08 Julho 2019
“A construção de consenso sobre a desumanidade e a imoralidade tem um efeito destrutivo sobre a democracia.”
A opinião é do jurista italiano Luigi Ferrajoli, professor da Universidade de Roma Tre e ex-juiz de 1967 a 1975, em entrevista a Filippo Ciccarelli, publicada pot Il Manifesto, 05-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
[Matteo] Salvini [ministro do Interior italiano] defendeu que Carola Rackete é uma “pirata”, portanto, uma “inimiga da humanidade” e, por isso, uma “criminosa”. Qual é o sentido de atribuir essa definição a quem salva os migrantes no mar por um senso de dever para com a humanidade?
São todos disparates muito graves. No plano jurídico, não há dúvidas: Carola Rackete não cometeu nenhum crime, conforme estabelecido pela juíza das investigações preliminares, Alessandra Vella. Ela agiu no cumprimento de um dever: salvar as pessoas resgatadas, dever imposto pelo direito do mar, e em estado de necessidade. No máximo, foram as autoridades italianas que, por 17 dias, foram responsáveis pelo crime de omissão de socorro. Francamente, é intolerável que Salvini chame de “criminosa” uma pessoa recém-absolvida sem incorrer no crime de injúria. Fato pelo qual espero que Carola queira processá-lo. Mas neste momento, a questão jurídica é secundária.
Por quê?
Esses “soberanistas” estão destruindo a reputação da Itália que até poucos anos atrás se distinguira, com [a operação] Mare Nostrum, por ter salvo 150 mil pessoas no Mediterrâneo. Hoje, o seu comportamento é absolutamente ilegítimo, porque viola todas as normas do direito do mar, além da nossa Constituição, e deturpa a identidade civil do nosso país. Não é apenas uma violação dos direitos fundamentais, mas também a destruição dos pressupostos sociais da convivência civil. A construção de consenso sobre a desumanidade e a imoralidade tem um efeito destrutivo sobre a democracia.
Qual é a estratégia deles?
Construir a percepção dos outros como inimigos apenas por serem estrangeiros, pobres e desesperados. Com base nisso, obtiveram um consenso em massa para as políticas de segurança. Tudo isso em um país que está entre os mais seguros do mundo. Em 2017, os homicídios foram 357, dos quais 123, infelizmente, foram feminicídios, dos quais a política sequer fala. Os homicídios eram cerca de 1.500 somente no início dos anos 1990.
Você acha que é apenas responsabilidade desse governo?
Absolutamente não. Salvini não inventou nada, apenas continuou as políticas contra os imigrantes e a construção da emergência do ministro anterior, Minniti, e dos outros governos europeus. Mas há gravíssimas diferenças.
Quais?
O caráter criminoso das leis em questão de segurança. O primeiro decreto de segurança de Salvini suprimiu, de fato, o permesso di soggiorno [autorização de residência] por motivos humanitários e expulsou milhares de requerentes de asilo e refugiados dos centros de acolhimento. Uma medida estupidamente persecutória com a qual pessoas integradas foram transformadas em pessoas ilegais e virtualmente desviantes. Sem esquecer a extensão dos pressupostos da legítima defesa. A supressão do requisito da proporcionalidade entre defesa e ofensa poderia levar ao aumento também entre nós do número das mortes violentas, como ocorreu nos Estados Unidos.
Você vê um paralelo entre o governo Conte e Trump nas políticas sobre a imigração?
O próprio Salvini não esconde isso. A diferença com as políticas de Minniti ou de Macron é esta: se antes, na Itália, a violação dos direitos humanos era ocultada, agora é desfraldada como fonte de consenso. Salvini está promovendo um rebaixamento do senso moral em nível de massa. Ele não se limita a interpretar a xenofobia, mas a alimenta. Sua política está reconstruindo as bases ideológicas do racismo.
Como você define esse uso do direito?
É populismo penal. Consiste no uso demagógico e conjuntural do direito penal voltado a alimentar o medo com medidas tanto antigarantistas, quanto ineficazes na prevenção da criminalidade.
Os governantes da Itália, França e Alemanha deveriam ser perseguidos por terem decidido sacrificar a vida dos migrantes em dificuldade no Mediterrâneo. Um relatório legal depositado no Tribunal Penal Internacional defendeu isso, falando de 40 mil vítimas de crimes de competência do tribunal nos últimos três anos. Você definiu esses atos como “crimes de sistema”. O que são?
Os crimes de sistema são violações maciças do direito internacional e dos direitos fundamentais. Não são crimes, porque não são imputáveis à responsabilidade de pessoas individuais, mas sim a sistemas econômicos e políticos inteiros. Isso não descarta que sejam violações gravíssimas dos direitos estabelecidos em todas as cartas constitucionais e internacionais. São políticas criminosas, que provocam, a cada ano, dezenas de milhares de mortes, além do apartheid mundial de dois bilhões de pessoas. Chegará um dia em que esses atos serão lembrados como crimes, e não poderemos dizer que não sabíamos, porque sabíamos de tudo. Dos campos de concentração na Líbia, dos naufrágios, da fuga causada pelas mudanças climáticas, da fome e das crises econômicas produzidas pelas políticas do capitalismo de rapina...
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''O uso demagógico do direito? É populismo penal.'' Entrevista com Luigi Ferrajoli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU