04 Março 2019
Éric Baratay retorna à atitude medieval ambivalente, entre a valorização e o distanciamento teológico. Éric Baratay é historiador, professor da Universidade Jean-Moulin de Lyon, especialista em história dos animais e autor, pela editora Cerf, de L’Église et l’animal (France, XVIIe-XXe siècle) [A Igreja e o animal. França, século XVII-XX] ( 1996) e de Des bêtes et des dieux: les animaux dans les religions [Animais e deuses: os animais nas religiões], 2015.
A entrevista é de Yoann Labroux-Satabin, publicada por La Vie, 21-02-2019. A tradução é de André Langer.
Os animais estão muito presentes na sociedade medieval cristã. Como se explica isso?
Primeiro, porque ainda há, nessa época, muitos animais selvagens (especialmente lobos) e a população é majoritariamente rural, constituída por camponeses e silvicultores que vivem com e na natureza. Outra razão é o analfabetismo quase universal (95%): a natureza, e em particular os animais, constitui um meio para ensinar e moralizar. Existe uma espécie de livro aberto que pode ser compreendido sem ser alfabetizado.
Como definiria este lugar?
Ele é ambivalente, principalmente porque existem várias versões do cristianismo. A versão dominante na Idade Média, a mais difundida, baseia-se mais na teologia do que na Bíblia e é fortemente influenciada pela filosofia grega. Nessa visão, o homem e o animal são radicalmente diferentes: se ambos têm uma alma, a do homem é espiritual e imortal, ao passo que a do animal é material e mortal. Esta distinção atesta o medo que havia na época em relação aos cultos pagãos: ao conceder um lugar muito grande aos animais, havia o perigo de derrapar para uma religião egípcia que acabaria por deificá-los.
Pelo contrário, desvalorizar os animais em relação ao ser humano torna possível usá-los sem perigo para o cristianismo. A Idade Média está repleta de histórias de santos onde os animais intervêm; por exemplo, São Roque salvo por um cachorro que lhe traz comida. Os animais são uma espécie de instrumento da vontade divina, modelo exposto aos homens sem, no entanto, se tornarem melhores que os humanos. É para esse propósito de edificação religiosa que a iconografia medieval se destaca com vitrais, esculturas, etc., que reproduzem animais.
Qual é a versão do cristianismo mais minoritária?
Uma perspectiva mais inclusiva, em última análise, mais próxima do texto bíblico. É a de Francisco de Assis, que exprime e prolonga esta palavra de Cristo: “Ide pelo mundo inteiro e pregai o Evangelho a todas as criaturas” (Marcos 16, 15). Consequentemente, os animais são integrados na Igreja como criaturas de Deus. É também a São Francisco que devemos a presença do burro e do boi na manjedoura. Essa visão alternativa já existia antes da Idade Média, especialmente na Síria, desde a Antiguidade. Nos tempos medievais, esta visão é aceita, embora de maneira marginal. Explica-se que se um santo é suficientemente forte para não cair no culto pagão, o mesmo não vale para um cristão “lambda”, que não deveria seguir este caminho.
A tolerância na Idade Média dos animais nas igrejas corresponde a esta tendência inclusiva?
Sim, mesmo se vai muito além disso. Devemos entender que a distinção entre o sagrado e o profano, que irá se impor a partir do século XVII (e contribuirá, certamente, para a secularização da vida cotidiana), não faz sentido para os cristãos da Idade Média. A visão da Igreja era, na época, outra. É um lugar sagrado, mas também um lugar comum: pode haver nele comerciantes, há aí madeira empilhada, provisões, da mesma maneira que se dança e se organiza mercados nos cemitérios vizinhos. Não é incomum ver animais caminhando por entre os bancos [das igrejas].
Sem contar que as bênçãos de animais são comuns: não se hesita em fazer circular um rebanho pela igreja para aproximá-lo da estátua de um santo e assim garantir sua proteção, ou mesmo sua cura em caso de epidemia. Trata-se de uma demanda dos camponeses, muitas vezes bem aceita pelos sacerdotes (já que fazem parte do mesmo meio rural) e tolerada pelos teólogos. Estes últimos, rapidamente compreenderam que não atender a essa demanda corria o risco de ver a população se jogar nos braços de curandeiros ou de magos. Especialmente desde que alguns cultos populares tiveram um grande sucesso, como o de São Guinefort, um cão salvador de crianças que foi objeto de um culto da fertilidade na região de Dombes, perto de Lyon.
O cristianismo medieval também se distingue pela organização de processos para os animais...
Sim, e este é outro exemplo desse cristianismo inclusivo, aceito, embora minoritário. A partir do século XIV, chegamos a ver o desenvolvimento de procediment de excomunhão, o que implica a pertença desses animais à comunidade das criaturas de Deus, até mesmo à Igreja: para ser excomungado, é preciso ser possuído por alguma coisa! Essas excomunhões não visam o gado ou os animais domésticos, mas animais selvagens, considerados prejudiciais porque vinham destruir as colheitas: roedores ou insetos no campo, golfinhos que comem peixes demais e atrapalham os pescadores, etc. Por ser muito grave, a excomunhão não pode ser feita de qualquer maneira. Daí a montagem de um verdadeiro processo judicial, com advogado, juiz, etc. Esta forma é considerada necessária, porque é a mesma coisa mandar a criatura ao nada ou a Satanás, o que é pior que a morte.
Qual é, exatamente, o status do animal após a morte?
A imortalidade do animal é um ponto que os teólogos da época atacam fortemente, porque consideram que é ir longe demais na confusão entre o ser humano e os animais. Nós minimizamos, por exemplo, os versículos de São Paulo sobre os gritos das criaturas que gemem a espera do Juízo Final para, ao contrário, afirmar a mortalidade total do animal após a morte terrestre, uma maneira de dizer que a religião dirige-se prioritariamente ao ser humano. A Bíblia, no entanto, não menciona a imortalidade imediata da alma humana, mas sim uma ressurreição da alma após o Juízo Final... Ainda assim, o animal não tem lugar nessa concepção majoritária. Ele também está ausente de todas as representações do paraíso.
O cristianismo medieval trouxe o animal para o primeiro plano?
Sim, no sentido em que ele serve como um missionário, como um instrumento. Os animais são valorizados porque eles servem para contar a história cristã, para evangelizar os homens. Muitas histórias contam como um determinado animal corrigirá um cristão que pecou, mostrará a ele sua culpa e o que deve fazer: uma mula vai se prostrar diante do santo sacramento e provar que ela acredita na doutrina católica da transubstanciação, etc.
Mas esta promoção utilitária do animal é acompanhada por uma desvalorização, a fim de mantê-lo fora da Igreja e não cair no paganismo, apesar do ímpeto de um cristianismo mais popular e inclusivo. O século XVII vai varrer tudo isso, chegando a reescrever as histórias de santos para substituir os animais por seres humanos e expulsar qualquer animal das igrejas, incluindo as decorações com animais.
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“Na Idade Média, os animais serviam para evangelizar os homens”. Entrevista com Éric Baratay - Instituto Humanitas Unisinos - IHU