cotidiana mais concreta para as milhares de comunidades indígenas espalhadas pelo interior do “Brasil profundo”. Desta forma, não foi surpresa observar que as recentes tentativas de municipalização da saúde indígena encontraram forte resistência dos povos indígenas. A pressão para isso, no entanto, continuará, e não creio que vá diminuir tão cedo.
A conjugação destes dois eixos de desmonte da política indigenista brasileira – um institucional, o outro de políticas públicas – tem avançado num ambiente político extremamente hostil às pautas indígenas, o que sugere que seu curso de destruição deverá se aprofundar nos meses e nos anos vindouros. Minha análise sugere que, ceteris paribus, ou bem a política indigenista brasileira não sobreviverá aos quatro anos do governo Bolsonaro, ou ficará tão desfigurada a ponto de se tornar irrelevante. É preciso reagir já. Para lidar com quem saliva ódio, não há muitas alternativas que não envolvam alguma redução de danos por meio de contenções institucionais sólidas. O Ministério Público Federal tem feito seu papel, mas é uma voz pregando no deserto. Além do mais, é difícil falar em solidez institucional quando parece que todas elas estão derretendo no presente momento histórico do país.
Lideranças indígenas importantes como Sônia Guajajara, Raoni Metuktire e Joênia Wapichana estão mobilizando os recursos políticos que conseguem nas arenas públicas em que atuam, mas é preciso mais. Talvez seja a hora de ampliar a atuação na esfera internacional, aumentando os constrangimentos para a o governo brasileiro e forçando-o a agir.
Há um genocídio indígena em gestação no Brasil, embora se relute em lançar mão deste termo. Não há que se dourar a pílula. Cientistas sociais, ativistas e povos indígenas estão denunciando, mas temo pelo pior, que ainda está por vir.
O balanço dos seis primeiros meses da (anti)política indigenista também pode, portanto, ser formulado da seguinte maneira: a destruição está apenas começando.
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Salivando ódio contra indígenas: um balanço dos seis meses da (anti)política indigenista do governo Bolsonaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU