06 Abril 2019
Após os milhares de casos de abusos sexuais contra menores, por parte de membros da Igreja, que vieram à luz nas últimas décadas e, particularmente, depois do primeiro encontro internacional de bispos e cardeais sobre o tema, realizado em fevereiro passado no Vaticano, os católicos aguardavam um documento do Papa Francisco, anunciado nesse momento, que indicasse normas precisas sobre como evitar estes males.
O documento, um Motu Proprio – ou seja, um documento de iniciativa papal – “sobre a proteção dos menores e as pessoas vulneráveis”, foi divulgado no último dia 26 de março. Contudo, nem todos ficaram satisfeitos.
O jornal Página/12 conversou sobre este assunto com Emiliano Fittipaldi, escritor e jornalista italiano que faz profundas investigações sobre o poder e para isso é “enviado especial” da revista italiana L’Espresso. Entre seus livros, estão Avarizia (Avareza), de 2015, que revelou uma série de escândalos em nível econômico e financeiro da Igreja e pelo qual foi acusado de divulgar segredos de estado da Santa Sé, processado dentro do Vaticano e, finalmente, absolvido em 2016 por “defeito de jurisdição”. Em 2017, publicou outro livro não menos polêmico: Lussuria. Peccati, scandali e tradimenti di una Chiesa fatta da uomini (Luxúria. Pecado, escândalos e traições de uma Igreja feita de homens), no qual denunciou o acobertamento que os padres pedófilos em todo o mundo gozavam.
A entrevista é de Elena Llorente, publicada por Página/12, 05-04-2019. A tradução é do Cepat.
Qual o seu parecer sobre o Motu Proprio do Papa Francisco? Após este documento, algo mudará na Igreja em matéria de abusos sexuais?
Após o encontro de fevereiro, disseram-nos que o Papa Francisco promulgaria um Motu Proprio sobre a pedofilia e todos aguardavam algo importante. Do ponto de vista simbólico, pela primeira vez, este Motu Proprio coloca na legislação vaticana a obrigação de denunciar os casos de pedofilia às autoridades vaticanas. Contudo, esta é uma lei que vale somente para a Cidade do Vaticano, onde as crianças são pouquíssimas. Do ponto de vista prático, no entanto, não muda praticamente nada. As pessoas esperavam uma decisão que incluísse a obrigação de denunciar os casos de abusos às autoridades civis e penais de cada país onde ocorrem e que fosse válida para todos os episcopados do mundo.
Mas, este Motu Proprio é válido para o Vaticano e a Cúria Romana. Dado que o Papa é o bispo de Roma, não se aplicaria ao menos em Roma?
Não. Só é aplicável dentro do Vaticano e da Cúria Romana, ou seja, em todas as organizações que constituem o aparelho administrativo da Santa Sé. O texto do Motu Proprio diz que é necessário fazer as denúncias ao promotor de justiça vaticano e, consequentemente, trata-se de uma denúncia que se faz ao Tribunal de Justiça do Estado da Cidade do Vaticano. Fala apenas dos abusos que tenham sido cometidos dentro da Cidade do Vaticano. Mas, no Vaticano, exceto no coro da Capela Sistina, que conta com a participação de crianças e jovens, não há muitas crianças. Sendo assim, as denúncias praticamente seriam inexistentes.
Esperava-se algo mais contundente, com mais efeitos práticos, não é?
Sim. Esperava-se um Motu Proprio que obrigasse todo o clero mundial a denunciar os abusos às autoridades judiciais, não ao Vaticano. Esta teria sido uma medida, não digo revolucionária, mas que ao menos teria levado em conta o que as organizações internacionais de pessoas que sofreram abusos pedem.
Na minha opinião, este Motu Proprio foi uma oportunidade perdida. E, em nível prático, não tem nenhuma importância. Em nível simbólico, ao contrário, pode ser que seja positivo – e digo isso na condicional, pois sou muito crítico em relação ao documento –, porque as normas que guiam as conferências episcopais internacionais – algumas mais rígidas, outras mais suaves em relação às denúncias de abusos – poderiam tomar como ponto de referência esta nova lei vaticana.
Se as conferências episcopais internacionais escrevessem novas normas com as quais obrigassem os sacerdotes e bispos denunciar à polícia ou à justiça os casos de abusos, então, seria um passo à frente e significativo. De momento, é preciso aguardar para ver como reagem...
Em sua opinião, por qual razão o Papa Francisco não fez uma lei neste âmbito, que seja aplicável a todos os episcopados do mundo?
Esta é uma pergunta de um milhão de dólares... Teria que ser feita ao Papa. Francisco, assim como Bento XVI, pregou a “tolerância zero” neste campo, mas sem aplicar normativas mais severas. Isto indica uma coisa muito clara, em minha opinião: para o Papa Francisco a luta contra a pedofilia não é prioritária. Não é a prioridade de seu pontificado. Acredito que é um erro porque o tema da pedofilia está destruindo a Igreja por dentro como um câncer. O fato deste pontificado pregar a severidade, mas sem que, na realidade, a coloque em prática, em longo prazo, significará para a Igreja um distanciamento dos fiéis.
Por que o Papa Francisco é tímido em relação a esta praga? Depende de muitos fatores. Entre eles, que essa batalha não é prioritária, mas também o fato de que muitos cardeais, inclusive de peso, estão envolvidos nos acobertamentos dos casos de abusos, e também o fato de que o fenômeno se encontra muito difundido dentro da Igreja.
De 2013 a 2018, a cada ano, chegaram de 400 a 500 denúncias de todo o mundo à Congregação para a Doutrina da Fé. Contudo, não sabemos nada sobre tudo acontece dentro da Congregação para a Doutrina da Fé. Tudo está sob segredo pontifício. O nome dos supostos pedófilos, as decisões dos processos canônicos, as sentenças. Não se sabe nada. Isto ainda não foi modificado.
Alguns dizem que o Papa Francisco está procurando mudar as coisas, mas que tem freios internos. Você acredita que pode ser assim?
Se existissem os freios internos, o Papa deveria denunciá-los. Deveria dizer: eu quero fazer estas coisas, mas estas pessoas não me deixam agir. É um tema muito importante. Certamente, foram cometidos erros, por exemplo, na eleição da classe dirigente vaticana que é a que deveria avançar na batalha contra a pedofilia.
Por exemplo, o cardeal australiano George Pell, convocado a Roma e nomeado prefeito emérito da Secretaria para a Economia do Vaticano, para reformar a economia da Santa Sé. O cardeal australiano está agora na prisão, na Austrália, condenado a seis anos por abuso sexual.
Outro caso, entre muitos outros, foi o do cardeal hondurenho Oscar Rodríguez Maradiaga, que era o coordenador do C9 (grupo de 9 cardeais de todo o mundo que assessorava o Papa). O cardeal hondurenho esteve envolvido em escândalos econômicos e foi acusado de acobertador, em um caso que mencionei em um de meus livros.
Claro que todos podem cometer erros, mas foram cometidos tantos erros que é difícil acreditar que queiram mudar as coisas. É claro, estou sempre disposto a mudar de ideia, caso seja demonstrado o contrário.
Quanto diminuiu a credibilidade da Igreja nestes anos, em razão dos abusos sexuais?
A pedofilia começou a vir à luz durante o papado de João Paulo II. Algumas pesquisas publicadas pela imprensa italiana, dizem que nos últimos 20 anos a credibilidade da Igreja na Itália diminuiu em quase 20 pontos. Estes escândalos aumentam a velocidade de um processo de secularização que de qualquer maneira existe, porque vivemos em um momento histórico no qual o individualismo predomina, sobretudo no Ocidente. Os escândalos deste tipo não fazem outra coisa a não ser piorar uma tendência que, de qualquer maneira, está em marcha nas sociedades ocidentais.
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“A pedofilia está destruindo a Igreja”. Entrevista com Emiliano Fittipaldi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU